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Entre a paixão e a Justiça: A ética na Justiça Desportiva

A Justiça Desportiva deve equilibrar paixão e imparcialidade, garantindo julgamentos justos para que o futebol siga sendo um espetáculo legítimo e ético.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Atualizado às 11:42

No Brasil, o futebol ultrapassa a simples condição de modalidade esportiva. Ele se configura como um fenômeno cultural, capaz de mobilizar multidões e influenciar o humor coletivo da nação. É uma linguagem comum que transcende barreiras sociais, culturais e econômicas.

Embora, em sua origem, o futebol tenha sido um esporte elitista em muitos países, no Brasil ele rapidamente se popularizou, se espalhando por todas as classes sociais, tornando-se um fenômeno democrático.

Desde a infância, o futebol está presente na vida dos brasileiros - nas ruas, nas escolas, nas conversas do dia a dia e até nas relações familiares. Embora diversos aspectos da vida de um indivíduo possam mudar, como troca de residência, profissão ou cônjuge, a devoção ao clube de sua preferência permanece inabalável.

Essa paixão já foi imortalizada por diversos poetas, tais como Nelson Rodrigues, que cunhou a seguinte frase: "O Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada". Foram com essas simples palavras, mas de grande peso, que o poeta, de alguma forma, tentou mensurar o imensurável: a importância de um clássico.

Embora inspiradora, essa paixão pode representar um fator significativo de pressão para aqueles que atuam nos bastidores do esporte, especialmente para os auditores do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, que detêm a responsabilidade de deliberar sobre casos capazes de impactar diretamente o curso das competições e o destino dos clubes.

Dentro desse universo, a ética e a imparcialidade tornam-se imperativos, exigindo que os julgadores mantenham um distanciamento entre a paixão pelo esporte e a isenção necessária para julgar com justiça.

A história nos ensina que a imparcialidade não se resume apenas à ausência de tendências pessoais, mas também à percepção dessa imparcialidade. A expressão "A mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta", atribuída a Caio Júlio César, um dos mais importantes líderes da Roma Antiga, ilustra essa premissa.

O contexto dessa frase remonta a uma situação envolvendo sua esposa, Pompeia. Em 62 a.C., durante a celebração do festival religioso de Bona Dea, ao qual apenas mulheres podiam assistir, um homem chamado Públio Clódio Pulcro disfarçou-se de mulher e infiltrou-se na residência de César, onde o festival estava sendo realizado. O objetivo de Clódio era, supostamente, encontrar-se com Pompeia, com quem ele poderia estar tendo um caso amoroso. Clódio foi descoberto e o escândalo irrompeu.

Embora Pompeia não houvesse provas de que Pompeia tivesse cometido qualquer ato inapropriado, César decidiu divorciar-se dela, afirmando:  "Minha esposa não deve estar nem sob suspeita". Com isso, ele enfatizava a importância não apenas da integridade real, mas também da percepção de integridade, especialmente para figuras públicas cujas reputações deveriam estar acima de qualquer suspeita.

Esta frase tem sido usada ao longo dos séculos para demonstrar a relevância da percepção de integridade e ética, sobretudo em posições de liderança e responsabilidade.

No contexto da Justiça Desportiva, a imparcialidade dos julgadores não se limita apenas à sua conduta interna, mas deve ser percebida de maneira incontestável pela sociedade, garantindo a credibilidade das decisões proferidas pelos tribunais desportivos.

O Código de Ética e Disciplina dos Auditores da Justiça Desportiva, instituído em 2014, estabelece princípios fundamentais para a atuação dos auditores, entre eles a independência, a imparcialidade e a discrição. O art. 7º, inciso III, determina que o auditor deve "evitar manifestações exageradas e extravagantes de suas preferências como torcedor". Isso demonstra que não há impedimento para que um auditor tenha um clube de coração, mas há, sim, a obrigatoriedade de comportar-se com comedimento, reforçando que a idoneidade deve ser evidenciada não só na atuação processual, mas também na conduta pública.

Com frequência, questiona-se de que maneira essa paixão pode influenciar as decisões dos auditores. É uma questão relevante, mas é importante destacar o compromisso ético dos atores da Justiça Desportiva que sobrepõe-se a qualquer envolvimento emocional com o futebol, garantindo julgamentos imparciais e justos.

A imparcialidade é a pedra angular da Justiça Desportiva. Sem ela, não há justiça. O art. 18 do CBJD - Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê situações em que os auditores devem se declarar impedidos de atuar, incluindo casos em que tenham se manifestado publicamente sobre processos pendentes. Essa previsão tem o objetivo de garantir que as decisões sejam tomadas exclusivamente com base nos fatos e na legislação aplicável, sem influências externas ou preferências pessoais.

O respeito ao devido processo legal também se estende à forma como os casos são tratados na mídia. É comum que auditores sejam questionados sobre lances polêmicos ou casos envolvendo grandes clubes e celebridades do futebol. Contudo, a ética exige que tais questões sejam resolvidas dentro dos tribunais desportivos, e não sob os holofotes da imprensa, prevenindo influências externas que possam comprometer a lisura dos julgamentos.

Além disso, a ética também exige dos atores da Justiça Desportiva respeito ao jogo. As decisões devem preservar a integridade do futebol, protegendo o esporte de práticas antidesportivas e assegurando que os resultados sejam conquistados dentro de campo.

Assim como o árbitro em campo deve apitar com neutralidade, o auditor deve julgar com rigor técnico e ética. Tanto o árbitro quanto os auditores têm o dever de garantir que o espetáculo do futebol aconteça de forma justa, honrando a essência do esporte.

Embora a paixão pelo futebol possa ser um incentivo ao engajamento e à dedicação dos auditores da Justiça Desportiva, é importante que ela não comprometa a objetividade necessária ao exercício de suas funções. Esse sentimento deve ser transformado em zelo pelo cumprimento das normas e pela justiça, colocando o bem coletivo do futebol acima de qualquer interesse individual ou emocional.

Nas palavras de Nelson Rodrigues, "Das coisas menos importantes, o futebol é a mais importante". E justamente por sua importância é que devemos garantir que ele seja jogado e julgado com ética, respeitando a paixão dos torcedores e honrando a essência do esporte.

O compromisso dos atores da Justiça Desportiva é garantir que o esporte continue sendo um espaço de competição justa, em que as regras sejam respeitadas. Assim, o futebol continuará sendo a paixão de milhares de brasileiros, mantido sob os cuidados de quem o respeita acima de tudo.

Bárbara Maués Freire

Bárbara Maués Freire

Advogada. Pós-graduada em direito e processo do trabalho pela PUC-RS. Procuradora de Justiça Desportiva do STJD do Futebol. Presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/AC.

Rodrigo Aiache Cordeiro

Rodrigo Aiache Cordeiro

Advogado, possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Acre, especialização em Direito Processual Civil pela PUC/SP e mestrado em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Escreveu os livros "Poder Econômico e Livre Concorrência: uma análise da concorrência na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988" e "Princípios Constitucionais Tributários." Atualmente ocupa o cargo de Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (Seccional Acre).

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