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Ilicitude na exigência de acesso para pagamento no free flow

A imposição do acesso a sites para pagamento de pedágio no sistema free flow é ilegal. O artigo discute a falta de previsão legal e a obrigação da concessionária de emitir faturas.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Atualizado às 13:09

Introdução

O sistema de pedágio free flow, implementado em diversas rodovias brasileiras, representa uma inovação tecnológica que permite a cobrança automática de tarifas sem a necessidade de paradas em praças de pedágio tradicionais. Regulamentado pela lei Federal 14.157/21, esse sistema utiliza a identificação automática de veículos para agilizar o tráfego e modernizar a administração rodoviária.

Contudo, a ausência de regulamentação específica sobre a forma de pagamento para usuários sem dispositivos de cobrança automática, como o "tag" (ex.: Sem Parar), tem gerado controvérsias jurídicas significativas.

Muitas concessionárias, têm imposto unilateralmente aos usuários a obrigação de acessar seus sites para efetuar o pagamento das tarifas, prática que levanta questionamentos sobre sua legalidade e compatibilidade com os direitos do consumidor.

Este artigo analisa a ilicitude dessa imposição e defende a obrigatoriedade de emissão de faturas de cobrança acessíveis como medida essencial para proteger os usuários do sistema free flow.

Contexto legal do sistema free flow

A lei Federal 14.157/21 introduziu o sistema free flow no Brasil, definindo-o como uma modalidade de cobrança de tarifas pelo uso de rodovias e vias urbanas sem a necessidade de praças de pedágio, por meio da identificação automática dos veículos (art. 1º, § 1º).

Embora a norma seja clara quanto à sua finalidade - promover maior proporcionalidade entre o trecho utilizado e a tarifa cobrada -, ela silencia sobre os procedimentos de pagamento para usuários que não possuem "tags" ou sistemas similares.

Essa lacuna foi parcialmente abordada pela resolução CONTRAN 1.013/24, que estabelece diretrizes para a implementação do sistema e define os "canais válidos de recebimento" como meios físicos ou virtuais, utilizando quaisquer tecnologias de pagamento (art. 2º, II).

Contudo, a resolução não especifica como as concessionárias devem notificar os usuários ou enviar os títulos de cobrança, deixando margem para interpretações e práticas unilaterais por parte das concessionárias.

Na prática, concessionárias exigem que os usuários sem "tag" acessem seus sites para consultar e pagar as tarifas, sob pena de multas ou outras sanções.

Tal exigência, no entanto, carece de fundamento legal explícito e impõe um ônus desproporcional ao consumidor, como veremos a seguir.

A ilicitude na imposição de acesso ao site para pagamento

Princípio da legalidade

A CF/88, em seu art. 5º, inciso II, estabelece que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

Esse princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro exige que qualquer obrigação imposta ao cidadão tenha base em lei formal, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República.

No contexto do sistema free flow, nem a lei 14.157/21 nem a resolução CONTRAN 1.013/24 impõem aos usuários a obrigação de acessar sites das concessionárias para efetuar o pagamento das tarifas.

A resolução, por sua vez, não tem força de lei, sendo apenas um ato normativo infralegal que regulamenta aspectos técnicos do sistema, sem o poder de criar obrigações diretas aos cidadãos.

Assim, a exigência imposta pelas concessionárias configura uma determinação unilateral, desprovida de amparo legal, violando o princípio da legalidade.

Abusividade sob o CDC

Além da ausência de base legal, a imposição de acesso ao site da concessionária pode ser considerada uma prática abusiva sob a ótica do CDC.

O art. 39, inciso V, do CDC proíbe ao fornecedor "exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva".

Obrigar o usuário a buscar ativamente os meios de pagamento, especialmente em viagens longas que envolvam múltiplas concessionárias, transfere ao consumidor um ônus desproporcional e desarrazoado.

Imagine um motorista que viaje de Borborema/SP ao Guarujá/SP, percorrendo 600 km e passando por rodovias administradas por diversas concessionárias (ex.: Econoroeste, CCR, Ecovias).

Sem uma fatura consolidada ou enviada diretamente, ele teria que anotar cada concessionária, acessar seus respectivos sites e efetuar os pagamentos individualmente.

Tal prática não apenas é inconveniente, mas também contraria os princípios de razoabilidade e boa-fé que devem reger as relações consumeristas.

A necessidade de emissão de faturas de cobrança

Dever da concessionária como prestadora de serviço

As concessionárias de rodovias, como prestadoras de serviço público delegado, têm o dever de garantir que a cobrança das tarifas seja realizada de forma clara, acessível e justa.

A resolução CONTRAN 1.013/24, ao prever "meios físicos ou virtuais" como canais válidos de recebimento, não exime as concessionárias da obrigação de notificar os usuários sobre os valores devidos.

A distinção entre "meios de recebimento" (onde o pagamento pode ser feito) e "meios de cobrança" (como o usuário é informado da dívida) é crucial: a resolução regula o primeiro, mas não dispensa a necessidade do segundo.

Assim, é razoável afirmar que as concessionárias devem emitir e enviar faturas de cobrança - seja por meio físico (ex.: boleto enviado pelo correio) ou digital (ex.: e-mail) - aos usuários sem "tag", permitindo que o pagamento seja efetuado sem a necessidade de busca ativa por parte do consumidor.

Essa prática está alinhada com o art. 6º, inciso IV, do CDC, que assegura ao consumidor "a proteção contra práticas abusivas ou impostas no fornecimento de serviços".

Precedente judicial

Um precedente recente reforça essa interpretação.

Em decisão proferida no processo 1001210-28.2024.8.26.0067, o juizado especial cível de Borborema/SP julgou procedente uma ação de obrigação de fazer movida por um condutor/proprietario contra a Econoroeste.

O autor, proprietário de uma caminhoneta sem "tag", requereu que a concessionária fosse compelida a emitir e enviar boletos de cobrança sempre que seu veículo utilizasse o sistema free flow.

O juiz, fundamentando-se no art. 39, inciso V, do CDC, reconheceu que a imposição de acesso ao site representava um ônus excessivo ao consumidor e determinou que a concessionária cumprisse a obrigação de enviar a fatura ao e-mail ou endereço físico do autor, sob pena de multa diária de R$ 300,00.

Essa sentença destaca que a responsabilidade de facilitar o pagamento recai sobre a concessionária, e não sobre o usuário, consolidando o entendimento de que a emissão de faturas é uma medida necessária para equilibrar a relação entre as partes.

Contrapontos da concessionária e sua refutação

Em sua defesa, a Econoroeste argumentou que a resolução CONTRAN 1.013/24 autoriza múltiplos canais de pagamento (WhatsApp, aplicativo, site e totens físicos), atendendo às exigências legais e contratuais do sistema free flow.

Sustentou, ainda, que a relação com o usuário não seria consumerista, mas sim regida pela lei de proteção ao usuário de serviço público, o que afastaria a aplicação do CDC.

Tais argumentos, contudo, não se sustentam.

Primeiro, a resolução define apenas os meios de recebimento, não os meios de cobrança, o que não exime a concessionária de notificar o usuário de forma proativa. Segundo, a jurisprudência e a doutrina majoritária reconhecem que a relação entre concessionárias de rodovias e usuários possui natureza consumerista, enquadrando-se nos arts. 2º e 3º do CDC.

A decisão do juizado de Borborema corroborou esse entendimento, aplicando o CDC para proteger o consumidor contra práticas abusivas.

Conclusão

A imposição de que os usuários do sistema free flow acessem os sites das concessionárias para pagar as tarifas é uma prática ilícita, pois viola o princípio da legalidade (art. 5º, II, CF) e configura uma vantagem excessiva vedada pelo CDC (art. 39, V).

As concessionárias, enquanto prestadoras de serviço, têm o dever de emitir e enviar faturas de cobrança claras e acessíveis aos usuários sem "tag", seja por meios físicos ou digitais, como forma de garantir a transparência e a proteção ao consumidor.

A decisão judicial no caso de Borborema serve como precedente valioso, incentivando outros usuários a exigirem seus direitos e pressionando as concessionárias a adotarem práticas mais justas.

Cabe às autoridades competentes - como o CONTRAN e a ARTESP - regulamentar de forma mais detalhada o sistema free flow, assegurando que a modernização tecnológica não se traduza em prejuízo aos direitos dos cidadãos.

Marcelo Alves Neves

VIP Marcelo Alves Neves

Advogado focado em conhecimento, eficiência e resultado. Visite: www.man.adv.br | Tel./Wpp.: (16) 99169.4996

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