A fina linha que divide os crimes sexuais
A fina linha que divide os crimes sexuais é um desafio que o Poder Público deve enfrentar dia após dia em prol da dignidade das mulheres.
sexta-feira, 28 de março de 2025
Atualizado às 10:05
Infelizmente, ainda é muito comum que mulheres sejam vítimas de crimes sexuais cuja relação inicialmente seja consentida. Em muitos casos, a dificuldade é a de saber qual crime foi praticado, diante da proximidade principalmente do crime de violação sexual mediante fraude e o crime de estupro.
O combinado antes e durante a relação sexual define se há crime e o tipo penal, como por exemplo, a mulher pede para que o homem esteja usando preservativo durante todo o ato sexual, mas tal homem não respeita a vontade da mulher, ou retirando o preservativo ou deixando de utilizar, ambas condutas sem que a mulher perceba. O ato de retirar ou não utilizar o preservativo sem a anuência da parceira é entendido hoje como crime de violação sexual mediante fraude, conforme prevê o art. 215 do CP:
Violação sexual mediante fraude
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
Essa prática criminosa ganhou um nome: stealthing, e há um projeto de lei para especificar a conduta, projeto de lei esse de número 965/22, de origem da Câmara dos Deputados. Caso vire lei, o texto é esse:
Art. 1º. O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar acrescido do artigo 215-B, com o texto abaixo: Art. 215-B Remover propositalmente o preservativo, durante o ato sexual, ou deixar de colocá-lo, sem o consentimento do parceiro ou da parceira. Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, se o ato não constitui crime mais grave.
Mas e se, durante o ato sexual, a mulher perceber que o homem não está usando o preservativo e disser "pare, você não está usando a camisinha" e o homem não parar? Nesse caso, o crime passa a ser o de estupro, mesmo que esse ato do homem impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da mulher, pois o ato de não parar contra a vontade da mulher é tido como um ato de violência.
Estupro
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Já ouviu falar de amigos que conhecem uma mulher e combinam, sem que ela saiba, de revezarem na cama com ela, em um quarto totalmente escuro durante o ato sexual?
Poderia ainda ser entendido o fato como estupro, inclusive no modo coletivo, o que aumenta a pena, entretanto, a ausência de violência ou grave ameaça afasta esse tipo penal.
Poderia então ser crime de estupro de vulnerável, já que a mulher, sem saber que está tendo relações com outro homem, em tese, não pode oferecer resistência:
Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, OU QUE, POR QUALQUER OUTRA CAUSA, NÃO PODE OFERECER RESISTÊNCIA.
Entretanto, a não resistência da mulher se dá não porque está sob efeito de drogas ou está amarrada na cama, a impedindo de oferecer resistência, mas sim o que levou tal mulher a praticar sexo com outro homem sem saber, foi o fato de ela ter sido ludibriada pelo companheiro, ou seja, a fraude levou tal mulher ao erro, acreditando a vítima estar somente com o companheiro fixo. O crime em tal caso é o de violação sexual mediante fraude.
Em Goiás, dois irmãos gêmeos foram julgados por terem tido relações com uma mulher, sem que ela imaginasse que se tratava de homens diferentes com ela na cama, o que levou o TJ/GO a, em um primeiro momento, condenar ambos irmãos gêmeos a pagarem pensão alimentícia e terem o nome como pais na certidão de nascimento do bebê gerado pelo ato sexual fraudulento. Anos depois, foi descoberto quem verdadeiramente dos dois seria o pai.
A fina linha que divide os crimes contra as mulheres é um desafio que o poder público deve enfrentar dia após dia, pois pode-se até haver dúvida sobre qual o tipo penal dos crimes contra a dignidade sexual, mas não se pode haver dúvida sobre a continuidade da luta pelos direitos sexuais das mulheres.