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Superendividamento: A justiça falha sem capacitação dos magistrados

A falta de capacitação dos magistrados na lei do superendividamento compromete sua correta aplicação, negando direitos aos consumidores e agravando a exclusão financeira e social.

sexta-feira, 7 de março de 2025

Atualizado às 12:01

Recentemente, um caso julgado no TJ/RJ revelou um problema preocupante: a resistência de alguns magistrados à correta aplicação da lei do superendividamento (lei 14.181/21). No processo em questão, a juíza de primeiro grau simplesmente decidiu que não realizaria a audiência conciliatória prevista no art. 104-A da lei, sob a justificativa de que essas audiências seriam "inócuas" e causariam "tumulto processual".

Sobre essa decisão, escrevi recentemente um artigo no Migalhas (Acesse aqui) abordando a gravidade de um juiz se recusar a aplicar uma norma legal simplesmente porque não concorda com ela.

Agora, volto ao tema sob outra perspectiva: a falta de capacitação dos magistrados sobre a lei do superendividamento e os inúmeros erros que isso vem gerando na sua aplicação prática.

O problema dessa decisão não está apenas em contrariar a legislação, mas na total falta de compreensão sobre o propósito da norma. A audiência do art. 104-A não pode ser confundida com uma audiência comum de conciliação, como as previstas no art. 334 do CPC. Ela é essencial para a recuperação financeira do consumidor superendividado, pois permite que todas as dívidas sejam analisadas de forma global, com a participação obrigatória dos credores para a construção de um plano de pagamento sustentável.

A resistência ao cumprimento da lei se torna ainda mais grave quando se percebe que a magistrada ignorou a possibilidade de aplicar a sanção prevista no §2º do art. 104-A. Se os credores comparecem à audiência sem apresentar propostas concretas de negociação, a lei determina a suspensão da exigibilidade da dívida e a interrupção dos encargos da mora. O enunciado 39 do FONAMEC reforça essa interpretação, deixando claro que a mera apresentação de uma procuração com poderes para negociar não é suficiente. O credor deve demonstrar efetiva cooperação.

Esse caso deixa evidente um problema estrutural maior: a falta de capacitação de muitos juízes sobre a lei do superendividamento. Tenho reiteradamente insistido na necessidade de capacitação dos magistrados, pois erros como o cometido nessa decisão demonstram um desconhecimento básico da norma.

Um equívoco recorrente é a interpretação errada do verbo "poderá" no art. 104-A, levando alguns juízes a acreditar que a realização da audiência seria uma mera faculdade. Na realidade, trata-se de um poder-dever, ou seja, o juiz tem a obrigação de conduzir a audiência para garantir o cumprimento da legislação e a proteção do consumidor.

Enquanto o Judiciário não investir na capacitação de seus magistrados, continuaremos vendo decisões que negam direitos essenciais aos consumidores superendividados. A não aplicação correta da lei mantém um ciclo de exclusão financeira e social, impactando diretamente o aumento da pobreza, do endividamento crônico e até da criminalidade.

A falta de capacitação dos magistrados na lei do superendividamento tem gerado uma série de decisões que comprometem a eficácia da norma e prejudicam consumidores em situação de vulnerabilidade financeira.

Entre os problemas mais comuns, destacam-se a não concessão de liminares para suspensão de cobranças abusivas, o desvirtuamento da análise do mínimo existencial, que muitas vezes desconsidera as reais necessidades do consumidor, a negação de honorários advocatícios na repactuação, desestimulando a defesa técnica, e a não aplicação das sanções previstas no §2º do art. 104-A, permitindo que credores compareçam às audiências sem apresentar propostas concretas de negociação, contrariando o espírito da lei.

Uma possível solução para esses entraves seria a criação de varas especializadas em superendividamento, concentrando essas demandas em um grupo reduzido de juízes que, por atuarem exclusivamente na matéria, teriam a obrigação de se aprofundar na legislação e em seus princípios.

Essa especialização não apenas garantiria uma aplicação mais uniforme da lei, mas também ajudaria a consolidar uma jurisprudência mais protetiva e alinhada ao propósito da norma, que é permitir a reinserção social e econômica do consumidor superendividado.

Negar a aplicação correta da lei do superendividamento não significa apenas abandonar um consumidor à própria sorte. Significa contribuir para o aumento da miséria, para a ruína de famílias inteiras, para o crescimento da informalidade e da criminalidade. Significa perpetuar um sistema que empurra milhões de pessoas para um ciclo de endividamento sem saída, comprometendo a economia e a arrecadação do próprio Estado.

O superendividamento não é apenas um problema do consumidor - é um problema da sociedade. Quando o Judiciário falha em cumprir seu papel, não são apenas processos que são arquivados sem justiça. São vidas que se destroem, famílias que se desestruturam, sonhos que são interrompidos.

Mas o impacto vai além do indivíduo. O aumento do superendividamento significa menos consumo, menos arrecadação de tributos, mais informalidade, mais pobreza e, consequentemente, mais desigualdade e criminalidade.

O caos financeiro de um consumidor se transforma em um peso para todos nós enquanto sociedade. Permitir que esse ciclo continue sem o devido enfrentamento é ignorar que o futuro econômico e social do país depende da correta aplicação da lei.

Se queremos um país mais justo e sustentável, o Judiciário precisa assumir sua responsabilidade e garantir que a lei do superendividamento cumpra sua função social. A omissão não prejudica apenas os consumidores - prejudica a todos nós.

Leonardo Garcia

VIP Leonardo Garcia

Procurador do Estado do Espírito Santo; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, Autor dos livros e parecerista

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