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Os dez paradoxos do telefone móvel celular: Sobre o furto e o roubo de smartphones vs. dosimetria da pena

Os celulares são simultaneamente objetos comuns e essenciais, com valor material e imaterial. Seu roubo pode causar danos patrimoniais, emocionais e à privacidade.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Atualizado às 09:15

Os aparelhos de telefonia móvel celular representam um repositório de paradoxos. 

O primeiro diz da banalização deles: transformaram-se em coisa vulgar. É raro quem não tenha um. Ao mesmo tempo, depois que se vinculam ao dono, o "celular" (doravante o aparelho poderá ser designado apenas assim) torna-se praticamente infungível. O paradoxo inaugural conjuga a percepção simultânea do seu caráter ordinário e singular. 

O segundo paradoxo traduz o problema da funcionalidade do aparelho. Aprendemos que o substantivo define e o adjetivo qualifica. Assim, os celulares deveriam servir, primariamente, para efetuar e receber chamadas telefônicas. Mas, na prática, isso nem sempre ocorre. O telefone móvel alçado à smartphone serve para tirar fotos, navegar na Internet (d'onde se abrem incontáveis possibilidades), arquivar documentos, trocar mensagens escritas e em formato audiovisual etc. Não é incomum se ouvir, talvez com algum "pequeno exagero": «- não posso perder meu celular, porque nele está minha vida.» O telefone celular foi guindado ao status de "sinônimo fraco" de vida. Quem lhe concede esta potência, perdendo-o está (ao menos metaforicamente) "morto". Evidentemente, não o estará em termos biofisiológicos, embora se veja bastante prejudicado em termos de eficácia de vida social; padecerá, sem dúvida, em razão do decréscimo dialógico e comunicacional sofrido e sentido. 

O terceiro paradoxo está na transcendência da dialética estabelecida entre a matéria e o conteúdo de um smartphone. Do ponto de vista tangível, formalmente considerado, ele é um objeto que tem tamanho e peso, ocupante de um lugar no espaço. Sob a perspectiva de seu conteúdo, possui uma dimensão imaterial quase infensa à possibilidade de sua quantificação: a qualidade das informações que nele constam revelam-no um guardião de memórias, de intimidades, de dados pessoais sensíveis, de elementos caracterizados por alta carga de privacidade (v.g., registros de chamadas telefônicas, troca de diálogos, extratos bancários, notas fiscais, documentos de identificação pessoal inclusive de terceiros, contratos, receitas de fabricação acobertadas por cláusulas de não-compartilhamento e não-divulgação, laudos médicos etc.). O smartphone de cada pessoa é, inquestionavelmente, um formidável arquivo concentrado de bens jurídicos atrelados aos direitos da sua personalidade. 

O quarto paradoxo decorre do anterior: sob a ótica da sua objetividade, o smartphone de uso pessoal é bem patrimonial conversível em preço. Mas, em seu conteúdo possui valor inestimável. É fácil comprovar. Imagine: seu celular custa dez mil dinheiros. Tome esta cifra e a converta em cédulas (se é que ainda existem). Em seguida, guarde-as na carteira e vá. Agora, pense-se assaltado e o agente lhe conceda uma opção: «- a carteira ou o celular!» Será raro que alguém prefira entregar o telemóvel. Uma ou outra pessoa justificará a exceção dizendo que entregar a carteira lhe será mais penoso porque nela estão seus documentos pessoais e bilhetes com anotações cujo esquecimento seria danoso. Aqui desponta o paradoxo: os documentos e os bilhetes têm valor pelo seu conteúdo e não pelo papel que os consubstancia; eles materializam direitos da personalidade do seu titular: direito à identidade e à identificação. Se a vítima souber, porém, que seus documentos lhe serão entregues pelo próprio ladrão antes de ele fugir com a carteira, vazia deles e recheada "apenas" pelos tantos dinheiros do preço do celular, o ofendido ficará grato ao agente e se considerará uma "pessoa de sorte".

Portanto, a subtração de um smartphone, a rigor, pode encerrar um desfalque no patrimônio econômico correspondente ao seu valor de mercado (vide arts. 155 e 157, ambos do CP), além da destruição ou supressão de documentos (vide, no mesmo Código, art. 305, cuja pena cominada é de reclusão, de dois a seis anos, e multa, se o documento é público, e reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é particular). Aqui outro paradoxo, o quinto: o celular é unidade (segundo sua objetividade intrínseca) e multiplicidade (consoante a concentração de bens jurídicos que enfeixar em sua própria e particular dimensão existencial).

O sexto paradoxo: o celular é ontologicamente inanimado. Mas, depois de incorporado à rotina do seu titular, torna-se "cheio de vida(s)". Quem tem um smartphone subtraído pode ter sido vítima do extravio inestimável e irreversível da última mensagem da mamãe; da gravação do parto do único filho; da confissão do devedor cujo teor lhe garantiria a quitação de direitos importantes. Ademais, há a lista de contatos da rede social, na qual constam inúmeras trocas de informações resguardadas por sigilo. Ver-se injustamente alijado disso é um acidente biográfico com potencial de abalar profundamente a autorrealização da pessoa, um grave atentado aos direitos da personalidade. 

O problema pode ser ainda maior. Basta pensar a hipótese de o agente, depois de haver invertido a posse do aparelho, dedicar-se a vascular seu conteúdo, inclusive com a intenção de fazer barganhas com a vítima. Este comportamento não significa apenas uma etapa preparatória da extorsão que poderá advir, conhecida como "sequestro de celular". Ao ingressar no conteúdo do aparelho do ofendido, procurando por informes sobre a sua condição financeira e sinais exteriores de riqueza (v.g., fotografias de bens e de viagens, diálogos falados, trocas de mensagens escritas, contratos, informes de imposto de renda etc.), o agente também está desenvolvendo conduta marcada por sério desvalor penal. Ao fazê-lo incorrerá em graves violações contra a intimidade e a vida privada do ofendido, violentando, aliás, valores, direitos, liberdades e garantias constitucionais (vide art. 5º, incs. X e XII). Poderá ainda incidir no art. 10 da lei 9.296, de 24/7/1996 - que trata da interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, e aplicável também à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática - com pena de reclusão, de 2 a 4 anos, e multa; e igualmente poderá realizar o tipo que sanciona indevidas quebras bancárias e fiscais, nos termos do art. 10 da LC 105, de 10/1/01 (que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências), cuja pena é de reclusão, de 1 a 4 anos, e multa.

Com efeito, cumpre distinguir: uma coisa é o celular novo, sem uso, inerte "na caixa": nunca seu preço terá sido tão alto. Outra, bem diversa, é ele já bem usado, velho talvez, certamente antigo e cheio de memórias: jamais o seu preço foi tão baixo. Cabe, então, a pergunta: qual deles tem o maior valor? Na linguagem pobre do cifrão, o primeiro; no léxico do alto sentido humano, o segundo. Eis aqui o sétimo paradoxo, o mais pungente. De que adianta recuperar o celular subtraído se ele vier vazio de dados, formatado por completo? Poderá dizer o ofendido: «- nem o quero mais! O que eu realmente queria eram meus registros inconfessáveis, meus vídeos de família, minhas fotos de viagem, minhas melhores lembranças, meus segredos, minhas planilhas, meus diálogos, meus informes financeiros, minha "vida"!» Esse patrimônio incalculável, que laudo nenhum quantifica, poderá ter sido perdido para sempre.

Não é incomum ouvirmos de alguém o seguinte: «- apesar de meu aparelho de telefone celular estar velho, não quero trocá-lo: tudo o que preciso está contido nele!»

Agora sim, o problema penal. Diante de um comprovado caso de furto ou de um roubo um aparelho de telefone celular, como deve proceder o juiz ao aplicar a pena?

Primeiro há que se diferenciar. O aparelho era um telemóvel em acepção estrita ou um smartphone? Sendo o primeiro, o seu laudo de avaliação, direto ou indireto, poderá fazer sentido, pois um celular que seja estritamente um comunicador de chamadas à distância terá apenas registrado as ocorrências típicas desta função, sem encartar tantos direitos da personalidade do ofendido como em um smartphone. Depois, se a espécie versar sobre um aparelho desses, compete enfrentar as relevantes complexidades intrínsecas ao problema, da maneira seguinte. 

De início, caberá ao magistrado considerar se o conteúdo do smartphone subtraído está ou não completamente salvo, seja em back-up feito pelo ofendido seja em nuvem de dados acessíveis. Certo que a ninguém deve ser imposto o ônus dessas cautelas. Óbvio também que jamais devamos esperar do agente, antes de consumar seu crime, que ele indague à vítima a respeito dessas circunstâncias, até porque o delito nem se modifica nem se desnatura conforme tal zelo da parte dela. O que se alterará, conforme veremos adiante, são as consequências jurídicas do crime, a serem avaliadas ex post pelo julgador (e não ex ante pelo sujeito ativo). Como se vê, a particularidade deste ponto não está no dolo do agente, necessário ao aperfeiçoamento da relação de tipicidade, mas está centrada na culpabilidade lato sensu, que tem no próprio crime já reconhecido o seu pressuposto. De todo modo, considerando que o ofendido tenha todo o conteúdo do smartphone salvo, o juiz poderá tratar do caso com maior ênfase no seu aspecto patrimonial. Desde que o ofendido tenha esse mesmo conteúdo parcialmente resgatável, caberá ao juiz interessar-se pelo que foi perdido, a fim de que, mediante essa análise, tenha melhores condições de aplicar uma pena justa. A fortiori, se todo o conteúdo foi inteiramente extraviado, por não ter sido salvo em nada e de modo nenhum, aquele exame patrimonial deve seguir acompanhada de outra ênfase, i.e., aquela referente à dignidade humana que também foi lesionada. 

É controverso, na dogmática penal, a configuração do furto e/ou do roubo de objetos materiais dotados apenas de valor sentimental (uma mecha de cabelo, uma fotografia, v.g.). Mas o smartphone é, ao mesmo tempo, uma "arca de guardados", sem deixar de ser um objeto com valor patrimonial. Assim, esta objeção não é competente para suscitar um problema verdadeiro. 

Para o caso da subtração de um smartphone, é preciso avaliar tanto o seu aspecto objetivo (i.e., considerá-lo como objeto material sobre o qual recaiu a conduta delinquente) quanto também examiná-lo em sua face subjetiva (i.e., estimá-lo em seu conteúdo intangível, concretizador dos direitos da personalidade do ofendido). Quanto mais antiga a propriedade do smartphone, i.e., quanto maior sua depreciação econômica em função do seu tempo de uso, maior poderá ser, em contrapartida, a sua valorização no plano da dignidade da pessoa que o tinha como seu. O injusto substancial (i.e., para além da rubrica do tipo penal) não recai só na perda patrimonial; isso, aliás, é quase o de menos: referido injusto ofende diversos bens jurídicos relevantes no conjunto dos direitos da personalidade da vítima e de terceiros que com ela travaram relações sociais de naturezas várias.    

O art. 59 do CP estabelece que "o juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime." Note-bem: consequências do crime. 

Aqui está a chave do problema, concretizadora de outra perplexidade. As consequências do injusto que determina o extravio permanente de um smartphone representam um dúplice atentado: um "imediato" (mas curiosamente "secundário"), circunscrito ao aspecto estritamente material, ao caráter patrimonial referente ao objeto, além de outro, mais importante que esse, agora dito "mediato" (mas inesperadamente "principal") - eis o oitavo paradoxo! -, atrelado ao aspecto imaterial, ao valor infenso à quantificação monetária, à tradução do extrapatrimonial vinculado à projeção de uma vasta gama dos direitos da personalidade do ofendido (e ainda de terceiros que podem ter ou tiveram aspectos de sua intimidade e privacidade devassados em exaurimento à conduta incriminada).

E não se diga que o último aspecto era imprevisível ao agente. Quem furta ou rouba um aparelho celular sabe que ele é um instrumento de comunicação, atividade por excelência, dialógica, plural, envolvente de vários interlocutores, e como tal da vida e da rotina de várias pessoas. Sabe também que naquele aparelho está uma vasta biografia (talvez dezenas delas), está - por assim dizer - muito da história da infeliz vítima, que muitos de seus registros têm valor inestimável, que grande parte deste conteúdo é infungível, irrepetível, imprescritível, inalienável, incalculável etc.

Quanto mais antigo pelo seu próprio uso, maior é quantidade de informações subjetivas relevantes arquivadas no telemóvel e, portanto, seu valor em termos de humanidade singular se incrementa. Quanto mais antigo, mais perde em termos de valor estritamente patrimonial: um laudo de avaliação que determina expressamente uma cifra baixa, justificada pela antiguidade do aparelho, implícita e simultaneamente diz que a sua fração extrapatrimonial pode ser imensurável. Preço e valor de um smartphone pessoal usado estabelecem uma dialética de inversão. E uma conclusão se instala consequente a este efeito gangorra, e com ele o nono paradoxo: se e quando um aparelho de telefone celular é subtraído, visto desde a antiguidade de seu uso, o que se tem é que apesar de a conduta criminosa recair sobre um objeto depreciado em termos estritamente patrimoniais, maiores e mais graves podem se tornar as consequências do seu furto e do seu roubo, ante o maior o desvalor do resultado decorrente do comportamento proibido.

Desconsiderar as consequências do crime, no furto e no roubo de smartphones, deixando de integrá-las sob a perspectiva dos direitos da personalidade, é o mesmo que vilipendiar a proporcionalidade (nota imprescindível ao sentido de Justiça). Mas, não esqueçamos: a proporcionalidade é "princípio dos princípios", responsável pela orientação de todo o arcabouço jurídico de um autêntico Estado Democrático de Direito. 

A tese, pois, é apodítica: o furto e o roubo de smartphones plenificados de conteúdo concretizador de direitos da personalidade do ofendido, máxime quando não recuperados ou devolvidos danificados (i.e., vazios ou faltos dos dados que lhe tornavam bem infungível), são crimes sumamente desafiadores da fácil (simplória) e questionável cultura da aplicação da pena mínima. E o anúncio de uma tese assim também é expressão prática de garantismo. Eis aqui o décimo e derradeiro paradoxo.

Paulo Roberto Santos Romero

VIP Paulo Roberto Santos Romero

Promotor de Justiça em Minas Gerais. Mestre e doutorando em direito penal contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Ex-membro titular do Conselho de Criminologia e de Política Criminal.

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