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Bolsonaro e generais no banco dos réus

Há justa causa para recebimento da denúncia pela suposta tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e outros crimes.

sexta-feira, 28 de março de 2025

Atualizado às 12:19

Pela primeira vez, um ex-presidente da República e oficiais generais de quatro estrelas, foram denunciados, por supostamente, praticarem os seguintes crimes

  • golpe de Estado
  • tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito
  • associação criminosa armada
  • dano qualificado pela violência contra o patrimônio público
  • Deterioração do patrimônio tombado

Uma coisa: no processo penal democrático, antes do trânsito em julgado, o réu é considerado inocente. No Direito Romano: réus sacros res est (o réu é coisa sagrada).

Regimes autoritários e ditaduras gostam de relativizar presunção de inocência. Todos são culpados até provar o contrário. Há o triste Direito penal do inimigo. Ora, o processo penal é antítese do arbítrio.

A propósito, no Direito querem sempre fazer um vale-tudo distorcendo o sentido semântico de presunção de inocência e trânsito em julgado. Uma mesa é uma mesa e não cadeira já dizia Humberto Eco.

Além disso, temos a expressa recepção no artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos:

"Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa."

Daí a lição magistral da Aury Lopes Jr, sobre o tema:

"O Brasil recepcionou, sim, a presunção de inocência e, como 'presunção, exige uma pré-ocupação nesse sentido durante o processo penal, um verdadeiro dever imposto ao julgador de preocupação com o imputado, uma preocupação de tratá-lo como inocente"

Justa causa para como condição da ação penal   

Ensina o festejado mestre de todos nós, Afrânio Silva Jardim1, que:

 "Julgamos que a justa causa funciona como uma verdadeira condição para o exercício da ação penal condenatória."  

Na verdade, levando em linha conta que a simples instauração do processo penal já atinge o status dignitatis do réu, o legislador exige do autor o preenchimento de mais esta condição para invocar legitimamente a tutela jurisdicional."

"Desta forma, torna-se necessário ao regular exercício da ação penal a demonstração. Prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso lastreada em um mínimo de provas'.

"Este suporte probatório mínimo se relaciona com os indícios de autoria, existência material de uma conduta típica e alguma prova de sua antijuricidade e culpabilidade. Somente, diante de todo este conjunto probatório é que, a nosso ver, se coloca o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública."

Ou seja, a justa causa é um suporte probatório mínimo que deve ter toda acusação do Ministério Público (MP).

Aliás, é o lastro probatório mínimo que autoriza justa causa à ação penal condenatória, individualizando à autoria e materialidade de uma conduta típica, ilícita e culpável.

A denúncia não é ato de fé ou adivinhação 

Como se sabe, nos termos do art. 41 do Código de Processo Penal (CPP): 

"a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".

De outro modo: a denúncia tem que descrever adequadamente a conduta, supostamente, praticada.

Não pode ser genérica. Tem que especificar datas dos acontecimentos, ou seja, o tempo, o lugar, a maneira que praticou, os meios empregados, sob pena de ser inepta.

Importante: o dolo do agente tem de ser demonstrado por a+b, logo na peça acusatória. Não é ao final da instrução criminal. Aliás, o ônus da prova é do MP, não é ?

Não vale "o sei que o réu é culpado". Tenho uma certeza "moral" de que ele cometeu crime.  

Pois então. A legitimidade para determinar a punição adequada a determinado ato pertence ao Direito, não à moral pessoal de cada um. E nem à moral da voz das ruas, das redes e das milícias digitais.

Aliás, nunca se sabe como é essa voz...

O Ministério Público, no Estado Democrático de Direito, jamais poderá ser uma "fábrica de denúncias". Às vezes, o MP faz uma "sobrecarga na acusação". O que os americanos chamam de  overcharging. 

A obrigatoriedade da ação penal, somente, surge para o MP quando presentes os seus requisitos. Tem que existir, como falado, um suporte probatório mínimo, vale dizer, a justa causa para o legítimo exercício da ação penal condenatória.

Cabe transcrever, por oportuna, a lição do professor e desembargador Paulo Rangel2 sobre o tema:

"Não podemos confundir a liberdade de agir que tem o Ministério Público, em verificar a existência do fato-infração e seus elementos autorizadores da propositura da ação-, com a obrigação de promover a ação de qualquer maneira."

O Ministério Público não é um órgão propulsor cego da ação penal sem que esta esteja embasada nos elementos que lhe sejam essenciais.

Contexto da denúncia

Vejamos fragmentos da denúncia oferecida, de 272 páginas, pela Procuradoria-geral da República:

"A responsabilidade pelos atos lesivos à ordem democrática recai sobre organização criminosa liderada por Jair Messias Bolsonaro, baseada em projeto autoritário de poder. Enraizada na própria estrutura do Estado e com forte influência de setores militares, a organização se desenvolveu em ordem hierárquica e com divisão das tarefas preponderantes entre seus integrantes".

"A natureza estável e permanente da organização criminosa é evidente em sua ação progressiva e coordenada que se iniciou em julho de 2021 e se estendeu até janeiro de 2023. As práticas da organização caracterizam-se por uma série de atos dolosos Ordenados a abolição do Estado democrático de direito e a deposição do governo legitimamente eleito."

"A ação coordenada foi a estratégia adotada pelo grupo para perpetrar crimes contra as instituições democráticas, os quais não seriam viáveis por meio de um único ato violento."

"A consumação do crime do artigo 359 M do Código Penal, tentar depor por meio de violência ou grave ameaça o governo legitimamente constituído, ocorreu por meio de sequência de atos que visavam romper a normalidade do processo sucessório"

"Esse propósito ficou evidenciado nos ataques recorrentes ao processo eleitoral, na manipulação indevida das forças de segurança pública para interferir na escolha popular, bem como na convocação do Alto Comando do Exército para obter apoio militar à decretação que formalizaria o golpe"

"Os denunciados também encadearam ações para abolir violentamente o Estado Democrático de Direito. Minaram em manobras sucessivas e articuladas os poderes constitucionais".

"Diante da opinião pública, incitaram a violência contra as suas estruturas. As instituições democráticas foram vulneradas em pronunciamentos públicos agressivos e ataques virtuais proporcionados pela utilização indevida da estrutura de inteligência do Estado"

"O ímpeto de violência da população contra o poder Judiciário foi exacerbado pela manipulação de notícias eleitorais baseadas em dados falsos. Ações de monitoramento contra autoridades públicas colocaram em risco iminente o pleno exercício dos Poderes constitucionais".

"Os alvos escolhidos pela organização criminosa somente não foram violentamente neutralizados devido à falta de apoio do Alto Comando do Exército ao decreto golpista que previa expressamente medidas de interferência nos poderes constitucionais"

"As ações progressivas e coordenadas da organização criminosa culminaram no 8 de janeiro de 2023, ato final voltado à deposição do governo eleito e à abolição das estruturas democráticas.

"Os denunciados programaram essa ação social violenta com o objetivo de forçar a intervenção das Forças Armadas e justificar um estado de exceção".

"A ação planejada resultou na destruição, inutilização ou deterioração de patrimônio público, incluindo bens tombados. Os denunciados em unidade de desígnios e divisão de tarefas, contribuíram de maneira significativa para o projeto violento de poder da organização criminosa, especialmente para a manutenção do cenário de instabilidade social que culminou nos eventos nocivos"

"A organização criminosa por meio de seus integrantes direcionou os movimentos populares e interferiu nos procedimentos de segurança necessários, razão pela qual responde pelos danos causados conforme artigo 163 parágrafo único 1, 3 e 4 do Código Penal"

"É importante, diz a Procuradoria-geral da República, dar relevo a que os tipos penais dos artigos 359 L e 359 M do Código Penal referem-se a crimes de atentado que prescindem do resultado naturalístico para se consumar.

A concretização desses tipos é verificada pela realização de atos executórios, que serão detalhados a seguir, voltados a um resultado doloso mesmo que este não tenha sido alcançado por circunstâncias alheias à vontade do agente".

"Evidenciou-se que os denunciados integraram organização criminosa, cientes de seu propósito ilícito de permanência autoritária no Poder.

Em unidade de desígnios, dividiram-se em tarefas e atuaram, de forma relevante, para obter a ruptura violenta da ordem democrática e a deposição do governo legitimamente eleito, dando causa, ainda, aos eventos criminosos de 8.1.2023 na Praça dos Três Poderes."

Afinal, há justa causa para iniciar a ação penal em face de Bolsonaro e outros?

Pois então. Lendo com atenção a peça acusatória de 272 folhas, com honestidade intelectual, nota-se de que há, sim, indícios razoáveis de autoria e materialidade, vale dizer, justa causa para recebimento da denúncia, que, por óbvio, têm que, passar, agora, pelo crivo do contraditório e o direito à ampla defesa, na ação penal.

Cabe destacar que: a denúncia se sustenta, independentemente, da colaboração premiada, que , como meio de obtenção prova, por si, não pode levar a uma condenação.

Conclusão

O golpismo, infelizmente, está no DNA das nossas elites. É fato histórico. Temos que estar sempre alertas.

Houve golpe de Estado?

Não há o direito fundamental de tentar o golpe de Estado. De abolir o estado democrático de Direito. O povo tem o sagrado direito de democracia!

Tudo tem que ser apurado com rigor, na ação penal, é claro, respeitando o direito à ampla defesa e contraditório.

A democracia em risco. Cuidado: Há perigo na esquina! São ataques ferozes às instituições sob uma capa de liberdade e democracia e, hipocritamente, misturando: Deus, pátria e família.

Episódios como o de 8 de janeiro e o plano que pretendia, assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes são inaceitáveis no regime democrático.

A sociedade civil e os poderes da República têm que se organizarem para proteger a democracia brasileira. Temos que estar sempre alertas e atuar preventivamente para evitar golpes de Estado.

Por fim, uma reflexão da ministra Cármen Lucia:

"Ditadura mata, Ditadura vive da morte- não apenas da sociedade, da democracia-, mas de seres humanos de carne e osso".

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1 JARDIM, Afrânio Silva, Direito Processual Penal, p.97/98, 2001.

2 RANGEL, Paulo, Direito Processual Penal, p.228 e 239, 2014.

Renato Otávio da Gama Ferraz

VIP Renato Otávio da Gama Ferraz

Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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