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Tema 91 do TJ/MG: Nas "quatro linhas" da Constituição?

Análise crítica sobre o Tema 91 do TJ/MG e os seus desdobramentos na seara consumerista face aos indícios de inconstitucionalidade material em seu conteúdo.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Atualizado às 14:48

A sistemática de precedentes vinculantes trazidas pelo CPC/15 representou uma significativa inovação ao ordenamento jurídico brasileiro. Conforme dispõe em seus arts. 926 e 927, é dever dos Tribunais manter com coerência, integridade e estabilidade a sua jurisprudência em observância aos precedentes, incluídos aí os acórdãos proferidos em sede de demandas repetitivas.

IRDR - Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas foi incorporado ao ordenamento processual civil na tentativa de uniformizar, na forma de teses, as demandas diuturnamente trazidas ao Poder Judiciário. Assim, em havendo efetiva repetição de processos sobre as mesmas questões de direito (seja material ou processual) e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica com a prolação de decisões conflitantes em determinada jurisdição, o incidente é instaurado e submetido à apreciação do Tribunal.

Em novembro de 2024, o TJ/MG publicou a tese firmada no Tema 91, in verbis:

(i) A caracterização do interesse de agir nas ações de natureza prestacional das relações de consumo depende da comprovação da prévia tentativa de solução extrajudicial da controvérsia. A comprovação pode ocorrer por quaisquer canais oficiais de serviço de atendimento mantido pelo fornecedor (SAC); pelo PROCON; órgão fiscalizadores como Banco Central; agências reguladoras (ANS, ANVISA; ANATEL, ANEEL, ANAC; ANA; ANM; ANP; ANTAQ; ANTT; ANCINE); plataformas públicas (consumidor.gov) e privadas (Reclame Aqui e outras) de reclamação/solicitação; notificação extrajudicial por carta com Aviso de Recebimento ou via cartorária. Não basta, nos casos de registros realizados perante o Serviços de Atendimento do Cliente (SAC) mantido pelo fornecedor, a mera indicação pelo consumidor de número de protocolo.

(ii) Com relação ao prazo de resposta do fornecedor à reclamação/pedido administrativo, nas hipóteses em que a reclamação não for registrada em órgãos ou plataformas públicas que já disponham de regramento e prazo próprio, mostra-se razoável a adoção, por analogia, do prazo conferido pela Lei nº. 9.507/1997 ("Habeas Data"), inciso I, do parágrafo único do art. 8º, de decurso de mais de 10 (dez) dias úteis sem decisão/resposta do fornecedor. A partir do referido prazo sem resposta do fornecedor, restará configurado o interesse de agir do consumidor para defender os seus direitos em juízo.

(iii) Nas hipóteses em que o fornecedor responder à reclamação/solicitação, a referida resposta deverá ser carreada aos documentos da petição inicial, juntamente com o pedido administrativo formulado pelo consumidor.

(iv) A exigência da prévia tentativa de solução extrajudicial poderá ser excepcionada nas hipóteses em que o consumidor comprovar risco de perecimento do direito alegado (inclusive na eventualidade de iminente transcurso de prazo prescricional ou decadencial), situação em que o julgador deverá aferir o interesse de agir de forma diferida. Nesses casos, caberá ao consumidor exibir a prova da tentativa de solução extrajudicial em até 30 (trinta) dias úteis da intimação da decisão que analisou o pedido de concessão da tutela de urgência, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC.

(v) Nas ações ajuizadas após a publicação das teses fixadas no presente IRDR, nas quais não exista comprovação da prévia tentativa extrajudicial de solução da controvérsia e que não haja pedido expresso e fundamentado sobre a excepcionalidade por risco de perecimento do direito, recebida a inicial e constatada a ausência de interesse de agir, a parte autora deverá ser intimada para emendar a inicial de modo a demonstrar, no prazo de 30 dias úteis, o atendimento a uma das referidas exigências. Decorrido o prazo sem cumprimento da diligência, o processo será extinto sem julgamento de mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC.

(vi) Com relação à modulação dos efeitos da tese ora proposta, por questão de interesse social e segurança jurídica (art. 927, §3º do CPC c/c art. 46 da Recomendação n. 134/ 2022 do CNJ), nas ações ajuizadas antes da publicação das teses fixadas no presente IRDR, o interesse de agir deverá ser analisado casuisticamente pelo magistrado, considerando-se o seguinte:

a) nas hipóteses em que o réu ainda não apresentou contestação, constatada a ausência do interesse de agir, a parte autora deverá ser intimada para emendar a inicial (art. 321 do CPC), nos termos do presente IRDR, com o fim de coligir aos autos, no prazo de 30 dias úteis, o requerimento extrajudicial de solução da controvérsia ou fundamentar o pleito de dispensa da prévia comprovação do pedido administrativo, por se tratar de situação em que há risco de perecimento do direito. Quedando-se inerte, o juiz julgará extinto o feito sem resolução de mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC.

b) nas hipóteses em que já houver contestação nos autos, tendo sido alegado na peça de defesa fato extintivo, modificativo ou impeditivo do direito do autor (art. 373, II, do CPC), restará comprovado o interesse de agir.

Vislumbra-se, aqui, a intenção quase heroica do Tribunal em reduzir a sobrecarga judicial e trazer maior efetividade ao sistema na resolução de demandas. Essa tese, no entanto, vai de encontro a diversos direitos e garantias fundamentais, padecendo de grave vício material de inconstitucionalidade.

Prevê o texto constitucional que a lei não excluirá da apreciação judicial qualquer lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, CF/88), consagrando o chamado Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição. A imposição de prévia tentativa extrajudicial para a caracterização do interesse de agir parece usar a garantia contra o próprio garantido.

Em sua grande maioria, a litigância consumerista é repressiva, ou seja, o dano já efetivamente se materializou na esfera jurídica do consumidor, amoldando-se perfeitamente no binômio necessidade-adequação. Nas palavras de Nelson Nery, existe interesse processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade do ponto de vista prático1.

A despeito de o STF já ter se manifestado acerca da exigência de prévio requerimento administrativo nas demandas de cunho previdenciário, denota-se que esse entendimento não deve ser estendido às relações de consumo.

A eficácia diagonal das normas consumeristas, calcada na vulnerabilidade técnica, e muitas vezes socioeconômica, dos consumidores face aos fornecedores de produtos e serviços, busca evitar que aqueles sejam suprimidos em seus direitos.

Nas demandas previdenciárias, o segurado precisa dar ciência à Administração Pública, através do INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, de sua pretensão, a fim de que possa, caso assim entenda, resisti-la. Para tanto, pode se dirigir a qualquer agência da previdência social ou optar por realizar o procedimento através do telefone ou do sítio eletrônico, caso tenha condições. Por outro lado, o consumidor normalmente se vê, sozinho, diante de uma grande empresa, com todo o seu aparato técnico e jurídico, para tentar resolver sua demanda.

Não obstante, o CDC, diploma normativo de ordem pública e interesse social, estabelece ser direito básico o acesso aos órgãos judiciários, com vistas à prevenção ou reparação de danos, inclusive com a facilitação da defesa de seus direitos, sem, contudo, criar qualquer condição ou exigência prévia para o seu exercício.

Partindo de outra perspectiva, ao trazer a necessidade de comprovação de prévia tentativa extrajudicial de solução da demanda, o Tema 91 do TJ/MG pode causar um sistêmico perecimento de direitos, inclusive pelo desestímulo ao acesso ao Poder Judiciário. Parte-se da premissa de que todos os consumidores possuem condições suficientes para acessar os canais extrajudiciais de resolução de conflitos. Isso sem contar as inúmeras decisões judiciais de emenda à inicial que sequer analisaram os pedidos de tutela antecipada de urgência.

Na interpretação sistemática e teleológica do Direito, deve-se levar em consideração as reais dificuldades e vulnerabilidades dos jurisdicionados para que as demandas possam ser adequadamente levadas à apreciação do Poder Judiciário. Não apenas para que o direito de ação seja garantido em seu espectro formal, mas para que a entrega da prestação seja efetiva face ao caso concreto.

Infelizmente, por se tratar de tese recentemente incorporada ao Judiciário mineiro, ainda não se discutiu muito acerca do tema na doutrina e na jurisprudência. Reforça-se aqui a necessidade de olhares mais críticos sobre o precedente, no ímpeto de buscar e incentivar métodos alternativos de resolução de conflitos, sem que haja prejuízo aos direitos e garantias fundamentais.

Conclui-se, ante o exposto, pela inconstitucionalidade material do Tema 91 do IRDR julgado pelo TJ/MG, em flagrante afronta a toda a proteção conferida pelo microssistema consumerista, ao Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição e aos direitos constitucionais de acesso à justiça e reparação integral dos danos sofridos.  

Sob pena de transformar o acesso à justiça na ultima ratio do cidadão, assim como no Direito Penal, deve-se coibir qualquer óbice à tutela de direitos, especialmente quando dizem respeito à coletividade, ainda que individualmente considerada.

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1 Junior, Nelson Nery e Nery, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 526.

André Fonseca Lima

VIP André Fonseca Lima

Advogado e Sócio Fundador do escritório Fonseca e Silva Advogados. Especialista em Direito Processual Civil, Direito Público e Direito Previdenciário pela Escola Brasileira de Direito - EBRADI.

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