Como interpretar licitações e contratos?
O autor propõe 4 regras para interpretar licitações e 1 regra para interpretar contratos.
terça-feira, 18 de março de 2025
Atualizado às 16:23
Marcos legais das concessões (leis 8.987/1995 e 11.079/04) à parte, é seguro afirmar que, em caráter majoritário, temos atualmente em vigor dois regimes de licitações e contratos públicos: o da lei 13.303/16, restrito às empresas públicas e sociedades de economia mista e o da lei 14.133/21 que é aplicável aos demais órgãos e entidades da Administração Pública (incluindo aqui a Administração Direta e Indireta da União, dos Estados, do DF e dos municípios e o Poder Legislativo e Judiciário quando no exercício de atividades administrativas).
Analisando os 97 artigos do Estatuto das Estatais e os 194 artigos da NLGLC - Nova Lei Geral de Licitações e Contratos percebe-se que não foi objeto de atenção por parte do legislador a criação de regras de interpretação sobre os certames e as contratações.
A inexistência de normas sobre a interpretação de licitações e contratos remonta ao decreto-lei 200/1967 e perpassa tanto o decreto-lei 2.300/1986 como a lei 8.666/1993.
Mesmo na doutrina há escassez de debates sobre como interpretar as licitações públicas e os contratos celebrados pela Administração (e aqui fazemos uma ressalva de que, a rigor, os contratos celebrados pelas empresas estatais, não são contratos administrativos dotados do grau de verticalização contido nos contratos regidos pela NLGLC).
Na prática, o que há, quando muito, são previsões editalícias ou contratuais que estabelecem regras que, por exemplo, determinam que havendo disposições díspares entre o instrumento convocatório e o contrato, prevalecem a disposições do último.
Entretanto, apesar do que tal cenário de aridez faz aparentar, o debate sobre como interpretar licitações e contratos deveria, em razão dos diversos problemas que ocorrem na praxe de quem milita no setor, ser sim muito mais intenso.
Como interpretar licitações
Estabelece o texto constitucional que "ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações".
Assim, o art. 37, XXI da CF/88 deixa muito evidente que, por princípio, a contratação de obras, serviços, compras e alienações será precedida de licitação.
Isso posto, temos aqui a primeira proposta de regra hermenêutica: se o dever geral (nos termos da Constituição) é licitar, quaisquer exceções à tal exigência devem ser interpretadas de forma restritiva.
Um bom paralelo para tal raciocínio é o que prescreve o CTN em seu art. 111 ao estabelecer no caput e em seus 3 incisos que "Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sôbre: I - suspensão ou exclusão do crédito tributário; II - outorga de isenção; III - dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias".
Lecionando sobre o assunto, o professor Hugo de Brito Machado entende que a disposição contida no art. 111 do CTN "há de ser entendida no sentido de que as normas reguladoras das matérias ali mencionadas não comportam interpretação ampliativa nem integração por equidade1", lição tal que encontra eco no STJ que já decidiu no sentido de que "o art. 111 do CTN proíbe a interpretação extensiva ou qualquer outro mecanismo hermenêutico que implique em a isenção abranger situações não preconizadas na norma que a outorgou2".
Empregando-se o diálogo das fontes, é possível aplicar o "espírito" do art. 111 do CTN às leis 13.303/16 e 14.133/21 para concluir que não comportam interpretação ampliativa as regras sobre dispensa e inexigibilidade de licitações previstas nos arts. 28, § 3º, 29 e 30 do Estatuto das Estatais e nos arts. 74, 75 e 76, I e II.
Destarte, havendo dúvidas se, no caso concreto, o procedimento licitatório pode ou não pode ser afastado em razão de a licitação ser dispensada, dispensável ou inexigível, a contratação deverá ser precedida de licitação.
Ainda fazendo referência aos ditames da CF/88 (que exige expressamente que o procedimento licitatório assegure igualdade de condições a todos os concorrentes) mas também ao art. 31 do Estatuto das Estatais e aos arts. 5º e 11, II da NLGLC, podemos extrair outra regra interpretativa: a de que, na condução das licitações, a única interpretação aceitável quando da aplicação das leis 13.303/16 e 14.133/21 é a que assegure de forma impessoal e proba o tratamento isonômico entre os licitantes.
Adentrando agora apenas no texto infraconstitucional, é possível extrair do art. 31 do Estatuto das Estatais e dos arts. 5º e 11, I da NLGLC, uma terceira regra sobre a interpretação no âmbito das licitações: a de que, na aplicação da lei, o processo licitatório deve assegurar a seleção da proposta mais vantajosa dentro do ambiente de maior competitividade possível.
Podemos assim resumir as 3 regras interpretativas até aqui propostas da seguinte forma: havendo dúvidas se é ou não possível realizar uma contratação direta, a realização de licitação se impõe. Na condução dos certames, tanto a interpretação das regras do instrumento convocatório como a prática dos atos administrativos deverão redundar numa disputa isonômica, impessoal, proba e que propicie a maior competitividade possível em busca da proposta mais vantajosa.
Uma última regra interpretativa que propomos para as licitações é a seguinte: uma aplicação de uma espécie de princípio da especificidade no âmbito das contratações diretas.
Melhor dizendo: havendo mais de uma hipótese autorizativa para a realização de uma contratação direta, a fundamentação do ato administrativo deverá recair sobre aquela que seja menos abrangente e, portanto, mais específica.
Outrossim, partindo de uma ordem lógica, se a licitação é inexigível em razão da inviabilidade de competição, pouco importará se o bem/serviço a ser adquirido/contratado é de baixo valor, vez que as hipóteses de dispensa de licitação trazem hipóteses em que os certames são inoportunos, ao passo que nas inexigibilidades, há uma impossibilidade fático-jurídica para não se realizar a licitação, qual seja, a ausência da competição como condição sine qua non.
O mesmo vale para as licitações dispensadas, pois nelas o próprio texto determina que o procedimento licitatório não deve ser realizado, assim, a licitação é legalmente vedada ou proibida, de modo que, se estivermos diante de um caso de licitação dispensada como a comercialização, prestação ou execução, de forma direta, pelas empresas públicas e sociedades de economia mista, de produtos, serviços ou obras especificamente relacionados com seus respectivos objetos sociais que envolva, por exemplo, a aquisição de matéria prima de um bem de até R$ 50 reais, a contratação direta deverá ser fundamentada no art. 28, I e não no art. 29, II da lei das estatais.
E claro, o mesmo critério interpretativo vale para escolher entre mais de uma hipótese de licitação dispensável para motivar uma contratação direta, de modo que àquela que for mais específica e menos abrangente deverá prevalecer sobre a mais geral e menos abrangente. Para exemplificar: nos casos de emergência ou de calamidade pública, as contratações diretas deverão ser fundamentadas no art. 75, VIII da NLGLC mesmo que o valor delas possa ser enquadrado no art. 75, II do mesmo diploma legal.
Como interpretar contratos
Em caso de dúvidas na aplicação de cláusulas de contratos administrativos, o professor Leon Frejda Szklarowsky defendia que a interpretação deveria se dar de forma a ser menos onerosa para o contratado, afirmando que "as cláusulas duvidosas interpretam-se em favor de quem se obriga e qualquer obscuridade deve ser debitada à conta de quem redigiu o ajuste, de sorte que, no conflito entre duas cláusulas, a contradição prejudica o outorgante e não o outorgado. Deve-se fazer a interpretação da maneira menos onerosa para o devedor, no conjunto das disposições e não isoladamente3".
Partindo da premissa que tal entendimento do professor Leon Frejda Szklarowsky é correto, é preciso ter em mente que, se ele é, por óbvio, aplicável aos contratos administrativos celebrados sobre o regime da NLGLC, ele é igualmente aplicável aos contratos estatais celebrados pelas empresas públicas e sociedades de economia mista.
Veja, como bem pontua Maria Sylvia Zanella Di Pietro4, o contrato administrativo em sentido estrito, caracteriza-se pela presença da Administração Pública como Poder Público, finalidade pública, obediência na forma prescrita em lei, procedimento legal, natureza de contrato de adesão, natureza intuitu personae, presença de cláusulas exorbitantes e mutabilidade.
Das características acima, a única que os contratos tutelados pela lei 13.303/16 não possuem é a presença de cláusulas exorbitantes.
E aqui é preciso que fique bem claro que os contratos públicos da Administração Pública, sejam eles os lastreados na NLGLC ou no Estatuto das Estatais, são contratos de adesão.
Bom, sendo ambos contratos de adesão, aplica-se em caso de necessidade de interpretação de cláusulas contratuais o disposto no art. 423 do CC, que estabelece que "quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente".
Mas, mesmo sendo contratos de adesão, é possível aplicar o art. 423 do CC aos contratos regidos pelas leis 13.303/16 e 14.133/21?
No caso dos contratos celebrados pelas empresas públicas e sociedades de economia mista não nos parece haver maiores dificuldades, pois o art. 68 do Estatuto das Estatais prescreve que "os contratos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas, pelo disposto nesta Lei e pelos preceitos de direito privado".
Já nos contratos que respondem aos ditames da NLGLC, o emprego do art. 423 do CC como ferramenta interpretativa decorreria de sua aplicação supletiva, conforme assim estabelece o art. 89 da lei 14.133/21 ao dispor que "os contratos de que trata esta Lei regular-se-ão pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, e a eles serão aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado".
Como a redação do art. 89 da lei 14.133/21 é praticamente idêntica à do art. 545 da revogada lei 8.666/1993, cabem aqui os mesmos entendimentos da doutrina6, com destaque para a afirmação de Jessé Torres Pereira Junior no sentido de que "a publicização dos contratos da Administração não significa a proscrição, neles, dos princípios da teoria geral dos contratos, nem das normas reitoras dos contratos tipicamente privados7".
Voltando ao art. 423 do CC, Nelson Nery Junior, e Rosa Maria de Andrade Nery, defendem que "havendo dúvida, os direitos devem prevalecer sempre sobre as restrições (in dubio pro libertate). Assim como as leis restritivas de direitos, as cláusulas contratuais devem ser interpretadas, 'senão restritivamente, pelo menos sem recurso à interpretação extensiva e à analogia' (...) Nas cláusulas duvidosas, prevalecerá o entendimento de que se deve favorecer quem se obriga (...) A obscuridade é imputada à conta de quem escreveu a cláusula contratual, principalmente em se tratando de contrato de adesão8", sendo ladeados por Regina Beatriz Tavares da Silva9 e Nelson Rosenvald10.
Todavia, cumpre registrar que, em 2015, no bojo do MS 20.432/DF, a 1ª seção do STJ proferiu a seguinte decisão sobre a interpretação nos contratos administrativos: "na relação contratual privada, a interpretação que uma das partes faz do contrato não se sobrepõe à interpretação atribuída pela outra. Se não for dirimida pelo consenso ou por uma solução de compromisso, a controvérsia será decidida pelo Judiciário quando provocado. Na relação administrativa de natureza contratual, prevalece a interpretação adotada pela Administração Pública. Trata-se do que a doutrina chama de 'prerrogativa da decisão unilateral executória', a revelar a subordinação de quem contrata com o Poder Público".
Entretanto, essa decisão do STJ (datada de uma década atrás) nos parece, com a devida vênia, consentânea apenas com uma superada "abordagem clássica do direito administrativo verticalmente potestativo, quase autocrático, muitas vezes autorreferente e, por vezes, draconiano, pouco preocupado com as consequências concretas das decisões11" e não com a constatação de que há uma "crescente consciência das muitas disfunções decorrentes de uma percepção autoritária, adversarial, autocentrada, inflexível, complexificadora, punitivista e formalista da atuação da Administração Pública12" que vem animando mudanças importantes na criação e na aplicação do direito público.
De tal sorte, entendimento do STJ à parte, nos parece lícito defender a possibilidade de aplicar o art. 423 do CC aos contratos regidos pelas leis 13.303/16 e 14.133/21, redundando na conclusão de que, em caso de dúvidas na aplicação de cláusulas de contratos administrativos/estatais, a interpretação deve ser mais favorável ao particular contratado.
Resumo
No presente artigo propusemos 4 regras para interpretar as licitações e 1 regra para interpretar contratos.
As 4 regras para interpretar licitações são as seguintes: 1ª) em caso de dúvidas sobre a possibilidade ou impossibilidade de se empreender uma contratação direta, deve-se realizar uma licitação; 2ª) todas as medidas aditadas num processo licitatório devem ter como objetivo promover uma disputa isonômica, impessoal, proba; 3ª) todos os atos praticados numa licitação devem buscar ampliar o máximo possível a competitividade para obter a proposta mais vantajosa e 4ª) na análise de um caso concreto, as hipóteses de contratação direta mais específicas prevalecem sobre as mais genéricas.
Por fim, a regra aqui proposta para interpretar contratos é de que havido dúvidas sobre o teor de suas cláusulas, elas devem ser interpretadas em favor do particular contratado.
____________
1 Machado, Hugo de Brito, Curso de Direito Tributário, São Paulo: Malheiros Editores, 2001, pág. 98 Apud STJ, REsp 329.328/SP.
2 STJ,REsp 106.390/SP.
3 Szklarowsky, Leon Frejda, Revista de informação legislativa, v. 36, nº. 144, out./dez. 1999, pág. 215, disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/543, acesso em 02/03/2025
4 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, 27ªed. São Paulo: Atlas. 2014, pág. 273 e ss.
5 Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.
6 "(...) a supletividade a que se refere o texto do caput do art. 54 não significa que haja princípios e regras amplamente distintas daquelas que incidem nos contratos em geral. Na verdade, pretendeu-se afirmar, com a indicação, que os contratos administrativos constituam espécie do gênero contrato e contam com peculiaridades que os distinguem dos demais, sem que, no entanto, tais princípios e regras específicos os excluam do gênero. (...) Assim, nas situações em que não forem as normas específicas de contratos administrativos suficientes para a solução de eventual celeuma a respeito do ajuste firmado entre a Administração e o particular, além da aplicação estruturante, que já ocorre de praxe na formação do contrato administrativo do que é típico na redação dos contratos em geral, é cabível e autorizado que se valha de disposições legais aplicáveis ao gênero contrato, do qual os contratos administrativos e os convênios são espécie." (Oliveira, Antônio Flávio de, Comentários à Lei de Licitações e Contratações Públicas, Belo Horizonte: Fórum, 2021, págs. 445/446)
7 Pereira Junior, Jessé Torres, Comentários à lei de licitações e contratações da administração pública, 8ª ed., rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Renovar, 2009, págs. 614/615.
8 Nery Junior, Nelson e Nery, Rosa Maria de Andrade, Código Civil Comentado, 11ª ed., São Paulo: RT, 2014, pág. 1.143.
9 "O princípio de interpretação contratual mais favorável ao aderente decorre de necessidade isonômica estabelecendo em seus fins uma igualdade substancial real entre os contratantes. É que, como lembra Georges Ripert, 'o único ato de vontade do aderente consiste em colocar-se em situação tal que a lei da outra parte é soberana. E, quando pratica aquele ato de vontade, o aderente é levado a isso pela imperiosa necessidade de contratar'. (...) O aderente, como sujeito da relação contratual, deve receber idêntico tratamento dado ao consumidor, diante do significado da igualdade de fato que estimula o princípio." (Código Civil comentado, coordenadora Regina Beatriz Tavares da Silva, 8. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 536)
10 "A contratação por adesão possui uma grande característica: elimina a fase das conversações preliminares, pois uma das partes estabelece unilateralmente as condições gerais do contrato, sendo que o consentimento do outro contratante sem a própria adesão em bloco- take it or leave it. O art. 423 reconhece a contratualidade da adesão, mesmo que ela seja privada do espaço de discussão de cláusulas pela existência de certo desequilíbrio entre os contratantes. Em virtude desse desequilíbrio prévio, caberá ao ordenamento uma intervenção mais drástica sobre os contratos dessa natureza, a fim de que a parte mais débil possa se relacionar com total intelecção da avença. O art. 423 cuida da interpretação do contrato de adesão. As suas cláusulas dúbias ou vacilantes serão interpretadas contra quem redigiu o contrato." (Rosenvald, Nelson, Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência, Coordenador Cezar Peluso, 7ª. ed. rev. e atual., Barueri, SP: Manole, 2013, pág. 478)
11 Caúla, César; Araújo, Aldem Johnston Barbosa. Exame de normas que enunciam o progressivo abandono do direito administrativo imperativo e adversarial. Revista do Centro de Estudos Jurídicos, Belo Horizonte, ano 12, n. 12, p. 51-71, dez. 2022, pág. 70.
12 Caúla, César; Araújo, Aldem Johnston Barbosa. Exame de normas que enunciam o progressivo abandono do direito administrativo imperativo e adversarial. Revista do Centro de Estudos Jurídicos, Belo Horizonte, ano 12, n. 12, p. 51-71, dez. 2022, pág. 52.