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O lipedema e a responsabilização: Uma análise jurídica

Apesar de ser reconhecido pela CID-10 - Classificação Internacional de Doenças (código E88.2), muitos direitos ainda não são garantidos a quem é diagnosticado.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Atualizado às 13:21

O lipedema é uma condição crônica caracterizada pelo acúmulo anormal de gordura subcutânea, predominantemente em membros inferiores e superiores, afetando majoritariamente mulheres. Apesar de ser reconhecido pela CID-10 - Classificação Internacional de Doenças (código E88.2), pacientes ainda enfrentam enormes dificuldades no acesso a tratamentos. Os direitos dos pacientes com lipedema à luz da legislação vigente, abordando a cobertura para o seu efetivo tratamento, bem como benefícios previdenciários, obrigações das empresas enquanto trabalhadores, abordará estratégias jurídicas para garantir assistência adequada.

O diagnóstico do lipedema é clínico, podendo ser complementado por exames laboratoriais hormonais e de imagem. A patologia ainda é subdiagnosticada e frequentemente confundida com obesidade ou linfedema, o que reforça a importância da conscientização entre profissionais da saúde e pacientes.

O médico Fábio Kamamoto, referência nacional no tratamento do lipedema, destaca que a doença exige uma abordagem multidisciplinar para controle dos sintomas e melhoria da qualidade de vida das pacientes. Fundador do Instituto Lipedema Brasil, Kamamoto atua ativamente na divulgação de informações sobre a doença, promovendo a conscientização e contribuindo para a inclusão do lipedema na pauta da saúde pública e privada no Brasil.

1. Introdução

O direito à saúde é um princípio constitucional fundamental. No entanto, pacientes com lipedema frequentemente se deparam com obstáculos para a obtenção de tratamentos, seja por desconhecimento médico-jurídico ou pela resistência de operadoras de planos de saúde e do próprio SUS.

Além disso, o direito à igualdade deve ser observado, podemos exemplificar nos casos de condições crônicas como o lipedema e transtornos como o TEA - Transtorno do Espectro Autista. Esses casos exigem um tratamento diferenciado, não por se tratar de pessoas especiais, mas para que seja garantida a igualdade de acesso aos direitos fundamentais de saúde. Desta forma, traremos no presente as bases legais e os meios de responsabilização de empresas enquanto empregadoras, planos de saúde para garantir o acesso ao tratamento adequado para pacientes com lipedema.

2. Fundamentos legais

2.1. Direito à saúde e ao tratamento pelo SUS

A CF/88, prevê no art. 196, que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantindo acesso universal e igualitário a ações e serviços de saúde. Esse direito é reforçado pelo princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) e pelo princípio da isonomia (art. 5º), assegurando que indivíduos com doenças crônicas tenham suporte diferenciado para garantir a equidade no acesso a tratamentos, ou seja, sejam tratados dentro das suas necessidade para que lhe sejam garantidas a equidade.

A lei 8.080/1990, que regulamenta o SUS, assegura a integralidade da assistência terapêutica, incluindo medicamentos, procedimentos e exames necessários. O art. 6º da referida lei prevê a assistência terapêutica integral, o que abrange tratamentos especializados para doenças crônicas, inclusive o lipedema, desde que devidamente comprovado e acompanhado pelos especialistas e obedecidos os protocolos legais.

O SUS tem a obrigação de fornecer tratamentos para condições médicas reconhecidas cientificamente. No entanto, a ausência de protocolos específicos muitas vezes resulta na necessidade de judicialização para garantir o acesso aos cuidados essenciais, em especial, na ausência de profissionais capacitados que venham a garantir o tratamento eficaz e resultado ao paciente, além da falta de estrutura.

Assim, temos algumas implicações para pacientes com lipedema

  • Possibilidade de acesso a tratamentos fisioterapêuticos, drenagem linfática e medicamentos para controle da dor e inflamação.
  • Indicação para procedimentos cirúrgicos quando há comprometimento funcional, dor intensa e falha em terapias conservadoras.
  • Direito a requerer judicialmente a inclusão de tratamentos não ofertados regularmente pelo SUS, fundamentado nos princípios da universalidade e integralidade da assistência à saúde.

2.2. Cobertura pelos planos de saúde privados

A lei 9.656/1998 regulamenta os planos de saúde no Brasil, estabelecendo a obrigatoriedade de cobertura para tratamentos de doenças listadas na CID-10 - Classificação Internacional de Doenças. A ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar elabora o rol de procedimentos e eventos em saúde, que serve como referência básica para as coberturas obrigatórias.

A recusa de cobertura sob alegação de que determinado procedimento não está no rol da ANS pode configurar prática abusiva, conforme o CDC, especialmente quando há prescrição médica fundamentada, motivo pelo qual é fundamental e necessário o acompanhamento por médico especialista que comprovem o resultado no tratamento adeaquado.

Ademais, a resolução normativa 465/21 da ANS define essa lista mínima de procedimentos.

Natureza do rol da ANS: Taxativo ou exemplificativo

Historicamente, houve divergências jurisprudenciais sobre a natureza do rol da ANS. Enquanto algumas decisões o consideravam exemplificativo, permitindo a cobertura de procedimentos não listados quando prescritos por médicos, outras o viam como taxativo, limitando a obrigação dos planos de saúde ao que está expressamente previsto.

Impacto para pacientes com lipedema

Pacientes diagnosticados com lipedema podem enfrentar negativas de cobertura por parte dos planos de saúde, especialmente se o tratamento prescrito não estiver no rol da ANS. Contudo, com base na jurisprudência mencionada, aliada ao regular acompanhamento médico, diagnóstico adequado e procedimento jurídico correto, é possível contestar essas negativas judicialmente, especialmente quando há indicação médica clara da necessidade do procedimento, evidências científicas de sua eficácia e ausência de alternativas terapêuticas eficazes disponíveis no rol.

A questão da cobertura de procedimentos não listados no rol da ANS é complexa e depende de análise caso a caso. A evolução jurisprudencial indica uma tendência de flexibilização, visando garantir o direito à saúde dos pacientes, especialmente em situações onde a ausência do tratamento possa comprometer significativamente sua qualidade de vida. Portanto, pacientes com lipedema que enfrentarem negativas de cobertura devem buscar orientação jurídica para avaliar a viabilidade de ações judiciais visando à obtenção do tratamento necessário.

2.3. Responsabilização de empresas e planos de saúde

A negativa de cobertura de tratamentos essenciais por parte dos planos de saúde pode ser caracterizada como prática abusiva, caso assim fique comprovado, poderá ser abordado e reconhecida afronta ao art. 51 do CDC, que considera nulas cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem excessiva. Além disso, o art. 14 do CDC determina a responsabilidade objetiva das operadoras de planos de saúde pela falha na prestação de serviços, inclusive na negativa indevida de procedimentos necessários à manutenção da saúde do beneficiário.

O STJ tem consolidado o entendimento de que a recusa indevida de cobertura de tratamentos essenciais pode configurar não apenas infração contratual e prática abusiva, mas também gerar dano moral ao paciente prejudicado. As decisões recentes do STJ reforçam que a recusa imotivada ou sem respaldo técnico-científico pode resultar em indenização aos beneficiários, além da obrigação de custear o tratamento indicado pelo profissional de saúde.

Jurisprudência relevantes que versam especificamente sobre:

  • Configuração de dano moral pela negativa de cobertura de tratamento essencial, reconhecendo a abusividade da conduta da operadora de saúde.
  • Condenação de plano de saúde ao pagamento de danos morais e materiais por negativa de tratamento a paciente com lipedema, reafirmando a obrigação das operadoras de custear procedimentos necessários para garantir a saúde dos beneficiários.
  • Determinação de que planos de saúde devem cobrir tratamentos essenciais mesmo que não previstos expressamente no contrato, reforçando o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito fundamental à saúde.

Dito isto, a legislação existente que garante ao paciente direitos e implica aos planos de saúde deveres e obrigações, aliada à constante atualização de precedentes, é fundamental que estudos e casos práticos sejam utilizados para fins de subsidiar o próprio Judiciário em favor de decisões para outros pacientes, além de próprios laudos, eventos científicos, até mesmo, eventos que possam debater casos e experiências de pacientes, são essenciais para a garantia do direito fundamental do paciente.

2.4. Benefícios previdenciários e direitos trabalhistas

Nos casos em que o lipedema, comprovadamente e justificadamente, venha a causar limitação funcional severa, o paciente pode pleitear auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez junto ao INSS, com base no art. 42 da lei 8.213/1991.

Critérios para concessão:

  • Incapacidade temporária ou permanente para o trabalho.
  • Comprovação através de laudos e exames médicos.

Adicionalmente, a CLT - Consolidação das Leis do Trabalho assegura o direito à readaptação profissional e estabilidade para empregados acometidos por doenças ocupacionais. A dispensa de um trabalhador com lipedema pode ser considerada discriminatória se não forem esgotadas todas as possibilidades de adequação do ambiente de trabalho.

O princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF/88) impõe às empresas o dever de promover condições adequadas de trabalho, incluindo adaptações razoáveis para funcionários com limitações funcionais. Além disso, a partir de maio de 2025, o risco psicossocial, no qual o lipedema pode ser inserido devido às dificuldades físicas e emocionais impostas pela condição, passará a ser um fator obrigatório de análise no ambiente de trabalho, reforçando a responsabilidade do empregador na mitigação desses impactos e na manutenção da qualidade de vida do trabalhador.

3. Meios de garantia dos direitos

3.1. Vias administrativas

  • Requisição ao SUS;
  • Reclamação na ANS;
  • Pedido de benefício previdenciário;

3.2. Ações judiciais

  • Obrigatoriedade de cobertura pelo plano de saúde;
  • Fornecimento de tratamento pelo SUS;
  • Benefícios previdenciários;

4. Conclusão

Os pacientes com lipedema têm direitos garantidos constitucionalmente e por legislação infraconstitucional, ainda que enfrentem barreiras para a efetiva obtenção de tratamentos. Infelizmente, a maior parte dos casos necessita de judicialização, a qual tem sido uma ferramenta essencial para garantir acesso às terapias necessárias, consolidando entendimentos jurisprudenciais favoráveis. A conscientização e o assessoramento jurídico são fundamentais para a plena efetivação desses direitos.

Assim, a proteção dos direitos dos pacientes com lipedema representa uma questão de relevância social e jurídica, exigindo a correta aplicação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade no acesso à saúde. A recusa injustificada de cobertura pelo SUS e pelos planos de saúde configura não apenas uma ilegalidade, mas uma violação ao direito fundamental à saúde e ao bem-estar do indivíduo.

No âmbito trabalhista, a segurança jurídica dos trabalhadores acometidos pela sua condição deve ser garantida por meio da adaptação do ambiente laboral, evitando práticas discriminatórias e assegurando a continuidade da relação de emprego. O reconhecimento do lipedema como um fator de risco psicossocial reforça a necessidade de políticas empresariais que promovam inclusão e bem-estar no ambiente de trabalho.

Dessa forma, a judicialização continua a ser um instrumento essencial para a efetivação desses direitos, consolidando a responsabilização de planos de saúde, empresas e órgãos públicos na busca pela equidade e dignidade dos pacientes com lipedema. Além disso, o tratamento adequado, como todos sabem, não encerra com a cirurgia, mas deve incluir o fornecimento de alimentação adequada, àquelas empresas que as fornecem no local de trabalho, que, a depender do caso do paciente, poderá ser diferenciado, devendo essa necessidade ser contemplada no PGR - Programa de Gerenciamento de Riscos e analisada em conjunto com o risco psicossocial, inclusive após a realização de eventuais procedimentos cirúrgicos, pois, se trata de uma condição crônica, e não apenas de um evento isolado.

Thiago Rezende Bastos

VIP Thiago Rezende Bastos

Advogado Direito do Trabalho | Direito Médico, Saúde e Bioética Pós-Graduado em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Advocacia Trabalhista Pós-Graduando em Direito Médico, Saúde e Bioética

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