A frustração do fim do contrato
A frustração do fim do contrato é analisada com base em casos históricos, destacando a impossibilidade de cumprir o objetivo do contrato por eventos imprevistos.
sexta-feira, 28 de março de 2025
Atualizado em 27 de março de 2025 17:13
A relação entre contratos e eventos supervenientes que possam afetar o cumprimento do programa contratual tem sido tema de especial interesse para o Direito Civil ao longo de séculos. O legislador se preocupou com disciplinar hipóteses em que se verifica atrito entre o ajuste inicialmente pactuado pelas partes e mudanças supervenientes de conjuntura. É o caso, por exemplo, da impossibilidade superveniente da prestação (art. 248 do CC) e da onerosidade excessiva (art. 478 do CC).
O CC não positivou, por sua vez, a teoria da frustração do fim do contrato, que cuida de uma terceira hipótese, tecnicamente diversas das duas anteriores. A frustração do fim contratual ocorre quando um evento inesperado, muito embora não impossibilite materialmente o cumprimento do contrato, elimina a sua razão de ser, frustrando a finalidade - ou causa - da contratação. A despeito da ausência de positivação, há fundamento jurídico para a aplicação dessa teoria a casos concretos, levando-se à extinção do vínculo contratual.
1. Um pouco de história: Os coronation cases
Na Inglaterra, em 1902, estava agendada a cerimônia de coroação do rei Eduardo VII e da rainha Alexandra, que se daria por meio de uma procissão, um desfile militar, em determinada rua. Diversas pessoas celebraram contratos de locação de imóveis que dariam vista para essa procissão, para que pudessem assistir ao desfile. Ocorre que o rei adoeceu e, por conta disso, a cerimônia foi adiada. Os locatários, então, já não tinham mais interesse em alugar os imóveis, que, agora, não dariam vista a evento algum. Que resposta o direito fornece a essa situação?
As Cortes inglesas foram chamadas a analisar essa questão, no início do século XX, em um conjunto de precedentes que ficaram conhecidos como os coronation cases ou, em português, casos da coroação. Não se confundem com o berço da teoria da frustração do fim do contrato, que já era alvo de discussões doutrinárias há muito, mas são frequentemente citados por terem trazido a teoria da frustração do fim do contrato para o centro do debate jurídico, marcando o desenvolvimento desse instituto, tal como o conhecemos hoje.
2. A insuficiência das demais respostas do CC para hipóteses de atrito entre o pactuado e as mudanças supervenientes
Como mencionado, o CC oferece duas soluções para hipóteses em que se verifica que a programação contratual imaginada pelas partes no momento da celebração de uma avença já não mais corresponde à realidade futura, observada no curso do negócio.
Uma dessas soluções é a "impossibilidade superveniente da prestação", prevista no art. 248 do CC:
Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos.
Outra é a onerosidade excessiva, positivada no art. 478 do CC:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.
Todavia, em princípio, nenhum desses dois institutos seria capaz de solucionar os casos da coroação. Nesses casos exemplificativos, não há que se falar em onerosidade excessiva, porque as bases econômico-financeiras do contrato não sofreram alteração. Do mesmo modo, a disponibilização do imóvel (e a respectiva prestação "aluguel") ainda é possível, abstratamente. Logo, também não se estaria precisamente diante da "impossibilidade superveniente da prestação". O ponto é que o aluguel, apesar de possível, já não atende mais à finalidade contratual: assistir à cerimônia de coroação.
3. Finalidade contratual x motivos
É lição basilar do Direito Civil que os motivos de foro íntimo que levam as partes a ingressarem em determinada relação contratual não recebem tutela do Direito. Em exemplo bastante anedótico, se um inquilino opta por locar imóvel em determinada rua, porque ali se localiza seu restaurante predileto, não pode ele pleitear a resolução do contrato perante o locatário sob o fundamento de que tal restaurante, meses depois, fechou as portas.
O principal aspecto que difere a finalidade contratual, em sentido técnico, do simples motivo individual é o fato de que essa finalidade, mais do que uma motivação de foro íntimo, é a causa concreta, determinante, da celebração daquele contrato, em perspectiva compartilhada por ambas as partes. Voltando ao exemplo dos casos da coroação: ali, ambas as partes tinham firme que o programa contratual era voltado ao fim específico de permitir a vista do desfile. Essa era a causa que animava a contratação objetivamente considerada, e não mera motivação subjetiva de uma das partes.
Vale dizer: a causa concreta (ou fim) do contrato não se confunde com os motivos da contratação. Dando vida ao contrato desde o seu nascedouro, a causa repousa nas finalidades supostas e queridas por ambas as partes no momento de contratar, colorindo o negócio jurídico como uma marca sua, e não de tal ou qual contratante. Os motivos, por sua vez, constituem finalidades individuais, dizendo exclusivamente com anseios unilaterais desejados pelo contratante no seu íntimo. Os motivos somente importam para a eficácia negocial quando forem manifestados como razão determinante e, posteriormente, verificar-se que eram falsos, caso em que privam o negócio de efeitos por vício na declaração de vontade (art. 140 do CC).
Em síntese, contratos são celebrados em meio a porquês e para quês. Se, de um lado, o porquê da contratação exprime-se na finalidade individual visada pelo contratante e se identifica com os motivos, o para que coincide com a causa concreta, o fim contratual, marca indissociável do negócio jurídico - que, diferentemente dos porquês, deve estar sempre em vista na avaliação da eficácia do ajuste.
Impossibilitada a consecução do fim, deixa de haver sentido para que o contrato permaneça em vigor. Nessa perspectiva, a frustração do fim do contrato encerra hipótese de desaparecimento superveniente da causa concreta do contrato, impondo a extinção do negócio por já não ser mais possível alcançar seu propósito prático, ainda que factual e juridicamente possível o adimplemento da prestação. Esse é o seu conceito.
4. Os requisitos para a aplicação do instituto
Diferentes doutrinadores organizam os requisitos da frustração do fim do contrato de modos distintos, mas é possível identificar um núcleo duro de critérios que, além da verificação da efetiva frustração do fim, devem estar presentes (ou ausentes, nos casos dos requisitos negativos) para que se esteja diante da frustração do fim contratual.
- O contrato deve ser de execução diferida ou continuada. Caso se cuide de atrito entre aquilo que foi pactuado, programado pelas partes, e uma mudança de conjuntura superveniente, é preciso que a prestação seja devida em momento futuro à celebração da avença. A razão é de ordem prática: se a prestação fosse devida logo no momento da celebração do contrato, naturalmente não haveria tempo hábil para que a conjuntura fática se alterasse, impossibilitando a realização do fim do contrato.
- A impossibilidade da realização do fim contratual não pode decorrer da atuação das partes nem pode ser imputável a qualquer delas. Se a impossibilidade decorrer da atuação da parte, ter-se-á, muito provavelmente, um inadimplemento contratual, que atrai consequências jurídicas distintas. Da mesma forma, a frustação do fim não pode ser imputável, por qualquer outra razão, a uma das partes. Se, como exemplo, uma das partes assume negocialmente o risco da superveniência de certo evento, a efetiva ocorrência de tal evento será imputável à respectiva parte, que, por isso, suportará as consequências aplicáveis, sem que possa invocar, nessa hipótese, o instituto da frustração do fim.
- A frustração do fim do contrato não pode ser causada por um evento que faça parte da álea normal do contrato. Deve haver extraordinariedade no evento futuro que frustre o fim do contrato. Se ele fizer parte do risco comum do negócio, que se presume assumido pelas partes ao negociar, caberá à parte lesada suportar eventual prejuízo.
5. Consequências jurídicas
Quais os efeitos a serem produzidos, uma vez identificada a frustração do fim do contrato?
Considerando se tratar de uma finalidade, como dito, que animava a contratação na perspectiva de ambas as partes (um elemento comum a ambas), a consequência é a resolução do contrato, por ineficácia superveniente. Não há de se falar em aplicação de penalidade contratual ou indenização por lucros cessantes, justamente porque a frustração não é imputável à atuação de qualquer das partes.
A doutrina, então, propõe que os prejuízos sejam repartidos entre os contratantes, o que, na prática, significa que a parte mais imediatamente lesada pela frustração (no exemplo dos coronation cases, o locatário) deve ressarcir a contraparte por eventuais gastos em que tenha incorrido em preparação para o negócio, em retorno ao status quo ante. Por outro lado, tal contraparte não poderia pleitear o pagamento de indenizações que não correspondam a essas despesas de preparação para a execução do programa contratual.
6. Fundamentos normativos no nosso CC
Diante da inexistência de positivação, recorre-se majoritariamente à doutrina também para extrair o fundamento jurídico que, no ordenamento, ampara a aplicação da teoria da frustração do fim do contrato. Afinal, todo instituto jurídico depende de um assento normativo.
A própria doutrina oferece dois caminhos distintos. Há quem defenda que o fundamento para frustração do fim do contrato está na função social do contrato, previsto no art. 421 do CC ("Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato"). Há, nesse sentido, até mesmo enunciado doutrinário (enunciado 166 da III jornada de Direito Civil, de 2004):
Enunciado 166 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, 2004 - "a frustração do fim contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no direito brasileiro pelo art. 421 do Código Civil.
Há, por outro lado, quem prefira invocar a boa-fé objetiva, extraída dos arts. 422 e 187 do CC1:
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
A preferência pela fundamentação a partir da boa-fé advém, em boa medida, do entendimento de que a função social do contrato concerne a repercussões externas do contrato. Enquanto o princípio da função social do contrato é reflexo do solidarismo constitucional no que toca ao âmbito externo do contrato, o princípio da boa-fé objetiva é expressão do mesmo dever de solidariedade projetado para o interior do vínculo contratual.
Normativamente, então, a frustração do fim do contrato encontra alicerce tanto no art. 422 do CC, que estampa o princípio da boa-fé objetiva, como no art. 187 do mesmo diploma, dispositivo que veda o exercício disfuncional de dada posição jurídica, a exemplo do que ocorre quando transgredidos os limites impostos pelo princípio da boa-fé e, ainda, quando reclamado o cumprimento forçado de contrato já inapto a servir de eficiente instrumento de troca.
7. A aderência da teoria no Direito brasileiro
Uma breve pesquisa jurisprudencial - e, vale frisar, sem que se tenha aqui verdadeira pretensão metodológica de alto rigor empírico - permite-nos concluir que o instituto faz aparições escassas na jurisprudência.
No STJ, em pesquisa feita em fevereiro de 2025, sem qualquer limitação temporal quanto ao termo inicial de busca, localizam-se apenas quatro decisões (todas monocráticas, nenhum acórdão) com menção a "frustração do fim do contrato", datadas de 2018 a 2024. De todo modo, a expressão vinha sempre no contexto da transcrição da decisão recorrida proferida pelo tribunal local. Mesmo nesses casos, o STJ não chegou a promover, ele próprio, qualquer debate de mérito sobre o instituto, limitando-se a analisar a inadmissibilidade do recurso especial em cada caso.
No TJ/RJ, encontrou-se uma única decisão com o termo no ano de 2024, e outra - também apenas uma - no ano de 2023.2 Ainda que esses dois acórdãos tenham feito expressa menção à frustração do fim contratual, os casos concretos encerravam hipóteses de inadimplemento, de modo que os casos foram solucionados a partir da ótica do inadimplemento e de todas as consequências jurídicas que lhe são próprias.
Há uma plausível explicação para as raras aparições que essa teoria faz, a par das discussões da doutrina especializada. Contemporaneamente, percebe-se tendência crescente de conferir interpretação funcional ao objeto da contratação. É dizer: o objeto de um contrato não pode ser interpretado como a mera entrega de uma prestação pactuada, em literalidade radical (o aluguel do apartamento, no exemplo dado); sua interpretação deve ser atenta às finalidades e aos interesses que as partes almejavam alcançar.
Essa chave de leitura mais ampla do objeto contratual (não apenas o "aluguel", mas o "aluguel que permita cumprir a finalidade compartilhada por ambas as partes") cumpre propósito semelhante àquele alcançado pela frustração do fim do contrato. Mesmo para os doutrinadores que entendem, portanto, que a "impossibilidade superveniente da prestação", interpretada à luz do perfil funcional da contratação, já seria suficiente para solucionar casos como os da coroação, o instituto da frustração do fim do contrato guarda a sua relevância no sentido de chamar a atenção para a necessidade de tutelar o escopo funcional do contrato, o fim compartilhado pelas partes.
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1 Detalhamos as razões em SALGADO, Bernardo. A frustração do fim do contrato no direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 23, p. 173- 197, abr./jun. 2020
2 TJRJ, Ap. 002361321.2016.8.19.008, 18ª CDPriv, Rel. Des. Paulo Wunder de Alencar, j. em 17.12.2024 e TJRJ, Ap. 0014479-36.2009.8.19.0209, 27ª C.C., Rel. Des. Marcos Alcino de Azevedo Torres, j. em 22.3.2023.
3 COGO, Rodrigo Barreto. A frustração do fim do contrato. O impacto dos fatos supervenientes sobre o programa contratual. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
4 MARINHO, Maria Proença. Frustração do fim do contrato. Rio de Janeiro: Editora Foco, 2020.
5 NANNI, Giovanni Ettore. Frustração do fim do contrato. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (Coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios: volume 1. Rio de Janeiro: Processo, 2020, p. 217-240.
6 SALGADO, Bernardo. A frustração do fim do contrato no direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 23, p. 173- 197, abr./jun. 2020.
7 SCHREIBER, Anderson. Contratos de locação imobiliária na pandemia. Pensar, Fortaleza, v. 25, n. 4, out./dez. 2020, p. 1-13.