O uso de celular em escolas: Entre nomofobia e neurodano
A proibição de celulares no ensino básico e a proteção ao consumidor hipervulnerável.
terça-feira, 25 de fevereiro de 2025
Atualizado às 13:44
Da essencialidade à ansiedade. O uso de celular em escolas: Entre nomofobia, neurodano e proteção ao consumidor hipervulnerável
Passou a viger no país, em 14 de janeiro deste ano, a lei 15.100 que dispõe sobre a "utilização, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais nos estabelecimentos públicos e privados de ensino da educação básica". Referido estatuto normativo, em parte, vai ao encontro de consolidada doutrina consumerista interna que há tempos se ocupa na promoção de crianças e adolescentes quanto ao espaço digital.1
Essa disposição provoca à guisa de perplexidade nos investigadores científicos, assim como no plano da equidade intergeracional, a observação ao menos curiosa de que as crianças que brincavam nas ruas no século passado foram substituídas por 'nômades digitais mirins', para além da noção da trabalhabilidade.2
A iniciativa legislativa brasileira se soma à experiência internacional, considerando que França, Holanda, Grécia, Dinamarca, Finlândia, Itália, Espanha e Austrália também têm leis semelhantes. Num arremate global, vinte e cinco por cento dos países no mundo, segundo a Unesco3, atualmente apresentam proposições neste aspecto.
No caso da Austrália a restrição ao uso de celular é mais acentuada: para os menores de dezesseis anos a utilização de 'devices' é quase total, não apenas em ambiente escolar, cabendo às 'big techs' (TikTok, Facebook, Instagram, Reddit, X e Snapchat, à exceção de Whatsapp e Youtube) não aceitarem a conexão solicitada por adolescentes até essa faixa etária, inclusive com previsão de sérias sanções. Vale o destaque que para aprovação da lei, muito embora com dissabores por parte do mercado digital, o parlamento australiano contou com expresso e prévio apoio popular mediante debate público.
Cabe o registro de que no Brasil 93% da população etária compreendida entre 9 e 17 anos é usuária da Internet, sendo que o eletrônico mais utilizado por essa mesma faixa é o telefone celular com significativo escore de 98%.4
O relatório publicado pela Unesco em relação ao uso de tecnologia nas escolas representa ponto de partida ideal para compreensão destas legislações restritivas. São seis mensagens iniciais que apontam conclusões relevantes: 1 - são poucas as evidências de valor agregado da tecnologia no campo da educação; 2 - a tecnologia pode salvar pessoas, mas também excluí-las, isso porque muito embora durante a pandemia o ensino online tenha evitado o colapso da educação, a ausência de conectividade adequada é sinônimo de exclusão; 3 - alguns tipos de aprendizado podem ser melhorados pela tecnologia e suas arquiteturas que, entretanto, são produtos do mercado e não do Estado, ao passo que estudos desenvolvidos pelo 'PISA - Programme for International Student Assessment' indicam que a simples proximidade de um celular é capaz de distrair o estudante e provocar impacto negativo na aprendizagem; 4 - o ritmo acelerado das mudanças digitais é exigente de capacitação constante, inclusive segurança eletrônica aos professores e alunos; 5 - o conteúdo online sempre dinâmico ganha larga escalabilidade, contudo não há regulação suficiente para controle de qualidade e diversidade; 6 - paga-se caro por tecnologias para suprir lacunas institucionais da educação, sem, contudo, levar em consideração os custos futuros, com orçamento público, com direitos e privacidades das crianças e com a sustentabilidade do planeta pelo lixo eletrônico, o que poderia ser resolvido aumentando a vida útil dos dispositivos.5
Com efeito, o advento da lei 15.100/21 soma à lógica transversal de outras leis promocionais, na medida em que deriva de observações emanadas pelas Nações Unidas, voltada à proteção da criança e do adolescente, propondo de modo direto o equilíbrio entre o 'acesso ao conhecimento' e 'o poder tecnológico', de forma indireta o necessário debate entre educação e mercado, e, ainda, influenciando as demais legislações.6
Característica, entretanto, essencial é inserção de marco normativo destacável para o reconhecimento de que excessos do mundo digital podem ser causadores de danos à saúde de hipervulneráveis (crianças e adolescentes). Enfim, referida lei pode ser fragmentada em quatro critérios sequenciais: teleológico; vedação; permissão; e tratamento.
O critério teleológico, ou seja, a finalidade da lei (ratio legis) descrito no artigo primeiro, indica que os escopos normativos se consubstanciam em dispor sobre a utilização de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais, por estudantes, em estabelecimentos público ou privado de ensino básico, bem como salvaguardar a 'saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes'. Portanto, trata-se de legislação que agrega ao microssistema de proteção e promoção da criança e juventude, reforçando não apenas a legalidade constitucional em capítulo próprio da família (CF, art. 227), mas, sobretudo, os direitos básicos (fundamentais) relativos à vida e saúde estabelecidos no art. 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente.
O critério vedação, pelo modal proibir, resta consubstanciado na restrição de uso de aparelhos eletrônicos no ensino básico (aquele que compreende as etapas da educação infantil, ensino fundamental até o ensino médio), em sala de aula, recreios e intervalos 'pelos estudantes', mediante fiscalização e acompanhamento tanto das 'redes de ensino' (complexo de instituições mantidas pela mesma fonte financeira, pública ou privada), como das 'escolas' (instituição considerada isoladamente). Portanto, são dois destinatários da norma: os estudantes (através de deveres de abstenção), como as instituições (com deveres de vigilância, supervisionamento e proteção).
Convém ressaltar nesse prisma que a lei 15.100/25 optou em não transcrever quaisquer sanções pelo descumprimento dos mencionados deveres. Para as crianças e adolescentes, a ausência de 'sanções' faz sentido levando-se em consideração não apenas o aspecto etário que remete à incapacidade e ausência de discernimento, como ainda a não incorporação da conduta vedada como ato infracional.7 Igualmente para as redes de ensino e escolas não tipificou precisamente infração e sanção. Ao que parece, é hipótese das chamadas 'normas imperfeitas', porquanto não prevêem respectiva sanção, muito embora sejam completas e independentes.8 Contudo, isso não afasta eventual e futura regulamentação que, inclusive, é mencionada no corpo da legislação.
O critério da permissão encontra-se na excepcionalidade da utilização de aparelhos eletrônicos para atender situações que sejam essenciais à atividade educacional, às circunstâncias de estado de perigo, estado de necessidade ou no caso de força maior e ainda quando necessário para garantia de acessibilidade, inclusão, condições de saúde dos estudantes e direitos fundamentais. Evidente que exceções à regra geral são imprescindíveis quando se trata de regras sancionatórias (mesmo que imperfeitas), considerando o cenário do caso concreto. Contudo, algumas observações merecem ser verificadas.
No prisma tecnicamente jurídico, a permissibilidade poderia levar à noção de 'tautologia', embaralhando gênero com espécies, isto porque constando exceção à restrição na hipótese de direitos fundamentais (gênero) desnecessária seria ressalvas no que respeitam inclusão, saúde, acessibilidade (espécies) dos estudantes. Entretanto, essa estratégia não é novidade, bastando considerar o marco civil da internet também reúne direitos humanos e múltiplas espécies a eles relacionados (como diversidade e pluralidade) e da mesma forma a LGPG atuando entre categorias genéricas (direitos humanos) e variedades (privacidade e livre desenvolvimento da personalidade). Portanto, o que deve ser visto, na realidade, é a ênfase em albergar certos direitos e interesses.
Quanto ao estado de necessidade (CC, art. 188) - como negação ao ilícito - e a força maior (CC, art. 393) - como excludente de causalidade - considerando a forte ligação e composição aos deveres, são necessários na eventual aplicabilidade da responsabilidade civil, o que poderá ser comum quando do desrespeito infundado da restrição. Nos parece que o equívoco do legislador se deu apenas na excepcionalidade através do instituto do 'estado de perigo', considerado em nosso sistema 'defeito do negócio jurídico' (CC, art. 156), tendente à anulação de obrigação excessivamente onerosa.9
O critério tratamento significativamente é o mais importante, porque demonstra claramente que a legislação em comento aliou-se aos princípios da 'proteção integral da criança e do adolescente' (art. 1º) e do 'melhor interesse' (art. 6º).10 A incorporação de tais princípios inseridos no Estatuto da Criança e do Adolescente são desdobramentos hermenêuticos e normativos do art. 227 da CF/88, muito embora o decreto 99.710/90 internalize a Convenção Internacional dos Direitos da Criança com referência específica neste ponto.11
Destarte, para além da restrição, o tratamento torna-se 'dever de cuidado' e 'dever de proteção' das redes de ensino e escolas para crianças e adolescentes. Ao tempo que garante o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas em formação, ainda cumpre afastar o sofrimento psíquico velando pela saúde mental. E observe que o tratamento não é apenas curativo, mas também preventivo, tendente a enfrentar o uso imoderado de telas e 'nomofobia'.
O termo 'nomofobia' foi cunhado pela primeira vez em 2008, e desde então tem sido objeto de estudo e preocupação crescente. Originado da expressão 'no mobile phobia', seu significado evoluiu para abranger não apenas o medo de ficar sem celular, mas também a ansiedade provocada pela desconexão virtual. A evolução do termo reflete a rápida transformação do uso da tecnologia na sociedade contemporânea.
Não parece equivocada a abordagem legal. Jonathan Haidt em interessante 'best seller', enfrenta o tema com propriedade indicando que as "as redes sociais, por exemplo, causavam maior dano em meninas, e empresas de jogos on-line e sites de pornografia afetavam com mais contundência meninos", concluindo que o celular prejudica o desenvolvimento infantil, mediante privação de sono, privação social, fragmentação da atenção e vício.12
De outro lado, a 'nomofobia' não discrimina em relação à idade, afetando tanto crianças quanto adultos. Em diferentes grupos etários, a prevalência da nomofobia varia, com adolescentes e jovens adultos destacando-se como os mais vulneráveis, agora hipervulneráveis. O impacto da nomofobia inclui dificuldades de concentração, ansiedade, insônia e comprometimento da saúde mental, exigindo atenção e intervenção em toda a sociedade. Não à toa, que a própria lei 15.100/25, estende aos funcionários o tratamento ao uso imoderado de telas e nomofobia.
Na literatura especializada é possível verificar outras abordagens relevante como a ansiedade digital (digital anxiety) é fenômeno crescente, considerando a constante conexão e dependência desses dispositivos que podem causar estado de ansiedade crônica. A exposição contínua a notícias, mensagens e notificações pode aumentar a preocupação e a sensação de estar sempre 'ligado'. Um estado de 'hiperconexão virtual' frente ao estado de 'hiperabandono pessoal e real', concretizando o que, pela atipicidade do art. 927 do CC em diálogo das fontes com o art. 6º, inciso I do CDC permitem a concreção do chamado 'neurodano', ou seja, a lesão a interesse juridicamente tutelável proteção à saúde mental, assim como à 'vida em relação', como espécie do gênero danos à saúde ou dano biológico. 13
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1 Valem como destaque: LIMA, Cintia Rosa Pereira de; TEIXEIRA, Vitória Bittar. Publicidade e proteção da infância: análise da prática do unboxing em vídeos publicados por youtubers mirins em face do ordenamento jurídico brasileiro. RDC. v. 136. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 165-199. PASQUALOTTO, Adalberto. Publicidade para crianças: liberar, proibir ou regular? RDC. v. 116. 2018. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p. 69 - 93. MARTINS, Fernando Rodrigues; FERREIRA, Keila Pacheco. Da Idade Média à idade mídia: a publicidade persuasiva digital na virada linguística do direito. In: PASQUALOTTO, Adalberto (Org.). Publicidade e proteção da infância. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. v. 2.
2 Gussekloo, André; Jacobs, Esther. Digital nomads: how to live, work and play around the world. Location-Independent Publishers. 2016.
3 UNESCO. Resumo do Relatório de Monitoramento Global da Educação 2023: Tecnologia na educação: Uma ferramenta a serviço de quem? Paris, UNESCO, 2023. Registra: "Quase um quarto dos países proibiram os smartphones nas escolas. Os dados das crianças estão sendo expostos e, no entanto, somente 14% dos países garantem por lei a privacidade dos dados na educação. Uma análise descobriu que 89% dos 163 produtos de tecnologia recomendados durante a pandemia tinham a capacidade de coletar dados de crianças. Ademais, 39 dos 42 governos que ofereceram educação online durante a pandemia acomodavam usos que colocavam em risco ou infringiam os direitos das crianças".
4 Disponível em: www.cetic.br/media/analises/tic_kids_online_brasil_2024_principais_resultados.pdf (Acesso em: 24.02.2025).
5 UNESCO. Resumo do Relatório de Monitoramento Global da Educação 2023: Tecnologia na educação: Uma ferramenta a serviço de quem? Paris, UNESCO, 2023.
6 Morin, Edgar. DVD com um intérprete. Documentário. Coleção Grandes Educadores. Apresentação de Edgard de Assis Carvalho. São Paulo: Paulus, 2006.Explica: "É o que chamo de pensamento complexo. Se não há um pensamento complexo, não pode haver transversalidade".
7 BRASIL. Lei 8.069/90. Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.
8 MARQUES, Fabiano Lepre; FABRIZ, Daury César. Breves considerações sobre deveres com sanção e deveres sem sanção no direito brasileiro. Derecho y Cambio Social. n. 31. 2013. Refletem: "Tendo-se que o objeto das normas é a conduta das pessoas, quando há a determinação em uma norma de que para o cometimento de uma ação seja aplicada uma sanção, diz-se que se está diante de uma norma perfeita porque completa; quando inexiste tal determinação, diz-se que se está ante uma norma imperfeita porque incompleta. As sanções se encontram posicionadas, assim, dentro da estrutura lógica da norma como a consequência da inobservância de uma conduta".
9 MARTINS, Rodrigues Martins. O estado de perigo no novo código civil. 2º ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 162....
10 Tepedino, Gustavo. A disciplina da filiação na perspectiva civil-constitucional. In: Pereira, Rodrigo da Cunha (coord.). Direito de família contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
11 BRASIL. Decreto 99.710/90. Artigo terceiro: Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o maior interesse da criança
12 HAIDT, Jonathan. A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais. Trad. Lígia Azevedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2024, p. 18.
13 RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 157.