Carta aberta sobre a importância da recomendação 144/CNJ, de agosto de 2023. Linguagem simples no serviço público
A aprovação da Política Nacional de Linguagem Simples no Senado é um avanço para garantir a transparência, a inclusão e o direito à informação no Brasil, tornando o serviço público mais acessível.
sexta-feira, 28 de março de 2025
Atualizado em 27 de março de 2025 16:56
A recente aprovação da Política Nacional de Linguagem Simples pelo Senado Federal representa um marco fundamental na relação entre Estado e sociedade. A transformação da linguagem oficial em um instrumento acessível é um passo fundante para garantir o direito à informação, a transparência e a inclusão social. O Brasil dá, assim, um grande salto para consolidar o que já vinha sendo incentivado em órgãos como o CNJ, onde tive a honra de relatar a recomendação 144/CNJ, de agosto de 2023.
A linguagem simples no setor público é uma questão de cidadania. Desde o início, minha intenção sempre foi aproximar a sociedade dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, garantindo que a comunicação do Estado fosse compreensível para todos, independentemente do grau de instrução ou condição social. Afinal, o direito do cidadão de entender os atos do Estado é tão importante quanto qualquer outro direito fundamental. Nessa perspectiva, a recomendação 144/CNJ incentivou tribunais de todo o país a adotarem práticas que tornem suas comunicações mais claras e acessíveis.
A recomendação 144/CNJ estabeleceu diretrizes fundamentais para que a linguagem utilizada pelo Poder Judiciário fosse mais acessível, sem prejuízo da técnica jurídica. Seu art. 1º recomendou expressamente "a utilização de linguagem simples, clara e acessível, com o uso, sempre que possível, de elementos visuais que facilitem a compreensão da informação". O § 1º determinou que "a utilização de linguagem simples deve prevalecer em todos os atos administrativos e judiciais expedidos pelos Juízos, Tribunais e Conselhos".
Além disso, o § 2º previu a elaboração de versões simplificadas para documentos essencialmente técnicos, enquanto o § 3º autorizou o uso de códigos de resposta rápida (QR Codes) em atos judiciais, a fim de fornecer informações complementares ou traduzir conteúdos complexos em formatos acessíveis, como áudios, vídeos legendados e com janela de libras.
Ainda, o § 4º da recomendação 144/CNJ previu a promoção de oficinas e o desenvolvimento de materiais como cartilhas, glossários e modelos padronizados para auxiliar na disseminação da linguagem simples dentro do Poder Judiciário. Essas diretrizes fortaleceram a transparência e permitiram maior acessibilidade às informações públicas.
A LC 95/1998, que estabelece normas para a elaboração e modificação de leis, também reforça essa necessidade ao prever, em seu art. 11, inciso II, alínea 'a', que a linguagem das normas deve ser articulada de modo a assegurar "perfeita compreensão do objetivo da lei e permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma". Ou seja, a própria legislação exige que os textos normativos sejam compreensíveis, o que está diretamente alinhado com a Política Nacional de Linguagem Simples.
Ademais, a lei brasileira de inclusão (lei 13.146/15) impõe que todas as informações públicas sejam acessíveis, garantindo que pessoas com deficiência tenham pleno acesso aos conteúdos de interesse público. Essa exigência está alinhada com o uso de QR Codes, áudios, vídeos legendados e janela de libras, conforme sugerido na recomendação 144/CNJ. Nesse sentido, a lei estabelece que a acessibilidade deve ser promovida de forma ampla, abrangendo não apenas conteúdos digitais, mas também documentos físicos e espaços públicos. Isso implica que órgãos governamentais devem adotar diretrizes inclusivas em seus sites, aplicativos, portais e materiais impressos, assegurando que nenhum cidadão seja excluído do direito à informação.
O decreto 9.637/18, que trata da acessibilidade digital, reforça a obrigatoriedade de que os sites institucionais e plataformas de órgãos governamentais garantam a inclusão de pessoas com deficiência. Estabelece que tele centros, lan houses e serviços de telecomunicações devem adotar medidas para assegurar acessibilidade digital. Além disso, o art. 67 deste decreto determina que serviços de radiodifusão incluam legendas ocultas, janela de libras e audiodescrição para garantir que a comunicação do Estado seja universal e acessível. Esse decreto reforça a necessidade de que todas as informações públicas sejam disponibilizadas em formatos acessíveis, promovendo igualdade no acesso à informação para todos os cidadãos, independentemente de suas condições físicas ou cognitivas.
A Declaração de Bangalore sobre princípios de conduta judicial também reforça que a transparência e acessibilidade da linguagem são essenciais para um Judiciário mais justo. O princípio da clareza exige que todas as decisões sejam compreensíveis para o cidadão comum, promovendo confiança nas instituições.
A importância da comunicação acessível também está presente em iniciativas internacionais, como as diretrizes da OGP - Open Government Partnership, uma coalizão global que incentiva governos a implementarem políticas de transparência, participação social e inovação tecnológica. Essas diretrizes preveem a adoção de práticas que tornem as informações governamentais mais acessíveis à população, incluindo o uso de linguagem clara em documentos oficiais, desenvolvimento de plataformas digitais intuitivas e incentivo ao diálogo aberto entre Estado e sociedade. Países que seguem essas diretrizes demonstram avanços na promoção de governos mais inclusivos e democráticos, assegurando que os cidadãos possam compreender e fiscalizar as ações governamentais de maneira eficaz.
O jurista Napolitano Pietro Perlingieri, um dos grandes nomes da escola do Direito Civil Constitucional nos traz a seguinte lição na obra perfis do Direito Civil:
Para a garantia de determinadas categorias de indivíduos em condições de marginalizados dos processos sociais, surgiram os novos direitos, é o fenômeno da constitucionalização do direito civil, também chamada de direito civil constitucional, ou seja, a questão da aplicabilidade simultânea de leis inspiradas em valores diversos resolve-se somente tendo consciência de que o ordenamento jurídico é unitário. A solução para cada controvérsia não pode ser mais encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que parece contê-la e resolvê-la, mas, antes à luz do inteiro ordenamento jurídico, e, em particular, de seus princípios fundamentais, considerados opções de base que o caracteriza.
(PIETRO PERLINGIERI.Perfis do Direito Civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 1997.p.5)
A inspiração para essa iniciativa veio das minhas próprias origens sertanejas, da vivência com um Brasil profundo, onde a comunicação simples é uma necessidade cotidiana. Também encontrei referências fundamentais em obras como 'Grande Sertão: Veredas', de João Guimarães Rosa, um dos maiores escritores da literatura brasileira. Guimarães Rosa revoluciona a forma de narrar ao mesclar oralidade e escrita, explorando as riquezas da fala do sertanejo. Sua obra mostra que a comunicação vai além das palavras formais, evidenciando a importância de se conectar com o leitor de maneira genuína e compreensível. Em sua narrativa, Rosa recria a forma como os sertanejos falam, incorporando expressões regionais, ritmo e musicalidade à escrita, o que torna sua obra não apenas um marco literário, mas também um estudo profundo sobre a linguagem e sua relação com a identidade cultural do povo brasileiro.
Nossa história como povo nordestino tem raízes profundas na colonização ibérica, que deixou marcas indeléveis em nossa cultura. A influência mourisca, herdada dos povos que habitaram a Península Ibérica por mais de 700 anos, pode ser vista em detalhes que talvez passem despercebidos por muitos. Os desenhos intrincados nos gibões de couro, por exemplo, carregam a elegância dos arabescos e padrões introduzidos pelos mouros, adaptados ao nosso sertão e ao ofício do vaqueiro, símbolo maior do homem nordestino. Essa herança transcende o material; está presente na maneira como encaramos a vida, com coragem, criatividade e resiliência, características tão presentes tanto no povo português quanto no nordestino. No entanto, no mundo globalizado de hoje, enfrentamos uma crise identitária. Cada vez mais, vemos povos em todos os cantos perdendo suas singularidades, enquanto culturas se tornam homogêneas, diluídas pela pressa de se adaptar ao novo. É por isso que preservar nossas raízes e reconhecer o valor de nossas origens é um ato de resistência e, mais do que isso, de orgulho. Carrego comigo as histórias de minha mãe, natural da Cidade do Porto, e de meu pai, um sertanejo de Limoeiro do Norte. Essas duas realidades, aparentemente tão distantes, se encontram e se complementam, como os rios Douro e Jaguaribe, que simbolizam a força e a riqueza de duas culturas que moldaram quem sou.
Outro exemplo marcante é a importância da oralidade na cultura popular nordestina. No sertão, a transmissão de conhecimento ocorre principalmente de forma oral, por meio de histórias contadas ao pé da fogueira, nas feiras e nas rodas de conversa, e desafios de violeiros, onde se destaca de modo quase sobrenatural a figura do poeta e repentista Zé Limeira. Essa tradição demonstra a força da comunicação simples e direta, que busca alcançar a todos sem excluir ninguém. Esse mesmo princípio deve guiar o Estado: tornar suas mensagens compreensíveis para toda a população, respeitando as diferentes realidades e níveis de escolaridade, garantindo que a informação seja acessível e compreensível para todos.
A importância da comunicação como fator de inclusão social também foi destacada por estudiosos como o sociólogo francês Dominique Wolton, que enfatizou "a comunicação é, antes de mais nada, uma experiência antropológica fundamental". No contexto dos catingueiros e da linguagem regional, essa compreensão é ainda mais necessária, pois a forma como o povo se expressa reflete sua cultura, história e identidade.
Um dos grandes exemplos desse desafio está na obra de Elomar Figueira de Mello, especialmente em sua peça 'Auto da Catingueira'. Nela, Elomar construiu um dialeto próprio, o chamado "sertanejo", inspirado na fala popular do sertão, repleto de expressões regionais que evocam a identidade e a musicalidade da cultura nordestina. Essa escolha artística ressalta um dilema central: como traduzir a linguagem de um povo sem perder sua essência? O desafio que enfrentamos no Judiciário é semelhante. Precisamos simplificar a comunicação sem comprometer a precisão técnica, garantindo que o direito à informação não seja apenas formal, mas efetivamente acessível a todos.
Agora, com essa nova legislação, temos a oportunidade de transformar a relação entre o cidadão e os poderes públicos, garantindo um Brasil mais justo, transparente e acessível para todos. Uma comunicação mais clara e acessível não é apenas uma questão de eficiência burocrática, mas um compromisso com a democracia, a cidadania e o direito fundamental de todos os brasileiros de compreenderem e participarem ativamente das decisões que impactam suas vidas. Nunca é demais concluir com o grande Guimaraes Rosa:
Todo caminho da gente é resvaloso.
Mas; também, cair não prejudica demais -
a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! (...)
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim:
esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente aprendendo a
ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria,
e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!
Guimarães Rosa
(Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.)
Mário Goulart Maia
Sócio do Kohl & Maia Advogados.