A reforma tributária e os cartórios: Segurança jurídica ou risco de retrocesso?
Este artigo analisa os impactos da reforma tributária nos cartórios, abordando riscos fiscais, desafios operacionais e propondo soluções para proteger a função pública delegada.
quarta-feira, 2 de abril de 2025
Atualizado às 11:46
Reforma tributária e atividades notariais e registrais: Novas perspectivas e desafios para o sistema extrajudicial brasileiro
I -Introdução
A promulgação da EC 132, de 20/12/23, consubstanciou a mais profunda e ambiciosa reforma tributária das últimas décadas no ordenamento jurídico brasileiro. Após anos de debates interinstitucionais, a reforma tributária consagrou a substituição de cinco tributos - PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS - por um modelo de IVA - Imposto sobre Valor Agregado dual, composto pela CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços, de competência Federal, e pelo IBS - Imposto sobre Bens e Serviços, de competência compartilhada entre Estados e municípios, além da criação do IS - Imposto Seletivo, de natureza extrafiscal. O novo arranjo normativo busca racionalizar a tributação sobre o consumo, promover maior neutralidade econômica, simplificar obrigações acessórias e reduzir litígios fiscais.
Neste cenário de reconfiguração estrutural do sistema tributário, impõe-se uma análise detida acerca dos impactos dessa transformação sobre setores específicos da atividade econômica e institucional brasileira - entre eles, os serviços notariais e de registro, cuja relevância transcende os limites do mercado para alcançar o âmago da segurança jurídica, da cidadania e do exercício da função pública em regime de delegação. Titulares de delegações do Poder Público, os notários e registradores exercem funções típicas de Estado sob regime de responsabilidade pessoal e com custeio próprio, em um modelo híbrido que concilia deveres públicos com gestão privada, demandando uma leitura tributária que reflita suas peculiaridades institucionais.
A proposta deste artigo é justamente investigar os efeitos jurídicos, fiscais e operacionais da reforma tributária sobre os cartórios brasileiros. Busca-se compreender de que forma o novo sistema de tributação sobre o consumo - em especial a possível incidência do IBS e da CBS - afetará a estrutura de custos, a natureza jurídica da remuneração percebida pelos delegatários e os impactos para a universalização dos serviços extrajudiciais. O estudo abordará também os desafios inerentes à transição normativa, às adaptações técnicas exigidas e ao papel das entidades representativas na construção de uma regulação infraconstitucional que respeite as especificidades do serviço público delegado.
II - Panorama geral da reforma tributária: Princípios, tributos e transição
A EC 132/23 representa um marco na arquitetura tributária brasileira ao substituir o caótico e fragmentado modelo de tributação sobre o consumo por uma estrutura de inspiração internacional, calcada em princípios de neutralidade, simplicidade, transparência e eficiência arrecadatória. A espinha dorsal da reforma repousa na instituição de um modelo dual de IVA - Imposto sobre Valor Agregado, que incorpora dois novos tributos: a CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços, de competência da União, e o IBS - Imposto sobre Bens e Serviços, compartilhado entre Estados, Distrito Federal e municípios. A estes soma-se o IS - Imposto Seletivo, de natureza regulatória, com foco em bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Um dos pontos centrais da mudança é o princípio do destino, segundo o qual os tributos passarão a ser recolhidos no local de consumo do bem ou serviço, em oposição ao modelo anterior baseado na origem. Tal modificação busca corrigir distorções competitivas e promover maior equidade federativa, mas também impõe novos desafios operacionais, sobretudo para atividades com atuação local e prestação concentrada, como os serviços extrajudiciais.
Além disso, o novo sistema estabelece o regime de não cumulatividade plena, permitindo o creditamento amplo de tributos ao longo da cadeia produtiva. Essa característica, fundamental em IVAs modernos, visa a evitar a tributação em cascata, típica do atual modelo brasileiro, mas pode gerar distorções quando aplicada a setores que não operam com insumos ou cadeia produtiva tradicional - como é o caso dos cartórios.
A transição para o novo sistema será longa e escalonada. Entre 2026 e 2033, haverá um período de convivência entre o sistema atual e o novo modelo, com a aplicação progressiva da CBS e do IBS e a redução proporcional de PIS, Cofins, ICMS e ISS. Esse período de transição é crucial para o amadurecimento das normas complementares, a adaptação dos contribuintes e a regulamentação das peculiaridades de setores específicos, incluindo os serviços notariais e registrais.
A reforma também prevê mecanismos de compensação federativa, como o FDR - Fundo de Desenvolvimento Regional e o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, buscando mitigar os impactos redistributivos entre os entes federados. Tais medidas têm impacto indireto sobre a sustentabilidade da atividade cartorária, sobretudo nos municípios menores, onde a presença do cartório representa, muitas vezes, o único elo entre o cidadão e a Administração Pública.
Em suma, o novo modelo busca promover justiça fiscal e eficiência econômica, mas seu sucesso dependerá da capacidade do Estado e dos setores impactados em traduzir princípios constitucionais em normas infraconstitucionais justas, equilibradas e sensíveis às especificidades institucionais. No caso dos cartórios, essa sensibilidade é não apenas desejável, mas indispensável.
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