Possibilidade de penhora do bem de família vultuoso: Uma análise jurisprudencial
Recentes decisões têm relativizado a impenhorabilidade do bem de família de luxo, desde que seja reservado ao devedor um valor para a compra de uma nova moradia.
sexta-feira, 14 de março de 2025
Atualizado em 13 de março de 2025 15:44
Por meio da lei 8.009/90, o imóvel que serve como residência da família brasileira é especialmente protegido de sua expropriação para o pagamento de qualquer tipo de dívida, sob o manto da impenhorabilidade do bem de família. A sua ratio legis é tutelar o direito fundamental à moradia, disposto no art. 6° da CF/88.
Entretanto, tal direito não é absoluto. A título de exemplo, podemos citar os casos em que o exequente busca a penhora do imóvel familiar para a cobrança de imposto predial, territorial, execução da hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real, entre outras exceções dispostas no art. 3° da lei 8.009/90. Importante pontuar, todavia, que tais dispositivos, ao permitirem a penhora do bem de família, não são inconstitucionais.
De acordo com o STF, o direito fundamental à moradia deve ser compatibilizado com outros direitos fundamentais, tal como decidiu ao fixar a tese de repercussão geral para o Tema 1.127: "É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial."1
Nesse contexto, tem se tornado cada vez mais comum que os credores recorram ao judiciário para discutir a possibilidade de penhora do bem de família quando há indícios de que o seu valor de mercado seja vultuoso.
Por meio deste texto, abordaremos algumas decisões recentes de destaque que, ao relativizar a possibilidade de penhora do bem de família, deferiram a constrição parcial do bem cujo valor é de grande expressão.
Recentemente, a 12ª câmara de Direito Privado do TJ/SP negou provimento ao agravo de instrumento 2338345-88.2024.8.26.0000, interposto pelo executado. Por meio desse, o agravante pretendia o reconhecimento da qualidade de bem de família do seu imóvel e, consequentemente, a declaração de sua impenhorabilidade integral.
No acórdão, lavrado sob a relatoria da desembargadora Sandra Galhardo Esteves, a Câmara fez uma digressão a respeito da trajetória legislativa do tema bem de família, desde a CF/88 até a promulgação da lei 8.009/90.
Na oportunidade, os julgadores foram enfáticos ao expor que o direito à moradia é legalmente previsto e, por óbvio, deve ser respeitado. Todavia, não pode sobrepujar o direito do credor à satisfação da dívida quando verificado que o imóvel possui expressivo valor de mercado.
Ao final, a Câmara negou provimento ao recurso, e manteve a decisão agravada que determinou a avaliação do imóvel para que posteriormente seja analisada a sua impenhorabilidade. Segundo a Corte Bandeirante, caso o imóvel possua valor vultuoso, será possível a sua penhora, desde que seja assegurado ao devedor uma quantia para a aquisição de uma nova moradia digna.
O entendimento, apesar de raro, não é isolado, especialmente no TJ/SP. Em 2021, a 16ª Câmara de Direito Privado deu parcial provimento ao agravo de instrumento 2075933-13.2021.8.26.0000, interposto pelo exequente. Como resultado, deferiu a penhora de um imóvel avaliado em R$ 24.000.000,00, resguardando ao executado a quantia equivalente a 10% desse valor para a compra de uma nova residência.
No acórdão, lavrado sob a relatoria do desembargador Ademir Modesto de Souza, constou que a quantia garante ao devedor o direito a uma moradia digna, conforme pretendeu o legislador ao tratar do tema junto à CF e à lei 8.009/90.
Outro interessante acórdão foi proferido pela 30ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, ao julgar o agravo de instrumento 2288903-95.2020.8.26.0000, interposto pela parte executada, com o objetivo de que fosse reconhecida a qualidade de bem de família do seu imóvel.
A corte julgadora reconheceu que a devedora comprovou residir no imóvel e que aquele era o único registrado em seu nome, preenchendo, assim, os requisitos do art. 5° da lei 8.009/90 para o reconhecimento da qualidade de bem de família do imóvel. Todavia, tais pontos não foram óbices para o deferimento da penhora do bem. Nas razões do acórdão, lavrado sob a relatoria da desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, constou que o valor da avaliação do imóvel era de R$1.780.000,00, muito superior ao valor da dívida, que era de R$ 495.999,70.
Assim, de acordo com a Câmara, a alienação do bem vultuoso para a satisfação da dívida respeitaria tanto o direito do credor em ter o seu crédito satisfeito, quanto o direito do executado à moradia digna, que poderá ser garantida com o saldo residual da venda do imóvel após a satisfação da execução.
Além dessas decisões, denota-se, porém, que há uma lacuna legal e jurisprudencial a respeito de qual seria o valor suficiente para garantir ao devedor uma moradia digna para residir com a sua família. Lacuna essa que, muitas vezes, é um óbice para o deferimento da penhora do bem de família de valor vultuoso.
Entretanto, acreditamos que esse hiato não pode ser um impedimento para que a impenhorabilidade do bem de família seja flexibilizada quando o devedor destina todo o seu patrimônio à aquisição de um imóvel de caráter excessivamente luxuoso e desnecessário. Afinal, embora a execução não deva conduzi-lo a uma situação indigna, não se pode admitir que as disposições relativas à impenhorabilidade sejam utilizadas de maneira abusiva pelo executado, com o intuito de obstruir o regular andamento da execução2.
De todo o exposto, acreditamos que seja válida a relativização da impenhorabilidade do bem de família quando verificado, sem sombra de dúvidas, que o imóvel possui valor vultuoso, muito aquém do necessário para garantir uma residência digna ao devedor. Assim, é possível concatenar o direito do executado à moradia, conforme lhe garante a CF por meio do art. 6°, e a lei 8.009/90, para com o direito do credor à liquidação da dívida por meio da penhora de bens do executado, esculpido no art. 797 do CPC.
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1 (STF - RE 1.307.334, Tribunal Pleno, Rel.: Alexandre de Moraes, julgado em 09.03.2022).
2 MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. 9ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024.
Pedro Henrique Juliani Vecchi
Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (PR) e advogado especialista no setor de recursos da carteira bancária de clientes do escritório Medina Guimarães.