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Combate à discriminação racial: Reflexões sobre avanços e desafios

No Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, refletimos sobre a luta contra o racismo, suas raízes históricas e a importância de políticas públicas e ações coletivas.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Atualizado em 20 de março de 2025 15:16

No dia 21 de março é celebrado o Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, data que nos convida a refletir sobre as raízes históricas do racismo e a necessidade permanente de combater suas manifestações em todas as esferas da sociedade. Dia de chamado à ação e à conscientização sobre um problema que, infelizmente, persiste em nosso tecido social.

A origem da data e seu significado

Após a institucionalização do apartheid na África do Sul em 1948, diversas leis decretaram a separação da população branca, negra e mestiça no país, dentre as quais a lei do passe, que exigia que os negros portassem uma caderneta indicando onde poderiam transitar. A população negra era obrigada a apresentar esse registro sempre que solicitado pelos policiais sul-africanos, sob pena de serem detidos - o que era usado como uma forma de controle do Estado Sul-Africano. 

Em 21 de março de 1960 mais de 20 mil sul-africanos se reuniram para protestar contra a lei do passe sem portar o documento. O objetivo era causar problemas na administração local em razão do grande número de pessoas que seriam presas e enviadas ao sistema prisional. No entanto, o que era para ser um ato pacífico, tornou-se um massacre. Policiais abriram fogo contra os manifestantes matando cerca de 69 pessoas e ferindo aproximadamente outras 186. 

O ato teve grande repercussão mundial e na imprensa internacional à época, contribuindo para intensificar os movimentos de luta contra o apartheid. No campo do Direito Internacional dos direitos humanos, em 1965, reconhecendo-se a necessidade de ações de combate à discriminação racial no mundo em virtude da violência, a ONU - Organização das Nações Unidas aprovou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, e no ano seguinte, em memória às vítimas de Sharperville, proclamou 21 de março o "Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial".

O combate à discriminação racial no contexto brasileiro: Principais marcos, avanços conquistados e desafios latentes

Embora no Brasil não tenhamos vivido um apartheid propriamente dito, o período histórico da escravidão deixou marcas profundas em nossa sociedade, ainda não superadas. Carregamos o peso de ter sido o último país das Américas a abolir a escravidão e de ter sido historicamente o maior receptor de pessoas escravizadas do continente. Esta herança colonial continua a moldar profundamente as relações raciais no país.

No campo normativo, em 1969, o Brasil promulgou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, marco jurídico essencial na luta contra o racismo e a xenofobia em todas as suas formas.

A Convenção obrigou Estados a adotar medidas para erradicar a discriminação racial e promover a educação e conscientização, incluindo a adoção de políticas públicas e punição de atos racistas. Além disso, estabeleceu o conceito jurídico de "discriminação racial", entendida como "qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor, ascendência, ou origem nacional ou ética que tenha propósito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outra esfera da vida pública" (art. 1º).

No entanto, durante décadas prevaleceu o mito da "democracia racial", ideologia que sustentava a falsa noção de que o país seria livre de preconceitos raciais. Esta tese foi amplamente difundida durante o regime militar (1964-1985), quando o governo apresentava o Brasil internacionalmente como um "paraíso racial" 1. Esta narrativa servia como instrumento ideológico para deslegitimar as reivindicações dos movimentos negros e encobrir as desigualdades estruturais existentes.

Grupos como o MNU - Movimento Negro Unificado, fundado em 1978 em reação direta à existência da democracia racial no país, e tantos outros, tornaram-se importantes articuladores da luta antirracista e de projetos para que o tema saísse das ruas e se institucionalizasse. 

Apesar da repressão, estes movimentos persistiram defendendo que o enfrentamento ao racismo deve fugir a uma pauta moral e se tornar uma luta real nos parlamentos e transformada em políticas públicas efetivas. O tema do combate ao racismo ganhou assim mais relevância. Aliás, relevância tal que o texto constitucional estabeleceu princípios e garantias essenciais, incluindo a criminalização do racismo como crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII), o reconhecimento da pluralidade étnica da sociedade brasileira (art. 215) e a proteção às manifestações culturais afro-brasileiras (art. 215, §1º).

Um ano após a promulgação da CF foi aprovada a lei 7.716/1989, a "Lei do Racismo", que regulamenta a sua criminalização, punindo todo tipo de discriminação ou preconceito baseado em raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Além disso, outras legislações importantes foram implementadas, como o Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/10); a lei de cotas nas Universidades Federais (lei 12.711/12); a lei de cotas no serviço público Federal (lei 12.990/14) e a lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas.

Embora o país possua um arcabouço legal robusto, ainda persistem desafios significativos. Um deles é a efetiva aplicação dessas leis. A subnotificação de casos e a dificuldade de comprovação das condutas discriminatórias são fatores que contribuem para a limitada eficácia das penalidades previstas para crimes de racismo2.

O papel fundamental da sociedade civil 

As OSCs - Organizações da Sociedade Civil têm desempenhado papel crucial no combate à discriminação racial no plano global. Atuam onde muitas vezes o Estado não consegue chegar e trabalham em múltiplas frentes, desde a assistência jurídica a vítimas de racismo até a promoção de ações educativas e culturais que valorizam a identidade negra.

No Brasil, diversas organizações têm sido fundamentais na formulação de políticas públicas, no monitoramento de violações de direitos e na formação de novas lideranças negras, a exemplo da Geledés3, Educafro4, Fundo Baobá para Equidade Racial5 e o Instituto Nicho 546. Muitas das conquistas legislativas e jurídicas no campo da igualdade racial foram impulsionadas pela atuação incansável dessas organizações, que acumulam décadas de experiência e conhecimento. Felizmente, existem uma série de outras organizações com relevante atuação no cenário nacional em diversas pautas, com o objetivo principal de enfrentar e combater o racismo em todas as suas formas.

Em nível internacional, OSCs como anistia internacional e a Human Rights Watch contribuem com relatórios e denúncias que expõem violações de direitos raciais, pressionando governos e instituições. Também exercem papel importante em fóruns internacionais, como a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, influenciando a agenda global de combate ao racismo.

O trabalho das OSCs - organizações da sociedade civil se destaca principalmente por sua capilaridade e capacidade de mobilização comunitária. Em territórios periféricos, onde o racismo se manifesta na distribuição desigual de recursos e infraestrutura, essas organizações promovem amplo espectro de iniciativas, de cursinhos pré-vestibulares populares para jovens negros até incubadoras de negócios que fortalecem o empreendedorismo negro, tornando possível a criação de circuitos econômicos alternativos baseados na ancestralidade e saberes comunitários. 

O poder transformador das OSCs reside também na sua capacidade de traduzir demandas locais em propostas de políticas públicas estruturantes e, não por acaso, praticamente todas as conquistas legislativas e jurídicas no campo da igualdade racial das últimas décadas resultaram de intensos processos de advocacy e litigância estratégica conduzidos por essas organizações.

Uma responsabilidade coletiva

Combater a discriminação racial só é possível quando há responsabilidade coletiva e envolvimento de todos os segmentos da sociedade: pessoas, empresas, organizações da sociedade civil, governos e instituições. Implica que cada um desses atores desempenhe seu papel fundamental na luta contra o racismo. 

Enquanto as OSCs têm tido papel crucial na promoção de políticas públicas e na mobilização comunitária, o setor privado deve estar atento a ondas de retrocesso e implementar práticas inclusivas e de diversidade em seus ambientes de trabalho, e as instituições devem reconhecer a importância de promover uma cultura antirracista.

Que este 21 de março nos ajude a reforçar a necessidade de termos políticas antirracistas, de atuarmos na promoção da educação sobre direitos humanos e de promovermos a garantia de igualdade para todos, numa sociedade mais justa e inclusiva. Que seja um lembrete de que ações conjuntas e contínuas são ainda fundamentais para superar as raízes históricas do racismo e suas manifestações contemporâneas.

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1 https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/democracia-racial-ideia-foi-adotada-no-brasil-pos-escravidao-e-ajuda-a-explicar-racismo-atual/#page12

2 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2021/07/03/ha-70-anos-brasil-ganhava-primeira-lei-contra-racismo.htm

3 O Instituto da Mulher Negra, uma das mais antigas organizações negras do país, com atuação pioneira na intersecção entre raça e gênero, oferece assistência jurídica gratuita a vítimas de discriminação racial, além de manter um importante portal de notícias e banco de conhecimento sobre questões raciais.

4 A Educafro - Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes revolucionou o acesso ao ensino superior através de seus núcleos de cursinhos pré-vestibulares, além de protagonizar ações judiciais estratégicas contra o racismo institucional e na defesa das políticas de cotas raciais.

5 O Fundo Baobá para a Equidade Racial é considerado a primeira organização de filantropia negra no Brasil, que atua como financiador de iniciativas antirracistas em todo o país e fortalecedor de organizações negras de base comunitária.

6 O Instituto Nicho 54 busca transformar a indústria cultural brasileira e aumentar a representativa negra com foco no setor audiovisual, tanto nas telas quanto nos bastidores, por meio de consultorias, cursos de formação, festivais e mostras cinematográficas. 

Gisele Aparecida dos Santos

Gisele Aparecida dos Santos

Advogada com atuação generalista, especializada em Direito Civil. SBSA Advogados

Paulo Roberto Oliveira da Silva

Paulo Roberto Oliveira da Silva

Especialista em Direito Público e advogado no escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados (SBSA Advogados)

Pedro Henrique Monteiro de Barros da Silva Neto

Pedro Henrique Monteiro de Barros da Silva Neto

Mestre em Direito, Estado e Constituição, pela Universidade de Brasília (UnB) e Especialista em Direito Digital e Tecnologia, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados (SBSA Advogados).

Stella Camlot Reicher

Stella Camlot Reicher

Sócia do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Mestre em Direitos Humanos pela USP. Participou da elaboração do relatório da sociedade civil brasileira para o Comitê da ONU de Monitoramento da Convenção em 2015.

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