Ao completar 10 anos, audiências de custódia, celebradas como um marco civilizatório, correm risco de perder sua essência
As audiências de custódia são um avanço no direito de defesa, mas enfrentam ameaças que podem comprometer a Justiça e ampliar prisões arbitrárias.
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025
Atualizado em 26 de fevereiro de 2025 13:51
No Brasil, até 2015, uma pessoa presa levaria, em média, 120 dias para encontrar o juiz ou juíza presencialmente. A legalidade da prisão era analisada no papel, de maneira fria, burocrática. Com a instituição das audiências de custódia, em todo o país, toda pessoa deve ser apresentada a um juiz em até 24 horas após a detenção para análise da legalidade da prisão, da necessidade de decretação da prisão preventiva, da possibilidade de substituição por medidas cautelares alternativas ao cárcere e, não menos importante, para verificar se houve prática de tortura ou maus-tratos.
As audiências de custódia completaram 10 anos neste mês, no dia 24 de fevereiro, representando um marco civilizatório no direito de defesa e um passo importante no acesso à Justiça, ao devido processo e à ampla defesa, previstos no Código de Processo Penal e assegurados na Constituição de 1988. É pouco tempo, ainda mais num sistema tão marcado pelo punitivismo como promessa de garantia de segurança. No entanto, tem sido alvo de ataques desde sua implementação. Brados de apelo populista como "servem para soltar bandidos" são frequentemente feitos, escancarando o senso comum rasteiro, especialmente por parte de políticos ou apresentadores de programas policialescos da TV, e repercutem em projetos de lei que tentam acabar com sua essência, um aceno para um retrocesso gravíssimo na política criminal do país.
Não custa lembrar: as audiências de custódia não servem ao julgamento do fato, depois do qual a pessoa pode cumprir a pena, se condenada. A Constituição Federal determina como regra que a pessoa siga livre até seu processo ser concluído. A efetivação dessas audiências no Brasil também representa uma resposta concreta ao número elevado de presos provisórios, com efeitos sociais nefastos, seja diante do rompimento precoce de laços familiares, ou por levar a pessoa para um sistema carcerário dominado pelas facções criminosas.
O projeto das audiências de custódia se deu durante a presidência do ministro Ricardo Lewandowski no CNJ, marcando a adesão do Brasil ao Pacto de San José da Costa Rica e ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, internalizados no ordenamento jurídico brasileiro desde 1992. Até hoje, são pouco mais de 1,7 milhão de audiências de custódia realizadas, segundo dados do SISTAC - Sistema de Audiências de Custódia, do CNJ. Desse total, em quase 700 mil, as pessoas tiveram liberdade concedida.
O Brasil tem hoje mais de 880 mil pessoas presas, segundo o Relipen - Relatório de Informações Penais, do Ministério da Justiça, 27,7% deste total aguardam julgamento. Proporção menor do que os 41% de presos provisórios de 2015, números do então Departamento Penitenciário Nacional. É um dado preocupante, visto a superlotação das unidades prisionais em um sistema declarado inconstitucional pelo STF.
Desde 2011, o IDDD vem atuando para a efetivação e consolidação desse mecanismo no Brasil. E segue acompanhando com preocupação seu funcionamento, inclusive realizando um monitoramento nacional nesse momento. Hoje nas casas legislativas, projetos de lei procuram esvaziar essas audiências, manobras que não apenas violam a presunção de inocência como podem impactar o poder decisório de autoridades judiciais.
É o caso do PL 226/24, aprovado pela CCJ - Comissão de Constituição e Justiça do Senado, no segundo semestre do ano passado. O IDDD, ao lado de outros 40 instituições, como a Rede Justiça Criminal, a APT - Associação para a Prevenção da Tortura e a Defensoria Pública do Distrito Federal, pediu sua rejeição. De autoria do ex-senador e atual ministro do STF Flávio Dino, o PL teve relatoria de Sergio Moro (União Brasil/PR), que apresentou emendas no texto original para alterar a legislação processual, com a "recomendação" da manutenção da prisão em situações que o projeto especifica.
Desde a pandemia, uma das preocupações é com a virtualização de tais procedimentos. No ano passado, o IDDD lançou um relatório que apontava um número elevado de audiências de custódia virtuais. Segundo os dados, 40,9% das capitais as realizavam de modo presencial e virtual. Mas somente Cuiabá informou que foram utilizados equipamentos de vídeo com visão de 360°, de alta resolução em todas as audiências de custódia virtuais.
Além de descaracterizar sua função, que é estar à frente do/a juiz/a, a virtualização é alvo de questionamentos por ser impossível garantir que a pessoa esteja em espaço reservado e possa falar sobre o momento de sua prisão livre, por exemplo, de coações por algum agente de segurança, dificultando a verificação de tortura ou maus-tratos. Por isso, outro motivo de preocupação é o PL 321/23. Ele altera o CPP para permitir a realização de audiências de custódia por videoconferência.
As prisões são frequentemente marcadas por perfilamento racial, resultado de uma política de segurança pública focada no uso massivo de abordagens policiais. As audiências de custódia são a primeira barreira para impedir abusos e que eles resultem em prisões arbitrárias.
Trata-se de direito elementar. Qualquer cidadão perceberá sua importância, caso venha a ser envolvido numa situação criminal, da qual nenhum de nós está livre. Defender seu fim ou a sua virtualização demonstra uma irresponsabilidade com uma política criminal e de segurança pública séria e com um processo justo. Nada substitui o olho no olho tão necessário para humanizar a prestação jurisdicional: se a Justiça é feita por homens, que sejam de carne e osso.
Marina Dias
Diretora-executiva do IDDD e do conselho político do IDPN.
Guilherme Carnelós
Presidente do IDDD.
Vivian Peres
Coordenadora de programas do IDDD.