Novos valores mobiliários relativos aos ativos inerentes aos gases de efeito estufa e aos creditos de carbono
A lei 15.042/2024 inclui créditos de carbono no mercado financeiro, mas gera dúvidas sobre escrituração, custódia e fiscalização da CVM.
quarta-feira, 19 de março de 2025
Atualizado em 18 de março de 2025 13:37
O artigo segundo da Lei 6.385/1986 recebeu por nova redação o inciso X, que se acresce à lista de valores mobiliários ali presente: "X - os ativos integrantes do SBCE - Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa e os créditos de carbono, quando negociados no mercado financeiro e de capitais". (Incluído pela lei 15.042/24)1.
A lista em questão tem sido revista para o fim da alteração dos tipos anteriores e do acréscimo de novos - segundo as necessidades crescentes -, destacando-se até então o inciso IX, que nela incluiu os títulos e contratos de investimento coletivo, em função de uma imposição nascida do famoso caso das "Fazendas Boi Gordo". E agora temos uma novidade, sobre a qual importa falar, relativa ao mercado de carbono no Brasil.
Na linha das preocupações com o meio ambiente, objetivando a redução dos gases de efeito estufa, a lei acima citada criou o SBCE - Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa, que se aplica-se às atividades, às fontes e às instalações localizadas no território nacional que emitam ou possam emitir gases de efeito estufa (GEE), sob responsabilidade de operadores, pessoas físicas ou jurídicas (art. 1º, § 1º).
As iniciativas de controle dos gases de efeito estufa - GEE - têm por base, como atividade, qualquer ação ou processo de transformação ou operação que os emita ou possa emiti-los. Para tal fim, no âmbito do SBCE foram identificados ativos cuja negociação forma um mercado próprio, no qual circulam as Cotas Brasileiras de Emissões - CBE; os Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões CRRVE; e os Créditos de Carbono. Neste sentido o art. 14 da lei em apreço estabelece que os ativos integrantes do SBCE e os créditos de carbono, quando negociados no mercado financeiro e de capitais, são valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei 6.385/1976, dispondo o parágrafo único que será admitida a colocação privada dos ativos mencionados no caput deste artigo fora do âmbito do mercado financeiro e de capitais, caso em que tais colocações não estarão sujeitas à regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários.
Portanto, estamos diante de uma duplicidade de modelos de negociação dos referidos ativos, a pública, quanto eles são negociados no mercado de capitais como valores mobiliários, subordinados a CVM; e a privada, fora do âmbito do mercado de valores mobiliários e, portanto, fora da jurisdição daquela. Essa ambivalência suscita algumas questões, verificando-se que, tal como o deus Janus, tais ativos têm duas caras.
Tem-se em vista que os mesmos ativos, conforme a sua forma de negociação, ou são valores mobiliários ou são títulos de outra natureza jurídica, se pergunta qual seria ela para o fim da verificação do regime jurídico ao qual se submetem. A primeira classificação é nossa velha conhecida, para o fim da verificação dos direitos e obrigações aos quais se submetem os emitentes e o objeto das emissões. Veja-se, conforme abaixo, o regramento específico da negociação dos ativos em referência no mercado de valores mobiliários, nos termos da Lei 15.042/24:
Art. 15. A Comissão de Valores Mobiliários poderá determinar que, para fins de negociação no mercado de valores mobiliários, os ativos integrantes do SBCE e os créditos de carbono sejam escriturados em instituições financeiras autorizadas a prestar esse serviço, nos termos do § 2º do art. 34 da lei 6.404, de 15 de dezembro de 19762 (Lei das Sociedades Anônimas).
§ 1º Compete ao escriturador realizar o registro da titularidade dos ativos integrantes do SBCE e dos créditos de carbono, quando internalizados no sistema, bem como a averbação para transferência de titularidade, constituição de direitos reais ou quaisquer outros ônus sobre os ativos.
§ 2º Ato do órgão gestor do SBCE disciplinará a interoperabilidade dos registros do escriturador com o Registro Central do SBCE.
Art. 16. Compete à Comissão de Valores Mobiliários, sem prejuízo das competências atribuídas ao Conselho Monetário Nacional:
I - exigir que os ativos integrantes do SBCE e os créditos de carbono negociados em mercado organizado sejam custodiados em depositário central, nos termos do art. 23 da Lei nº 12.810, de 15 de maio de 20133;
II - dispensar os registros de que tratam os arts. 194 e 21 da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 19765 (Lei da Comissão de Valores Mobiliários);
III - estabelecer registros e requisitos especiais para admissão no mercado de valores mobiliários dos ativos integrantes do SBCE quando negociados no mercado financeiro e de capitais;
IV - prever regras informacionais específicas aplicáveis aos ativos integrantes do SBCE quando negociados no mercado financeiro e de capitais;
V - regular a negociação dos ativos integrantes do SBCE e dos créditos de carbono no âmbito do mercado financeiro e de capitais.
Verifica-se o cuidado natural do legislador quanto a esse modelo público de negociação, tendo em vista os princípios de transparência e de accountability que os envolve, para o fim da segurança do mercado, mas verifiquemos como se estabeleceu o controle pertinente.
A primeira observação diz respeito à faculdade de competência da CVM no sentido de estabelecer a obrigatoriedade da escrituração dos ativos de que se trata em instituições financeiras autorizadas a prestar esse serviço, mediante uma série de providências a serem atendidas, destacando-se a interoperabilidade dos registros do escriturador com o registro central do SBCE. Na nossa opinião não deveria tratar-se de faculdade, mas de obrigação. E vem então a pergunta, como se fará a escrituração desses ativos pela iniciativa dos emissores? Verifica-se que o legislador deixou essa questão em branco, fundamentalmente no que toca à escrituração, como também em relação à custodia.
Ora, tratando-se de títulos mobiliários, a liberdade dos emissores deve ser estabelecida de forma muito restrita, tendo em conta os inúmeros riscos em jogo, que ficaram sem controle, considerando-se a enorme potencialidade do mercado livre que possa ter nascimento e desenvolvimento nesse ambiente.
Outro ponto, qual a natureza jurídica dos ativos em questão, enquanto negociados por meio de colocações privadas? Para efeito de tributação o regime é único, nos termos dos artigos 14 a 20. Títulos de crédito eles não são, uma vez que a sua criação depende de lei especial que assim os estabeleça (Código Civil, art. 887). Resta qualificá-los como bens móveis, materiais ou imateriais, de acordo com a forma que seja adotada, nos termos dos arts. 82 e 83 do Código Civil, que se reveste de um tratamento inapropriado para esses ativos.
Depreende-se dessa situação que esses títulos somente podem circular na forma civil e não cartular, não cabendo o seu endosso, fato que causa uma séria limitação na sua negociação secundária. E imagina-se que os seus adquirentes não pretendam carregá-os na sua titularidade até o seu vencimento, não pensando em negociá-los. E nessa circulação, não poderiam esses títulos, na prática, serem negociados no mercado de capitais de forma irregular e, assim, alheios à fiscalização da CVM? E observe-se que neste caso, seria talvez impraticável considerá-los valores mobiliários nos termos do inciso IX do parágrafo 2º da lei 6.385/1976, a não ser que a sua emissão se caracterize como título de investimento coletivo. A conferir na vida prática.
Assim sendo, verifica-se que o legislador não tomou o melhor caminho na tutela desses títulos, da qual surgem mais dúvidas do que certezas.
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1 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Lei/L15042.htm#art54
2 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6404consol.htm#art34%C2%A72
3 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12810.htm#art23
4 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6385.htm#art19
5 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6385.htm#art21
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.