Planos de saúde x surdos: Libras como direito fundamental
Artigo destaca a libras como direito fundamental dos consumidores surdos nos planos de saúde, evidenciando o dever legal das operadoras e os riscos jurídicos da falta de acessibilidade.
terça-feira, 25 de março de 2025
Atualizado às 14:34
1. Introdução
As pessoas surdas, as quais se constituem como sujeitos através da Libras - Língua Brasileira de Sinais, enfrentam barreiras linguísticas no acesso a vários direitos básicos, dentre eles, o de serviços de saúde suplementar.
Para esses consumidores, a acessibilidade garantida através da Libras, seja através da formação linguística de funcionários ou por meio de um profissional tradutor intérprete de Libras é uma condição essencial para garantir dignidade, segurança, acesso à informação, comunicação eficiente e um atendimento humanizado. E essa condição toma feição através de inúmeras legislações vigentes, conforme abordado adiante.
Apesar disso, operadoras de planos de saúde frequentemente descumprem o dever de oferecer intérpretes qualificados, perpetuando a exclusão de um grupo que depende da Libras para exercer seus direitos fundamentais. A responsabilidade das operadoras nesse cenário é inegável, sustentada por um arcabouço jurídico robusto que abrange normas constitucionais, consumeristas e de inclusão.
2. O direito dos surdos à comunicação na saúde
2.1. A Libras como direito fundamental
A CF/88 estabelece a saúde como direito universal (art. 196) e a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III). Para os surdos, esses princípios só se concretizam com a garantia de comunicação acessível. A lei 10.436/02 reconhece a Libras como meio legal de comunicação e expressão (art. 1º), definindo-a como um sistema linguístico visual-motor com estrutura gramatical própria, essencial aos sujeitos surdos. Esse reconhecimento vai além da técnica, já que a Libras é um pilar da identidade cultural surda, protegida pelo princípio da igualdade (art. 5º, caput, da CF).
Já o art. 3º da lei 10.436/02 impõe às empresas concessionárias de serviços públicos - e aqui inclui-se operadoras de saúde privadas - o dever de assegurar atendimento adequado aos surdos. Em contextos médicos, como consultas, internações ou cirurgias, a ausência de intérpretes compromete a compreensão de diagnósticos, tratamentos e orientações, violando o direito fundamental à informação (art. 5º, XIV, da CF) e à saúde (art. 196, CF).
A jurisprudência reforça essa interpretação: o STJ, ao julgar casos de direitos fundamentais, tem destacado que a efetividade de garantias constitucionais exige adaptações às necessidades específicas de grupos vulneráveis, que para além dos direitos básicos do consumidor, também deve ter respeitada sua forma de acesso à informação, seus meios de comunicação, de sorte a exercer, em igualdade de condições, os direitos básicos1, sob pena de vulneração à dignidade humana da pessoa deficiente.2
2.2. Regulamentação do profissional intérprete
O decreto 5.626/05, que regulamenta a lei 10.436/02, exige formação em curso superior de tradução e interpretação com habilitação em Libras (art. 17). Já a lei 12.319/10 define as atribuições do intérprete profissional, incluindo a mediação da comunicação entre surdos e ouvintes em contextos formais, como serviços de saúde (art. 6º, I). Esses dispositivos rejeitam categoricamente soluções improvisadas, como o uso de funcionários sem treinamento ou domínio da língua.
Em se tratando de exercício da profissão de tradutor, intérprete e guia-intérprete, a lei 14.704/23, ao alterar a lei 12.319/10, estabeleceu (art. 4º) ser algo privativo aos diplomados em: curso de educação profissional técnica de nível médio em tradução e interpretação em Libras (inciso I); curso superior de bacharelado em tradução e interpretação em Libras - língua portuguesa, em Letras com habilitação em tradução e interpretação em Libras ou em Letras - Libras (inciso II); outras áreas de conhecimento, desde que possua diploma de cursos de extensão, de formação continuada ou de especialização, com carga horária mínima de 360 horas, e que tenha sido aprovado em exame de proficiência em tradução e interpretação em Libras - língua portuguesa (inciso III).
A exigência de profissionalização decorre da complexidade da Libras, que exige fluência, conhecimentos de linguística, cultura surda e ética profissional. Em situações médicas, por exemplo, problemas conceituais de interpretação de uma língua para outra podem levar a intervenções equivocadas, com riscos à integridade física e psicológica dos pacientes.
2.3. Estatuto da Pessoa com Deficiência
O Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15) amplia essas garantias. O art. 4º assegura aos surdos o direito à igualdade de oportunidades, vedando toda forma de discriminação, definida no § 1º como qualquer ação ou omissão que prejudique o exercício de direitos fundamentais. O art. 9º, III, determina a disponibilização de recursos humanos - como intérpretes - para garantir atendimento em igualdade de condições, enquanto o art. 20 obriga as operadoras a oferecer os mesmos serviços a todos os clientes, sem distinção. O art. 24, por sua vez, prevê o acesso pleno à informação por meio de tecnologias assistivas, categoria que abrange o acesso à Libras.
A violação dessas normas é grave. A recusa em fornecer intérpretes não apenas contraria a legislação, mas configura um ato discriminatório passível de responsabilização civil (art. 927, CC), especialmente por dano moral.
3. A relação consumerista e os direitos dos surdos
3.1. Enquadramento no CDC
A relação entre surdos e operadoras de planos de saúde é regida pelo CDC. Os arts. 2º e 3º enquadram o surdo como consumidor e a operadora como fornecedora, conforme consolidado pela súmula 608 do STJ3. A hipossuficiência dos surdos em relações de consumo, quando não promovida plena acessibilidade é evidente: sem intérpretes qualificados, esses consumidores ficam em desvantagem técnica e informacional. O art. 4º, III, do CDC estabelece a boa-fé objetiva como princípio norteador, exigindo que as operadoras atuem com transparência e lealdade. Negar acessibilidade aos surdos viola esse dever, configurando uma prática abusiva que pode ser questionada judicialmente.
3.2. Interpretação contratual inclusiva
Os contratos de planos de saúde devem ser interpretados de forma inclusiva, conforme o art. 47 do CDC, que determina a leitura mais favorável ao consumidor, e o art. 421 do CC, que consagra a função social do contrato. Nesse cenário, Cláusulas de contratos de planos de saúde que preveem cobertura de serviços adicionais devem abarcar intérpretes de Libras, sem prejuízo do acompanhante maior de idade que será de livre indicação da paciente em consultas, exames e procedimentos realizados em unidades de saúde públicas ou privadas, de acordo com o art. 19-J, inserido na lei 8.080/1990 (lei orgânica da saúde) pela lei 14.737/23.
3.3. Combate à discriminação
Ademais, a ausência de acessibilidade pode ser considerada uma prática discriminatória, conforme art. 4º, § 1º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Tratar a necessidade de intérpretes como secundária marginaliza os surdos, configurando uma distinção que fere o princípio da igualdade substancial.
O STJ já reconheceu que a recusa indevida de cobertura por operadoras agrava a vulnerabilidade dos consumidores, ensejando danos morais, uma vez que agrava a situação de aflição e angústia do sujeito4.
4. Impactos da inacessibilidade e a responsabilidade das operadoras
4.1. Danos à comunidade surda
O Judiciário tem se posicionado firmemente em favor dos surdos.
No agravo de instrumento 2213691-63.2023.8.26.0000, o TJ-SP garantiu intérprete de Libras em todos os atendimentos médicos da agravante surda que litigava contra operadora de plano de saúde. O Tribunal reconheceu que garantir a acessibilidade é obrigação da operadora, conforme o Estatuto da Pessoa com Deficiência, arts. 20 e 24, e que a ausência de intérpretes em consulta corresponde a limitar diretamente o poder de comunicação da pessoa com deficiência, ofendendo sua autonomia. A operadora foi compelida a fornecer profissionais qualificados para todas as consultas, sob pena de multa, reforçando seu dever legal de inclusão.
Outros casos, como no julgamento da apelação cível 1008585-83.2021.8.26.00035, agravo de instrumento 2108901-67.2019.8.26.00006 e do REsp 1.349.188/RJ, confirmam essa obrigação das operadoras, destacando a Libras como essencial à igualdade no acesso à saúde suplementar.
Essas decisões sinalizam uma tendência protetiva, pressionando as operadoras a cumprir a legislação, sob pena de condenações por danos morais e materiais. A jurisprudência é um alerta: o acesso de serviços de saúde com acessibilidade aos surdos não é negociável, e as empresas que negligenciam esse dever enfrentam riscos jurídicos significativos.
5. Conclusão
As operadoras de planos de saúde têm a obrigação jurídica e ética de garantir acessibilidade aos consumidores surdos, reconhecendo a Libras como ferramenta indispensável de inclusão. A CF/88, o CDC, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e leis específicas como a 10.436/02 formam um arcabouço normativo que exige a oferta de intérpretes qualificados, nos rigores normativos. A interpretação contratual inclusiva e a jurisprudência protetiva reforçam esse dever, enquanto a negligência expõe as empresas a litígios, sanções e perda de reputação - estendendo ainda mais a marginalização da pessoa surda.
Investir em políticas de acessibilidade - como a contratação de profissionais tradutores intérpretes - é uma decisão estratégica. Além de cumprir a lei, as operadoras podem se destacar em um mercado competitivo, conquistando a confiança de consumidores que valorizam equidade e qualidade.
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1 REsp n. 1.349.188/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/5/2016, DJe de 22/6/2016.
2 STJ - REsp: 931513 RS 2007/0045162-7, Relator: Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS (JUIZ FEDERAL CONVOCADO DO TRF, Data de Julgamento: 25/11/2009, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 27/09/2010
3 Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão
4 STJ - AgInt no AREsp: 1263533 SP 2018/0061399-9, Relator.: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 16/05/2019, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/05/2019
5TJ-SP - Apelação Cível: 1008585-83.2021 .8.26.0003 São Paulo, Relator.: Costa Netto, Data de Julgamento: 22/06/2023, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/06/2023
6 TJ-SP - AI: 21089016720198260000 SP 2108901-67.2019 .8.26.0000, Relator.: Edson Luiz de Queiróz, Data de Julgamento: 01/07/2019, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 01/07/2019