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A busca e apreensão extrajudicial no marco civil das garantias

Este artigo trata da recém introduzida busca e apreensão extrajudicial de bens móveis.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Atualizado às 17:32

O decreto-lei 911, de 1º/10/69, sempre foi o principal instrumento normativo para a regulação da alienação fiduciária de bens móveis, especialmente veículos. A recente alteração promovida pelo Marco Civil das Garantias introduziu inovações relevantes, permitindo a busca e apreensão extrajudicial de bens objeto de alienação fiduciária. Tal modificação visa conferir maior celeridade à retomada de bens por parte dos credores, evitando a morosidade dos processos judiciais. Entretanto, a ampliação do poder dos credores sem a intermediação do Judiciário levanta questionamentos sobre os riscos para os consumidores, que podem se ver expostos a possíveis abusos e dificuldades na defesa de seus direitos.

Evolução legislativa e contexto normativo

O decreto-lei 911 de 1969, ao longo dos anos, sofreu adaptações para melhor regulamentar a alienação fiduciária. E, recentemente, nova alteração lhe sobreveio pela 14.711, de 30/10/23, o denominado Marco Civil das Garantias, que previu a possibilidade de o credor consolidar a propriedade do bem diretamente perante o cartório de registro de títulos e documentos, sem necessidade de ajuizamento de ação judicial. Com essa nova previsão, o procedimento judicial, antes obrigatório, tornou-se opcional, sendo substituído por um trâmite administrativo simplificado.

A nova regulamentação estabelece que, após a mora do devedor, o cartório deve notificá-lo e conceder prazo de 20 dias para o pagamento ou para a apresentação de impugnação fundamentada.

Uma vez notificado, o devedor poderá apresentar defesa administrativa para contestar a cobrança com base em diversas teses defensivas, como a inexistência da mora, cobrança indevida, encargos abusivos ou falhas na prestação de serviço do credor. Para tanto, ele pode apresentar documentos que comprovem pagamentos já realizados, indícios de renegociação, divergências no saldo devedor ou a ocorrência de cobrança excessiva de juros e encargos não pactuados. O devedor que tiver sua impugnação rejeitada pode recorrer ao Judiciário para pleitear a revisão da cobrança ou impugnar eventuais abusos no procedimento extrajudicial.

Caso o cartório reconheça a pertinência da impugnação, o procedimento de consolidação da propriedade deve ser suspenso. No entanto, se a impugnação for considerada improcedente ou não for apresentada, a propriedade do bem é consolidada em nome do credor, que pode promover sua venda.

Se não houver pagamento ou contestação aceitável, a propriedade do bem é consolidada em nome do credor, que pode promover sua venda.

No caso de recusa do devedor em entregar o bem, o credor pode requerer a busca e apreensão extrajudicial junto ao cartório, que lançará restrições no sistema de registro e emitirá uma certidão autorizando a apreensão.

Procedimento da busca e apreensão extrajudicial

O novo procedimento compreende um conjunto estruturado de etapas que visam garantir a efetiva execução extrajudicial da garantia fiduciária. Inicialmente, o credor deve comprovar a mora e requerer a notificação extrajudicial do devedor. A notificação deve ser realizada preferencialmente por meio eletrônico, com confirmação de recebimento. Na ausência dessa confirmação em três dias úteis, o cartório procederá à notificação postal com aviso de recebimento, dispensando-se a exigência de que o próprio destinatário assine o aviso, desde que o endereço seja o indicado no contrato.

Decorrido o prazo de 20 dias sem pagamento, o cartório consolidará a propriedade em favor do credor, permitindo-lhe alienar o bem para satisfação do crédito. Caso o devedor não entregue o bem espontaneamente, o credor poderá requerer a busca e apreensão extrajudicial. Nessa situação, o cartório lançará restrições de circulação e transferência do bem nos sistemas de registro e emitira a certidão de busca e apreensão.

A apreensão do bem pode resultar na imposição de multa ao devedor, caso este não tenha disponibilizado voluntariamente a coisa ao credor dentro do prazo legal, nos termos do art. 8º-B, parágrafo 11, do decreto-lei 911. Essa penalidade pode corresponder a 5% do valor da dívida, a fim de desestimular a inadimplência contumaz.

Para evitar a perda definitiva do bem, o devedor possui a possibilidade de purgar a mora, ou seja, quitar integralmente o débito pendente dentro do prazo de cinco dias úteis após a apreensão do bem. O pagamento deve incluir os valores principais, os encargos contratuais, as despesas com o procedimento extrajudicial, tributos incidentes e demais encargos previstos no contrato. Realizado o pagamento, a posse do bem é restituída ao devedor e a consolidação da propriedade é desfeita, restabelecendo-se o contrato de alienação fiduciária (art. 3º., § 2º.).

Eis, pois, um quadro sinótico do passo-a-passo da busca e apreensão extrajudicial:

1. Constatação da inadimplência: O credor verifica o atraso no pagamento e inicia o procedimento.

2. Requerimento ao cartório: O credor solicita a notificação extrajudicial do devedor.

3. Notificação ao devedor: Preferencialmente por meio eletrônico; Caso sem confirmação em 3 dias úteis? Notificação via correio com AR.

4. Prazo de 20 dias para resposta do devedor, que poderá:

  • A dívida? Procedimento encerrado;
  • Impugnação? Procedimento suspenso até análise.
  • Inerte? Procedimento de busca e apreensão extrajudicial continua.

5. Consolidação da propriedade em nome do credor: Se a impugnação for rejeitada ou o pagamento não ocorrer, o bem é transferido ao credor.

6. Pedido de busca e apreensão extrajudicial: Caso o devedor não entregue o bem, o credor solicita certidão de apreensão ao cartório; proibição de circulação e transferência até a apreensão.

7. Apreensão do bem: Pode gerar multa de 5% da dívida caso o devedor não o entregue voluntariamente.

8. Apreendido o bem, prazo de 5 dias para purgação da mora: O devedor pode pagar integralmente a dívida e reaver o bem.

9. Alienação do bem pelo credor: Se não houver purgação da mora, o bem é vendido para quitar a dívida.

Porém, remanesce a pergunta: Quem apreende o bem? A lei 14.711/23 trouxe uma importante inovação ao prever a possibilidade de busca e apreensão extrajudicial em contratos de alienação fiduciária. A nova sistemática permite ao credor consolidar a propriedade do bem sem a necessidade de intervenção do Judiciário, o que torna o procedimento mais célere. No entanto, a lei também levanta questionamentos sobre quem pode efetivamente realizar a apreensão física do bem, uma vez que não detalha com precisão os agentes autorizados para tal operação.

Sobretudo porque os textos legais que procuravam disciplinar a questão foram vetados. Nos parágrafos do art. 8-C lia-se que "O credor, por si ou por terceiros mandatários, poderá realizar diligências para a localização dos bens; os terceiros mandatários poderão ser empresas especializadas na localização de bens; que o bem poderia ser apreendido pelo oficial da serventia extrajudicial". Entretanto, foram todos vetados, gerando a lacuna legislativa e as seguintes perguntas:

O credor pode recuperar o bem diretamente? Com base nos artigos sancionados, o art. 8º-B do decreto-lei 911/69, inserido pela lei 14.711/23, permite que o credor requeira a busca e apreensão extrajudicial sem a necessidade de ordem judicial, desde que haja previsão contratual. Contudo, o dispositivo não autoriza expressamente que o credor apreenda o bem por conta própria, como ocorre em outros países sob a regra do self-help repossession.

O credor depende da colaboração do devedor para a entrega voluntária do bem ou deve recorrer a meios formais para a execução da busca e apreensão. Caso haja recusa, há previsão de multa ao devedor, conforme o art. 8º-B, §11, do decreto-lei 911/69.

A busca pode ser feita por terceiros contratados pelo credor? A lei 14.711/23 não prevê expressamente a possibilidade de o credor contratar terceiros para realizar a apreensão do bem. No entanto, na prática, empresas especializadas em recuperação de bens fiduciários podem atuar na localização do bem e intermediar sua entrega.

O art. 8º-C do decreto-lei 911/69 estabelece que o credor pode requerer a busca e apreensão diretamente ao cartório, que emitirá a certidão autorizando a operação. Contudo, a legislação não esclarece se esses terceiros podem efetuar a apreensão forçada do bem sem a anuência do devedor, o que pode gerar questionamentos sobre eventuais abusos e violações de direitos.

A busca e apreensão extrajudicial não pode envolver coibição, ameaça ou violência, sob pena de caracterizar esbulho possessório, nos termos do art. 161 do Código Penal. Assim, o credor e seus representantes devem observar os princípios da proporcionalidade e da legalidade na execução do procedimento.

A polícia pode ser acionada? A lei não impõe a participação obrigatória da polícia na busca e apreensão extrajudicial. No entanto, caso haja resistência do devedor, risco à ordem pública ou possibilidade de tumulto, é possível acionar a autoridade policial para garantir a segurança da operação.

O art. 8º-C do decreto-lei 911/69 estabelece que o cartório de registro de títulos e documentos poderá emitir uma certidão para viabilizar a apreensão, mas não prevê um mecanismo para o uso da força. Assim, caso o devedor resista, pode ser necessária a conversão do procedimento para via judicial.

O cartório executa a apreensão? Não. O cartório não possui competência para realizar a apreensão física do bem. Conforme disposto no art. 8º-C, sua função é registrar a notificação do devedor, consolidar a propriedade do bem em nome do credor e emitir a certidão de busca e apreensão. Essa certidão pode ser utilizada para restringir a circulação do bem nos registros oficiais.

A lei 14.711/23 trouxe avanços significativos na execução das garantias fiduciárias, mas ainda apresenta lacunas em relação à efetiva execução da busca e apreensão extrajudicial. Embora a norma permita ao credor solicitar a apreensão sem ordem judicial, ela não detalha expressamente quem pode efetivar a retirada do bem.

A falta de previsão específica sobre a possibilidade de contratação de terceiros para realizar a busca pode gerar questionamentos sobre a legalidade de tais práticas. Além disso, a ausência de um mecanismo formal para o uso da força pode levar à conversão do procedimento para a via judicial em caso de resistência do devedor.

Riscos para o consumidor e possíveis abusos

A busca e apreensão judicial é uma realidade em outros países. Nos Estados Unidos, a prática conhecida como "self-help repossession" permite que credores retomem a posse de bens, como veículos, sem necessidade de intervenção judicial, desde que essa ação seja realizada sem violar a paz. Isso significa que o credor pode recuperar o bem sem recorrer ao Judiciário, contanto que não haja quebra da ordem pública ou confrontos durante o processo. No entanto, se o devedor resistir ou houver qualquer perturbação, o credor deve buscar a via judicial para efetuar a apreensão.

No Reino Unido, a recuperação de bens móveis, como veículos, pode ser realizada por meio de agentes de execução certificados, conhecidos como "bailiffs". Esses agentes têm autoridade para recuperar bens em caso de inadimplência, seguindo procedimentos específicos estabelecidos por lei. Embora possam agir sem ordem judicial em determinadas circunstâncias, devem cumprir rigorosamente as regulamentações para garantir que os direitos dos devedores sejam respeitados?

Embora a nova sistemática proporcione maior celeridade na execução das garantias fiduciárias, também apresenta riscos significativos para os consumidores. A principal preocupação está na ausência de um controle judicial inicial sobre a efetiva legalidade da cobrança e da notificação. O devedor pode enfrentar dificuldades na apresentação de defesa tempestiva, especialmente se houver problemas na comunicação da notificação eletrônica ou postal.

Outro ponto sensível é a possibilidade de execução extrajudicial mesmo em casos de cobrança indevida, exigindo que o consumidor busque o Judiciário para impugnar atos potencialmente abusivos. Além disso, a exigência de pagamento integral da dívida no prazo de cinco dias após a apreensão pode ser excessivamente onerosa para o devedor, que pode não conseguir reunir os valores dentro desse período reduzido.

Considerações finais

A busca e apreensão extrajudicial representa uma inovação relevante na execução das garantias fiduciárias, contribuindo para a redução da judicialização e proporcionando maior previsibilidade ao mercado de crédito. Entretanto, a ampliação dos poderes dos credores sem a intermediação do Judiciário levanta questões sobre a segurança jurídica do consumidor e a efetividade dos seus meios de defesa.

Jesualdo Almeida Junior

VIP Jesualdo Almeida Junior

Pós-Doutor pela Universidade de Coimbra. Pós-Doutorando pela USP. Mestre e Doutor em Direito. Professor. Sócio de Jesualdo Almeida Junior Advogados Associados. Pres. Conselheiro Estadual da OAB/SP.

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