Semelhanças e diferenças nos crimes contra as mulheres
O conhecimento aprofundado sobre quais são os crimes contra as mulheres e como combatê-los, é essencial para que a violência de gênero não mais exista.
quarta-feira, 12 de março de 2025
Atualizado às 11:17
É muito comum que atos de acusados de violência doméstica culminem em mais de um crime. De tal forma, o que ocorreria se uma mulher com medida protetiva de urgência que determine que o acusado fique afastado a 100m e tal mulher fosse seguida a 500m e essa perseguição se repetisse? Mesmo não sendo tipificado o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, é típico o crime de stalking, pois a perseguição acontece de forma reiterada, pois para ocorrer o crime de stalking não só deve haver a perseguição, mas ocorrer mais de uma vez (E pode ser de forma diversa, como presencialmente uma vez e, em uma segunda vez, por meio eletrônico). E se a vítima, com as mesmas medidas protetivas de urgência, fosse perseguida todos os dias a uma distância menor do que a determinada pelo magistrado, seria crime de stalking? Seria crime de descumprimento das medidas protetivas?
O delegado, ao apreciar os fatos poderia entender se tratar somente do crime de stalking, ignorando as medidas protetivas de urgência, fornecendo equivocadamente ao acusado a chance de ter estipulada a fiança não judicial - uma vez que a pena do crime de stalking não pode ultrapassar três anos -, com o aumento de pena previsto por ser contra alguém do sexo feminino sendo afiançável pelo delegado pelo fato de a pena não ultrapassar quatro anos, segundo o art. 322 do CPP, beneficiando o acusado e, com isso, aumentando a sensação de impunidade do agressor e medo para a vítima. Já o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência não é afiançável na delegacia, somente pelo juiz em seu livre convencimento, segundo o §2º do art. 24-A da lei Maria da Penha. O mesmo ocorre com os crimes contra a honra, ameaça e até stalking por mensagens, sendo tais afiançáveis, mas não haverá fiança em delegacia se cometidos no descumprimento das medidas protetivas de não comunicação.
O crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, o crime de stalking e o crime de violência psicológica existem somente na forma dolosa, ou seja, é necessária a intenção de cometê-los, havendo para o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência a necessidade de que o acusado tenha ciência de tais vedações judiciais, com direito ao contraditório e à ampla defesa, com fulcro no art. 5º, LV da CF. Sem ser citado sobre uma decisão judicial, é inevitável que o acusado cometa erro sobre a ilicitude do fato, pois não depende somente de o acusado ter conhecimento da lei, mas sim se possui conhecimento sobre decisão judicial, sendo, portanto, escusável, havendo isenção de pena conforme o art. 21 do CP.
O crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência não pode ser cometido por outro que não seja aquele que, conforme determinação judicial, teve direitos restringidos, sendo definido como crime próprio, de tal forma não pode a vítima descumprir as medidas protetivas de urgência por se aproximar daquele que é proibido de estar a distância menor do que a prevista, ou enviando mensagens para o acusado, sendo crime impossível, além de ser impossível também o crime, em tal caso concreto, por quem é proibido judicialmente de se aproximar ou de manter contato. Podem ainda os papéis se inverterem, pois caso a mulher que possui medidas protetivas de urgência estar perseguindo reiteradamente seu antigo algoz, estará tal mulher cometendo o crime de stalking, condicionando tal antigo algoz a, inclusive, solicitar judicialmente medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP, o que eu chamo de stalking reverso, assim a mulher deverá ter as medidas protetivas de urgência reavaliadas pelo juiz.
Não há descumprimento das medidas protetivas de urgência sem que o acusado tenha a intenção de cometer o ato criminoso, conforme o parágrafo único do art. 18 do CP, pois as regras gerais do CP são utilizadas pelas leis especiais, com fulcro no art. 12 do CP, de tal forma caso o acusado tenha, de forma acidental e não assumindo o risco, encontrado a mulher que possui as medidas protetivas de urgência, como por exemplo em um hospital em que ambos estão como pacientes, não há o que se falar em crime de descumprimento. Caso o relacionamento tenha sido reatado, sem que a vítima tenha sido coagida, também não há descumprimento das medidas protetivas de urgência, por haver perda do objeto.
No caso de acidentalmente, ou por erro no uso dos meios de execução, o acusado estar reiteradamente perseguindo a irmã gêmea de uma mulher que possua medidas protetivas de urgência, tal acusado não responderá pelo crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência - pois a restrição de aproximação é objetiva -, mas responderá pelo crime de stalking como se perseguisse a outra pessoa, com fulcro no § 3º do art. 20, C/C art. 73, ambos do CP. O direito a representação criminal caberá a quem equivocadamente foi perseguida.
É admitida a forma tentada do crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência quando iniciada a execução, mas não há consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente, como exemplos: 1- O acusado é proibido judicialmente de retornar ao lar onde convivia com a vítima, tenta abrir o portão da casa da vítima e não consegue; 2- É proibido de se aproximar da vítima e ainda assim tenta ingressar no imóvel em que a vítima reside e ele não. Nos casos citados, o crime de violação do domicílio é tido como crime meio, sendo absorvido pelo crime fim de descumprimento das medidas protetivas. No stalking, caso o perseguidor posicione um binóculo para vigiar, mas desista da utilização antes de ser notado, será beneficiado pelo princípio da lesividade ou ofensividade, cabendo o instituto do arrependimento eficaz.
Outra diferença entre o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência e o crime de stalking é que este depende da vontade da vítima que a notícia-crime ocorra, segundo o § 3º do art. 147-A do CP, ou seja, caso a vítima não se manifeste, o Ministério Público nada poderá fazer. Já o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência é de ação penal pública incondicionada, obrigando o Ministério Público a se manifestar. Tal incondicionalidade se dá pelo fato de o art. 100 do CP considerar crimes como de ação penal pública, salvo quando a lei disser o contrário. Pelo fato de o descumprimento das medidas protetivas de urgência ser um crime não só contra a mulher, mas também contra a Administração Pública, qualquer pessoa pode noticiá-lo criminalmente, pelo fato de os bens jurídicos tutelados, nesse caso, serem não só a segurança e incolumidade da mulher, mas também a administração da justiça, não importando inclusive se o descumprimento das medidas protetivas de urgência teve como fato gerador crimes que dependam de representação da vítima, como ameaça ou crimes contra a honra, ou mesmo ocorrendo abolitio criminis, como o revogado art. 65 da lei das contravenções penais, pois as medidas protetivas de urgência encerram-se por si mesmas, não havendo a necessidade de qualquer outra ação.
Figurando ao mesmo tempo o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência e o crime de stalking, serão ambas condutas tipificadas como crimes por possuírem tutelas de direito diferentes, além de não haver a exclusão da aplicação de outras sanções cabíveis ao crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, com fulcro no §3º do art. 24-A da lei Maria da Penha, lei esta especial, sendo aplicado então o princípio da especialidade, pois tal princípio se sobrepõe ao critério cronológico segundo o STF, havendo a possibilidade de punição por ambos tipos penais, figurando o chamado concurso formal das penas, sendo tais somadas pelo fato de estes crimes serem concorrentes de forma dolosa por desígnios autônomos, com fulcro no art. 70 do CP. Poderá, então, uma pessoa que comete o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, de forma reiterada, seja perseguindo fisicamente, frequentando locais onde é proibida de estar ou ligando e enviando mensagens a alguém, cometer também o crime de stalking. Da mesma forma é admitida a aplicabilidade conjunta do crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência e o crime de ameaça, por haver tutelas de direitos diferentes, caso uma das medidas protetivas de urgência seja a proibição de comunicação do acusado com a vítima, informando o acusado que irá causar mal injusto ou grave a vítima. O crime de ameaça está previsto nos caputs dos crimes de stalking e de violência psicológica, havendo o mesmo direito tutelado para estes últimos três crimes, por estarem na mesma seção I do capítulo VI do CP, sendo o direito tutelado a liberdade individual/liberdade pessoal, aplicando-se o crime de stalking se o ato de ameaçar for uma conduta reiterada, já se a ameaça causar dano emocional a mulher e a conduta não for reiterada será então tipificado o crime de violência psicológica. Em tais casos, sem a reiteração de conduta e sem dano emocional à mulher, a tipificação será somente a do crime de ameaça ou o crime de constrangimento ilegal, também previsto na seção I do capítulo VI do CP.
Caso a pena do crime de violência psicológica seja menos gravosa do que a de outro crime, em um mesmo ato, deve-se então aplicar o crime de maior gravidade, conforme previsão do art. 147-B do CP, em detrimento do crime de violência psicológica. Como o crime de stalking prevê pena de seis meses a dois anos, sendo aumentada pela metade quando cometido contra a mulher, segundo o inciso II, § 1º do art. 147-A do CP, tal crime tem a pena mais gravosa do que a pena do crime de violência psicológica, que só é aplicável com a mulher sendo vítima; de tal forma, se os crimes forem praticados em um ato reiterado, será tipificado somente o crime de stalking. Segundo o Ministério Público de São Paulo, caberá o aumento de pena se o stalking for praticado contra a mulher trans ou travesti, pelo enunciado 6 do CAO-CRIM - centro de apoio operacional criminal publicado no boletim criminal comentado 137 de maio de 2021, sendo tal enunciado seguido por doutrinas e jurisprudências.
Se o dano emocional doloso for gerado pelo crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, o acusado responderá somente pelo crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, por ser este o crime com pena maior do que o crime de violência psicológica, com fulcro no art. 147-B do CP.
Não se aplicará o agravante de pena do art. 61, inc. II, "f" do CP nem no crime de violência psicológica, pois é essencial para este crime o fato de ser mulher, conforme o caput do art. 147-B do CP, nem no crime de stalking, pois prevê caso de aumento de pena no art. 147-A §1º, II do CP se cometido contra a mulher, e nem no crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, pois a lei Maria da Penha no art. 1º define que tal lei é destinada à proteção da mulher, não havendo também para o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência o agravamento do art. 61, inc. II, "i" do CP, pois a imediata proteção de autoridade é constitutiva das medidas protetivas de urgência, pois tais medidas protetivas são decretadas para a proteção das mulheres.
Conclusão
Foram expostos neste artigo os conflitos aparentes de normas entre os crimes de descumprimento das medidas protetivas de urgência, crime de stalking e crime de violência psicológica, além das consequências em caso de eventual erro na tipificação penal.
Embora as medidas protetivas de urgência, o crime de stalking e o crime de violência psicológica terem grande aproximação, este artigo buscou suas diferentes aplicabilidades, pois é necessário que todos tenham profundo conhecimento das legislações vigentes sobre o tema.
O conhecimento aprofundado sobre quais são os crimes contra as mulheres, e como combatê-los, é essencial para que a violência de gênero não mais exista e, assim, a lei Maria da Penha, um dia, represente somente o conquistado avanço pelos direitos humanos.
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1 BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1941. Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [1940]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm.
2 Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das contravenções penais. Brasília, DF: Presidência da República, [1941]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm.
3 BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [1941]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm.
4 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
5 MPSP. Boletim nº 137, enunciado nº 6, maio de 2021, op. cit., nota 60. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/Boletim_Semanal/Boletim%20CAOCRIM%20137.pdf.