O Dec. 12.375 e a temporalidade da carta patente dos oficiais das FFAA
Análise da constitucionalidade do decreto Federal 12.375/25 que passou a estabelecer limite temporal para a carta patente dos oficiais das Forças Armadas.
terça-feira, 25 de março de 2025
Atualizado às 13:54
O presidente da República, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso IV, da Constituição1, e tendo em vista o disposto no art. 19, § 1º e § 2º, da lei nº 5.821, de 10/11/1972 2 (lei de promoção de oficiais das FFAA), e no art. 16, caput e § 1º, da lei 6.880, de 9/12/1980 3 (Estatuto dos Militares), editou o Decreto 12.375, de 6/2/25, dispondo sobre a carta patente dos oficiais das Forças Armadas.
O questionamento sobre o referido decreto surge na medida em que a referida norma operou uma distinção da validade da carta patente no parágrafo único de seu art. 2º, dispondo que as cartas patentes são devidas aos oficiais das Forças Armadas: I - de carreira, caso em que permanecerão válidas quando da passagem à inatividade; e II - temporários, enquanto permanecerem em serviço ativo.
O presidente da República pode delimitar a validade da carta patente dos oficiais? Para uma conclusão mais acertada convém relembrar certos aspectos importantes para a questão.
Em primeiro lugar, que a Constituição Federal no art. 142, § 3º, inciso I, ao mesmo tempo em que diz que as patentes, com prerrogativas, direitos e deveres a elas inerentes, são conferidas pelo presidente da República, também diz que elas são asseguradas em plenitude aos oficiais da ativa, da reserva ou reformados, sendo-lhes privativos os títulos e postos militares e, juntamente com os demais membros, o uso dos uniformes das Forças Armadas, comando constitucional inclusive assegurado aos militares estaduais como se observa do art. 42, § 1º, da Carta Magna.
O termo "conferida" é o particípio passado do verbo conferir. Conferir, na espécie, significa conceder, dar, mas sem espaço para discricionariedade porque a patente é concedida por ocasião da promoção do oficial ao posto correspondente, seja a primeira delas após o curso de formação específico, seja a subsequente como oficial superior ou general. Desde logo se vê que a concessão da patente dos oficiais não é uma discricionariedade do Presidente da República [e nem do Governador do Estado e do Distrito Federal], mas sim um ato vinculado que lhe é atribuído em razão de deter a autoridade suprema sobre as Forças Armadas (mas lembrem, autoridade suprema implica em responsabilidade suprema de seu detentor, art. 85, CF, lei 1079/1950, art. 4º).
Natureza do decreto 12.375/25
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, os decretos se inserem dentro do poder regulamentar do qual é dotada a função normativa do Poder Executivo. Pode ser definido como aquele que cabe ao Chefe do Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, de editar normas regulamentares à lei, para sua fiel execução.
A autora lembra que doutrinariamente, admitem-se dois tipos de regulamentos: o regulamento executivo e o regulamento independente ou autônomo. O primeiro, complementa a lei ou, nos termos do art. 84, IV, da Constituição, contém normas "para fiel execução da lei"; ele não pode estabelecer normas contralegem ou ultralegem. Ele não pode inovar na ordem jurídica, criando direitos, deveres, obrigações, proibições, medidas punitivas, até porque ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei, conforme art. 5º, II, da Constituição; ele tem que se limitar a estabelecer normas sobre a forma como a lei vai ser cumprida pela Administração. O regulamento autônomo ou independente inova na ordem jurídica, porque estabelece normas sobre matérias não disciplinadas em lei; ele não completa nem desenvolve nenhuma lei prévia4.
Parece não haver dúvida que o decreto 12.375/25 é um decreto regulamentar, editado conforme expresso em seu texto, tendo em vista o disposto no art. 19, § 1º e § 2º, da lei 5.821, de 10/11/1972 (lei de promoção dos oficiais das FFAA), e no art. 16, caput e § 1º, da lei 6.880, de 9/12/1980 (Estatuto dos Militares).
Posto, patente e carta patente
Definida a natureza do decreto da carta patente, convém, agora, definir os termos que lhe são correlatos. Leciona Fernando Hugo Miranda Telles, que posto é o grau hierárquico do oficial, conferido ao militar pelo presidente da República ou autoridade por ele delegada5 e confirmado na chamada "carta-patente", documento oficial que indica o atual grau do oficial e os anteriores, com as respectivas datas de promoção. Em regra, o oficial poderá atingir todos os postos de seu quadro em tempo de paz [galgando o círculo de oficiais subalternos, intermediários, superiores e de generais], a exceção será apenas aos postos de almirante, marechal e marechal do ar, pois somente existentes em tempo de conflito armado6. Anota Jorge Luiz Nogueira de Abre que o posto é inseparável da patente7, podendo-se afirmar então que a patente - qualidade do militar oficial, tem uma maior amplitude, e nela estão incluídos todos os postos do oficialato [tenente, coronel, general etc].
Mas posto e carta patente são termos distintos, que não se confundem, valendo a pena transcrever a síntese dada pela Associação dos Oficiais do Paraná em relação às instituições militares estaduais, com pertinência - guardadas as devidas proporções, às Forças Armadas:
"Para o senso comum da população civil patente tornou-se sinônimo de posto, mas a carta patente é um diploma confirmatório em que são definidos a situação hierárquica e o quadro a que pertence o Oficial, a fim de fazer prova dos direitos e deveres assegurados por lei ao possuidor.
Prevista nas Constituições Federal e Estadual, a carta patente garante as prerrogativas, direitos e deveres do Oficial e são conferidas pelo governador do Estado, conforme previsto na lei Estadual 179, de 24/12/1948.
O decreto Estadual 3.984, de 2/12/2004, com a alteração introduzida pelo decreto 4.204, 2/4/2012, regulamenta o modelo, as características e os procedimentos para expedição da carta patente, e são asseguradas em sua plenitude aos oficiais da ativa, da reserva e aos reformados da PMPR.
A carta patente é conferida ao Oficial quando ele ingressa no oficialato, ou seja, ao ser promovido ao posto de 2º Tenente. Ao ser promovido ao posto de major (oficial superior), fará jus à respectiva carta patente de oficial superior da Polícia Militar.
A carta patente é um título conferido ao oficial, que só o perderá se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível por decisão do TJ no caso do Estado do Paraná (art. 45, §4º cc art. 108, §2º da Constituição Estadual)"8.
Conclusão, a patente é a qualidade marcante do militar oficial, o posto é o seu grau hierárquico, posto e patente são indissociáveis e, a carta patente é o documento que espelha esta garantia constitucional daquele que a detém.
Da (in) constitucionalidade do decreto 12.375/25
Pois bem, chegamos agora ao ponto fulcral da questão, o limite de validade da carta patente dos oficiais temporários das Forças Armadas, visto que o art. 2º do decreto, dispôs que as cartas patentes são devidas aos oficiais das Forças Armadas: I - de carreira, caso em que permanecerão válidas quando da passagem à inatividade; e II - temporários, enquanto permanecerem em serviço ativo.
Ou seja, o decreto presidencial estabeleceu um limite de validade para a carta patente do oficial temporário, limite inexistente no decreto anterior que regulava a matéria, de número 2.144/1997, na mesma oportunidade revogado.
Ao enumerar os elementos obrigatórios da carta patente em seu art. 3º9, o decreto 12.375/25, previu no inciso XI, a data prevista para o licenciamento, no caso de oficial temporário, previsão que não constava no decreto anterior, mas que servirá para delimitar - segundo o decreto atual, a validade da carta patente daquele oficial.
E, quem são os oficiais temporários em atividade nas Forças Armadas? Nos termos do art. 3º, § 1º, alínea 'a', inciso II, com a redação dada pela lei 13.954/19, são aqueles incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar, obrigatório ou voluntário, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar10 ou durante as prorrogações desses prazos.
Ora, o decreto da carta patente se olvidou da lei 7.150/1983, que fixa os efetivos do exército em tempo de paz, cujo § 2º, do seu art. 2º, considera como militares temporários os oficiais e praças de quadros complementares admitidas ou incorporados por prazos limitados, na forma e condições estabelecidas pelo Poder Executivo (alínea 'b')11 e, os oficiais da reserva não remunerada, quando convocados (alínea 'a'). A citação é feita porque não só os oficiais temporários, mas também os de carreira, também podem integrar a reserva não remunerada, por exemplo, o oficial de carreira em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, conforme prevê o art. 142, § 3º, II, da Carta Magna, casos frequentes de oficiais de carreira aprovados em concursos da magistratura ou Ministério Público, Polícia Federal, e outros quejandos. Passando a atuar em outras carreiras esses oficiais não perdem - nem têm restringidos os respectivos posto e patente, como o médico que não tem seu registro profissional cassado [a não ser em hipóteses graves previstas em lei] pelo simples fato de ter adotado outra carreira ou se aposentado.
Poderia então o presidente da República, limitar - via decreto, a validade da carta patente dos oficiais temporários ao período enquanto permanecerem no serviço ativo?
Salvo entendimento contrário e de todo respeitado, a resposta que se impõe é negativa. Um olhar atento ao inciso I, do § 3º, do art. 142 da Constituição Federal deixa bem claro que as patentes, com prerrogativas, direitos e deveres a elas inerentes, são asseguradas em plenitude aos oficiais da ativa, da reserva [sem distinguir se remunerada ou não] ou reformados. O termo das patentes afasta qualquer ingerência, ainda que presidencial, quanto às prerrogativas, direitos e deveres do oficial que a detém.
Para Jorge Luiz Nogueira de Abreu, a Carta Magna de 1988, mantendo a tradição, preconiza que as patentes e os postos são privativos dos oficiais da ativa, da reserva e reformados. Todavia, poderão perde-los, se forem declarados indignos ou incompatíveis com o oficialato, por decisão de tribunal militar, em tempo de paz, ou tribunal especial em tempo de guerra. Portanto, nem a reforma, nem a transferência para reserva, remunerada ou não, acarretam a perda de posto e patente.
Em outras palavras, uma vez conferidos posto e patente ao militar das Forças Armadas, a titularidade do mesmo torna-se vitalícia, razão pela qual será mantida, independentemente da condição jurídica em que o oficial se encontre (ativa, reserva, remunerada ou não, ou reformado). Só com a dupla perda prevista no art. 142, § 3º, VI, da CF/1988, é que o oficial será privado de seu posto e patente12.
Portanto, assegurada constitucionalmente em sua plenitude, a patente dos oficiais temporários não pode ser relativizada - e nem a carta patente que é documento oficial que indica o grau atual do oficial e os anteriores com as respectivas datas de promoção - agora expedida em meio digital, facultado o meio físico (art. 5º do decreto).
Conclusão inafastável que o inciso II, do art. 2º; e o inciso XI, do art. 3º, do decreto 12.375/25 contém normas de natureza contralegem, melhor dizendo contra Lex Mater, violando a plenitude da patente dos oficiais, objeto da tutela do inciso I, do § 3º, do art. 142 da Constituição Federal.
E caberia a interposição de ação direta de inconstitucionalidade do decreto? Na jurisprudência do STFl iremos encontrar admissão do uso da ação direta de inconstitucionalidade contra atos normativos infralegais que inovem originariamente no ordenamento, em confronto direto com o texto constitucional. Nesse sentido, ADIn 3481, relator ministro Alexandre de Moraes, julgada em 8/3/21; também ação direta contra decreto que conferiu à Polícia Rodoviária Federal a prerrogativa de lavrar o TCO - Termo Circunstanciado de Ocorrênciade que trata o art. 69 da lei 9.099/1995, ADIn 6245, relator ministro Roberto Barroso, julgado em 22/2/23; ou ação direta contra instrução normativa 34/21, editada pelo diretor Geral do DETRAN/DF, ADIn 6749, relatora ministra Rosa Weber, julgada em 3/08/2021. A resposta, portanto, em princípio é afirmativa.
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1 CF, Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução.
2 LPO, (...) art. 19. O ato de promoção é consubstanciado: a) por decreto, para os postos de oficial-general e de oficial superior; e b) por portaria dos respectivos Ministros Militares, para os postos de oficial intermediário e de oficial subalterno.§ 1º O ato de nomeação para o posto inicial de carreira e os atos de promoção àquele posto, ao primeiro de oficial superior e ao primeiro de oficial-general acarretam expedição de carta-patente.§ 2º A promoção aos demais postos é apostilada à última carta-patente expedida.
3 EM, art. 16. Os círculos hierárquicos e a escala hierárquica nas Forças Armadas, bem como a correspondência entre os postos e as graduações da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, são fixados nos parágrafos seguintes e no Quadro em anexo. § 1° Posto é o grau hierárquico do oficial, conferido por ato do Presidente da República ou do Ministro de Força Singular e confirmado em carta patente.
4 DI PRIETO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 19ª edição, São Paulo: Atlas, 2006, pp. 102; 240-241.
5 Decreto 12.375/2025, art. 4º As cartas patentess serão assinadas: I - pelo Comandante da respectiva Força Armada, quando de oficial-general; e II - por autoridade designada pelo Comandante da respectiva Força Armada, quando dos demais oficiais.
6 TELLES, Fernando Hugo Miranda et al, Estatuto dos Militares Comentado, 2ª edição, Curitiba: Juruá, 2020, p. 85.
7 ABREU, Jorge Luiz Nogueira de. Direito Administrativo Militar, 3ª edição, Leme: Editora Mizuno, 2023, p.348.
8 Disponível em https://www.assofepar.org.br/carta-patente-uma-prerrogativa-do-oficial acesso em 21.03.2025.
9 Art. 3º São elementos obrigatórios da carta patente: I - o Brasão das Armas da República; II - a denominação da respectiva Força Armada; III - o título do documento: a) "carta patente DE OFICIAL"; b) "carta patente DE OFICIAL SUPERIOR"; ou c) "CARTA PATENTE DE OFICIAL-GENERAL"; IV - os dados do oficial: a) posto; b) nome; c) número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas; e d) corpo, arma, quadro ou serviço; V - o ato que motivou a lavratura; VI - a edição do Diário Oficial da União que publicou o ato; VII - o decreto ou portaria que regulamentou a expedição da carta patente; VIII - a data da lavratura; IX - os anos transcorridos desde a Independência e desde a Proclamação da República; X - o nome e a assinatura de quem a confere e de quem a lavra; XI - a data prevista para o licenciamento, no caso de oficial temporário; e XII - o registro do arquivo.
10 lei 4.375, de 17 de agosto de 1964 - LSM.
11 Encontrando semelhança com a previsão que se encontra no art. 3º, § 1º, alínea 'a', II, do Estatuto dos Militares.
12 ABREU, Jorge Luiz Nogueira de. Direito Administrativo Militar, 3ª edição, Leme: Editora Mizuno, 2023, p. 349.