A nova MP do consignado: Crédito, dignidade e seus limites éticos
Crédito resolve ou aprisiona? Este artigo confronta a nova MP do consignado com a filosofia de Sandel e o Direito do consumidor, revelando dilemas morais por trás da dívida moderna.
terça-feira, 25 de março de 2025
Atualizado às 13:51
1. O problema que virou lei: Superendividamento como questão de dignidade
O Brasil vive uma crise silenciosa: milhões de pessoas estão presas em um ciclo de dívidas que consome não só sua renda, mas sua liberdade. E quando a dívida impede o acesso ao básico - comida, saúde, moradia - já não é mais apenas uma questão financeira: é uma violação da dignidade humana.
Por isso, em 2021, foi criada a lei 14.181, a chamada lei do superendividamento, que alterou o CDC para incluir mecanismos de:
- Prevenção ao superendividamento;
- Renegociação coletiva das dívidas;
- Proteção ao mínimo existencial do consumidor.
O CDC, desde sua origem, sempre protegeu o consumidor como parte vulnerável, e agora passa a tutelar também o "consumidor ferido" - aquele que já caiu no abismo do crédito sem volta.
Mas será que, para proteger o superendividado, a solução deve ser... oferecer mais crédito?
2. A nova MP do consignado privado: Alívio ou armadilha?
Em março de 2025, o governo federal lançou uma nova medida provisória criando o consignado privado - uma linha de crédito para trabalhadores da iniciativa privada com desconto em folha via eSocial.
A proposta é, à primeira vista, positiva: taxas menores, uso do FGTS como garantia, possibilidade de migrar dívidas mais caras. A medida inclui MEIs, empregados domésticos e rurais - grupos historicamente excluídos do sistema financeiro formal.
Mas é aqui que o debate precisa se aprofundar. O Estado está:
- Protegendo o consumidor ou abrindo um novo mercado sobre ele?
- Facilitando crédito ou financiarizando o salário, transformando-o em ativo bancário?
- Reduzindo o superendividamento ou apenas reorganizando as dívidas em novos moldes, agora mais "modernos"?
Para responder essas perguntas, precisamos sair da lógica fria dos juros e entrar na lógica dos valores.
É aqui que entra Michael Sandel.
3. Sandel: Do mercado como ferramenta ao mercado como ideologia
Michael Sandel, filósofo político e professor de Harvard, nos provoca com uma pergunta incômoda em seu livro "O que o dinheiro não compra":
"Que papel os mercados devem desempenhar na vida pública e nas relações pessoais?"
Para Sandel, nas últimas décadas, deixamos de viver em uma economia de mercado e passamos a viver em uma sociedade de mercado, onde tudo está à venda: saúde, educação, segurança, justiça, até mesmo o tempo e o corpo das pessoas.
E o mais grave: isso aconteceu sem debate público. Por medo de entrar em discussões morais, deixamos os mercados decidirem por nós.
Sandel apresenta exemplos reais e perturbadores:
- Na Califórnia, presos podem pagar por celas melhores.
- Empresas lucram com apólices de seguro de vida de funcionários falecidos - como o Walmart.
- Crianças recebem para ler, obesos para emagrecer, e investidores ganham quando alguém morre cedo.
Esses casos não apenas colocam preço em tudo, mas corrompem o sentido dos próprios bens.
"Algumas coisas boas da vida são corrompidas quando submetidas à lógica de mercado." - Michael Sandel
4. O que Sandel diria da nova política de crédito consignado?
Sandel provavelmente não se limitaria a julgar a medida como boa ou má. Ele faria perguntas que nos deixam inquietos:
- Estamos combatendo a pobreza... ou apenas transformando a necessidade humana em oportunidade de negócio?
- Se o salário é transformado em garantia, ele ainda é símbolo de liberdade ou já é parte do endividamento programado?
- O crédito fácil é liberdade... ou uma nova forma de servidão disfarçada de modernidade?
- O trabalhador é um cidadão com direitos ou um ativo circulante nos balanços dos bancos?
- Quando até o FGTS - fundo destinado a proteger o trabalhador na demissão - passa a ser moeda de troca... o que ainda é sagrado nessa relação?
Sandel não traria respostas. Mas nos colocaria diante de dilemas morais que a política pública não pode ignorar. Porque a dignidade não pode ser uma cláusula opcional do contrato.
5. O que diria um economista? E o que diria um sociólogo?
Um economista liberal pode argumentar:
- O risco do crédito caiu;
- As taxas são menores;
- A inadimplência será reduzida;
- O mercado se tornou mais eficiente.
Para ele, trata-se de um avanço técnico, objetivo e necessário.
Mas se colocarmos um sociólogo no debate - como Sandel propõe - ele poderá enxergar outro ângulo:
- Que tipo de sociedade estamos incentivando ao resolver problemas estruturais com soluções financeiras?
- Estamos realmente promovendo autonomia... ou apenas reorganizando a dependência com aparência de escolha?
- Que impacto tem a antecipação constante do futuro (salário, FGTS, aposentadoria) na autoimagem do trabalhador e na saúde mental das famílias?
- E se a função social do Estado passa a ser facilitar crédito em vez de redistribuir oportunidades, o que isso diz sobre nosso modelo de cidadania?
O economista olha para a eficiência da engrenagem. O sociólogo pergunta quem está sendo esmagado por ela.
É o confronto entre o "pode funcionar" e o "é justo?". Entre o "gira melhor" e o "melhora a vida?". Entre o que é viável e o que é vivível.
6. O Direito do consumidor e o valor da dignidade
O CDC nasceu com uma missão: proteger pessoas, não proteger contratos.
Sua alma está na dignidade da pessoa humana, no equilíbrio, na boa-fé, na proteção contra o abuso.
Crédito, por melhor que seja, não pode se sobrepor à liberdade do consumidor. E liberdade sem informação, sem compreensão, sem educação... não é liberdade. É ilusão.
Se essa nova linha de consignado não for acompanhada de:
- Educação financeira honesta e acessível;
- Regras claras para impedir assédio e pressão;
- Limites para preservar o mínimo vital;
...então ela poderá ser apenas uma nova face de uma velha opressão - agora digital, legal e descontada em folha.
7. Conclusão: O que estamos vendendo quando tudo está à venda?
Michael Sandel nos alerta: o dinheiro não apenas compra. Ele transforma. E, às vezes, corrompe.
Quando tudo pode ser convertido em crédito, inclusive o futuro do trabalhador, corremos o risco de vender não apenas o que temos - mas o que somos.
A nova MP do consignado pode representar um alívio para alguns... mas também pode ser mais um passo em direção a uma sociedade onde o valor das pessoas depende da margem consignável.
No fim, fica a pergunta que Sandel nos ensina a fazer:
"É isso que queremos como projeto de sociedade?"
E mais:
"Será que, ao tentar salvar o cidadão do superendividamento, não estamos apenas oferecendo a ele uma nova coleira, mais longa e mais polida?"
A resposta não está em nenhuma planilha. Está no rosto da mãe que faz contas com o contracheque na mão. No silêncio do pai que esconde da família a cobrança automática no app do banco. Na angústia de quem já não sabe se vive para trabalhar... ou apenas para pagar.
Porque quando o crédito vira prisão e a dívida vira destino, não temos mais uma economia funcional. Temos um sistema que vende futuro em parcelas - com juros na alma.
E se até a esperança puder ser descontada em folha... o que ainda nos resta como seres humanos?