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O caso 99 e o sucesso do controle incidental de constitucionalidade

O controle incidental de constitucionalidade fortalece a aplicação da Constituição nos Estados, reduzindo a sobrecarga do STF e garantindo segurança jurídica.

terça-feira, 18 de março de 2025

Atualizado às 14:13

O modelo brasileiro de controle de constitucionalidade abstrato, exercido por meio das ações diretamente ajuizadas perante o STF, por determinados legitimados (partido político, confederações, governadores...), tornou-se de tal forma dominante na cena política e jurídica brasileira que parece que não temos, desde o advento da Constituição Republicana de 1891, o controle incidental, que opera seus efeitos inter partes, no bojo de qualquer processo, por qualquer das partes (inclusive pelo juiz, de ofício), formulado como causa de pedir (não como pedido).

Esse exercício insistente do controle concentrado termina criando imenso desgaste ao STF, que fica responsável por dirimir um conjunto muito grande de demandas carregadas de camadas políticas, suportando, sozinho, o ônus da contra majoritariedade, é dizer, de ser a instância autorizada a proferir decisões contra a vontade de maiorias eventuais. A demasia impõe ainda ao Tribunal o ingrato papel de não apenas dar a última palavra nas controvérsias constitucionalizadas, mas, quase sempre, de ter de dar a primeira palavra também.

Por essa razão é preciso louvar o silencioso exercício praticado com grande independência pelos tribunais do controle incidental de constitucionalidade, adensando, nos Estados, debates que abrem caminho para a realização da Constituição.

Exemplo desse sucesso é o mandado de segurança impetrado pela empresa de tecnologia 99 perante a 8ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de São Paulo, contra ato do Secretário Executivo do Comitê Municipal de Uso do Viário, consistente na ameaça de tomada das medidas legais em caso de desobediência ao decreto municipal 62.144/23, que suspendia temporariamente o serviço de mototáxi no município.

Decidindo a questão, o magistrado iniciou sua fundamentação apontando que a Constituição Federal delegou, em seu art. 182, à lei ordinária, a fixação de diretrizes gerais da política de desenvolvimento urbano. Veio a lei Federal 12.587/12, com as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana, objetivando a integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade das pessoas e cargas no território do Município.

A referida lei estabeleceu a competência exclusiva dos municípios e do Distrito Federal para regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros, sem, entretanto, vedá-lo. O Município de São Paulo, todavia, ao invés de regulamentar o serviço, optou por sumariamente proibi-lo.

O magistrado recordou, em sua fundamentação, que a lei Federal 12.009/09, que regrou o exercício das atividades dos profissionais em transporte de passageiros, "mototaxista", foi declarada constitucional pelo STF (ADIn 4.530).

Anotou ainda que ante o princípio da especialidade, não há que falar em aplicação exclusiva de uma ou outra lei, senão de aplicação do regulamento concernente ao mototáxi (lei Federal 12.009/09) em suas disposições específicas, quais sejam, os requisitos mínimos de segurança para a prestação do serviço; em conjunto com a resolução CONTRAN 943/22, que tem o mesmo objeto, qual seja, estabelecer requisitos mínimos de segurança ao serviço de mototáxi.

Um dos últimos pontos trazidos na decisão é a incidência do Tema 967 do STF, que diz: "I - A proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência; II - No exercício de sua competência para regulamentação e fiscalização do transporte privado individual de passageiros, os Municípios e o Distrito Federal não podem contrariar os parâmetros fixados pelo legislador Federal (CF/88, art. 22, XI)".

A decisão conclui: "furta-se a autoridade impetrada a construir uma política de mobilidade urbana adequada à realidade municipal, ainda que complexa". Passo seguinte, ela promove a declaração incidental da inconstitucionalidade do decreto municipal 62.144/23, julgando procedente o pedido da inicial e concedendo a segurança.[1]

Com a sua fundamentação, e pela maneira adequada dos muitos juízos hermenêuticos que fez, a sentença mostra que também os Estados, por meio do seu Poder Judiciário, exercem um fundamental papel na manutenção da força normativa da Constituição (na feliz dicção de Konrad Hesse).

O controle difuso de constitucionalidade desonera o STF de ter de dar, sempre, a primeira palavra sobre as muitas possibilidades de inconstitucionalidade no Brasil. Cria, ao mesmo tempo, uma base hermenêutica acerca de um tema que até pode chegar, pela via do recurso extraordinário, no STF, mas que se assim o for, chegará contando com maturação interpretativa prévia que contribuirá com a própria Suprema Corte.

Também quanto ao mérito, a decisão é importante, pois promove um feliz equilíbrio quanto a valores caros ao federalismo cooperativo brasileiro, lendo conjuntamente comandos presentes na Constituição Federal, na legislação federal e no decreto municipal questionado, sem negligenciar posições centrais do Supremo Tribunal Federal, a exemplo do citado Tema 967. Além disso, a decisão reitera a necessidade de a população dispor de múltiplas formas de mobilidade urbana, o que inclui o mototáxi, não sendo possível simplesmente banir uma atividade lícita que favorece as pessoas.

Empresas como a 99 têm se consolidado como plataformas de intermediação de acesso ao transporte por aplicativo do país. Sua proposta inovadora visa facilitar o deslocamento de passageiros por meio de um sistema digital, simples e barato, reduzindo custos e aumentando a acessibilidade ao transporte privado. É direito à inovação atrelado ao direito ao transporte, realizando o que se chama de direito à cidade.

Essa transformação reflete não apenas mudanças tecnológicas e econômicas, mas também apresenta importantes marcos jurídicos, regulatórios e jurisprudenciais capazes de proteger as partes envolvidas, sem descuidar do primado da liberdade de iniciativa. Daí o controle incidental de constitucionalidade ser tão importante ao país como forma de erigir posições nas instâncias de origem que salvaguardam a Constituição Federal, sem que tudo, necessariamente, tenha de começar e terminar no STF.

______

1 Consta da decisão que o Município de São Paulo já havia buscado proibir a atividade de transporte de passageiros por motociclistas, pela Lei nº 16.901/2018, julgada inconstitucional pelo TJSP (ADin n. 2110503-93.2019.8.26.0000, Órgão Especial, Rel. Ferreira Rodrigues, j. 11.9.2019).

Saul Tourinho Leal

Saul Tourinho Leal

Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP, tendo ganhado, em 2015, a bolsa de pós-doutorado Vice-Chancellor Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul. Foi assessor estrangeiro da Corte Constitucional sul-africana, em 2016, e também da vice-presidência da Suprema Corte de Israel, em 2019. Sua tese de doutorado, "Direito à felicidade", tem sido utilizada pelo STF em casos que reafirmam direitos fundamentais. É advogado em Brasília.

Martha R. Leonardi

Martha R. Leonardi

Formada em Direito pela UnB, é pós-graduanda em Direito Tributário pelo IBET. Integra a banca Tourinho Leal Drummond de Andrade Advocacia.

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