Teoria da asserção e legitimidade ativa: Perspectiva processual e STJ
O artigo examina a Teoria da Asserção e sua relação com a legitimidade ativa e o acesso à justiça, defendendo interpretação garantista para evitar a extinção prematura de ações sem análise do mérito.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025
Atualizado às 13:17
1. Introdução
O presente artigo tem como objetivo analisar a Teoria da Asserção e sua aplicação na aferição da legitimidade ativa em demandas judiciais, especialmente nos casos em que um terceiro é o beneficiário direto de um contrato firmado por outrem.
O tema se mostra relevante diante da existência de decisões judiciais que, desconsiderando essa teoria, extinguem prematuramente ações sob o fundamento de ilegitimidade ativa, impedindo o exame do mérito da demanda.
A análise aqui realizada parte de um caso concreto patrocinado pelo próprio autor deste artigo, no qual um REsp foi interposto junto ao STJ para discutir a legitimidade ativa de um beneficiário direto de contrato de honorários advocatícios.
No caso em questão, a parte autora, embora fosse a destinatária final dos serviços contratados, teve sua legitimidade indevidamente afastada pelo Tribunal de origem, resultando na extinção do feito sem resolução de mérito.
Tal situação reflete uma problemática recorrente no Judiciário, exigindo uma reflexão mais ampla sobre a correta aplicação da Teoria da Asserção e da estipulação em favor de terceiro.
Nesse contexto, o artigo também discute a estipulação em favor de terceiro, prevista no art. 436 do CC/02, e sua influência na ampliação da legitimidade processual. Além disso, aborda a necessidade de fundamentação adequada das decisões judiciais, conforme o art. 489, §1º, IV, do CPC, e o papel do STJ a uniformização da jurisprudência.
Para compreender melhor essa discussão, iniciaremos com a análise da legitimidade ativa processual, explorando suas bases normativas e doutrinárias.
2. A legitimação ativa processual e sua interpretação no CPC
A legitimidade ativa é uma das condições da ação, sendo essencial para que o autor possa demandar em juízo a tutela de um direito.
No Brasil, o art. 17 do CPC estabelece que "para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade", mas sem fornecer uma definição precisa do conceito, o que abre margem para interpretações restritivas.
A doutrina clássica do Direito Processual, incluindo Pontes de Miranda, já alertava para a necessidade de uma interpretação mais ampla da legitimidade, considerando-a não apenas sob um aspecto formal, mas também material, a fim de garantir que aqueles que tenham interesse jurídico legítimo possam acessar o Judiciário.
Na visão de Giuseppe Chiovenda, um dos pilares do Direito Processual moderno, enfatiza que o processo deve ser um instrumento para a tutela de direitos materiais, garantindo que aquele que se afirmar titular de um direito possa obter a prestação jurisdicional de maneira efetiva. Seguindo essa linha, Piero Calamandrei reforça que a jurisdição não pode ser restringida por barreiras processuais formais que impeçam o exame do direito material, pois isso significaria uma negação do próprio conceito de justiça.
Por sua vez, Enrico Tullio Liebman, responsável pela consolidação da moderna teoria do processo no Brasil, introduziu a ideia de que a legitimidade ativa deve ser interpretada não apenas sob um critério formalista, mas também à luz dos princípios do acesso à justiça e da efetividade processual. Seu pensamento influenciou diretamente a estruturação do CPC/15, que reforça a necessidade de garantir um processo substancialmente justo, em que formalidades excessivas não impeçam a análise do mérito.
Francesco Carnelutti, outro grande nome do Direito Processual, sustentava que o direito de ação não pode ser restringido por uma interpretação excessivamente técnica das condições da ação. Para ele, o processo deve estar a serviço da justiça e não ser um obstáculo ao reconhecimento dos direitos materiais. Esse pensamento reforça a necessidade de uma abordagem flexível e substancialista da legitimidade ativa, garantindo que aqueles que possuem um interesse jurídico legítimo não sejam impedidos de acessar o Judiciário.
O art. 18 do CPC, por sua vez, estabelece que "ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico", mas tal norma deve ser interpretada à luz do direito material, evitando que formalismos processuais restrinjam indevidamente o acesso ao Judiciário.
A interpretação mais ampla da legitimidade ativa tem sido defendida pelo STJ, que reconhece que o beneficiário direto de um contrato possui legitimidade para exigir sua correta execução ou reparação por prejuízos causados:
"O beneficiário de contrato de prestação de serviço possui legitimidade para discutir eventuais irregularidades na execução, mesmo que não seja parte formal no ajuste, desde que demonstre prejuízo direto." (REsp 1.510.697/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 15/6/15, DJe 22/6/15).
Dessa forma, a correta compreensão da legitimidade ativa processual conduz diretamente ao entendimento sobre a Teoria da Asserção, que é fundamental para a correta aferição das condições da ação e sua aplicação pelos magistrados
O acesso à justiça e sua relação com a Teoria da Asserção
O acesso à justiça é um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito e tem sido amplamente debatido na doutrina jurídica. Entre os principais estudiosos do tema, destaca-se Mauro Cappelletti, que, em sua obra clássica Acesso à Justiça, desenvolveu a ideia de que garantir o direito de ação não é suficiente para um sistema judicial justo; é necessário que o acesso à jurisdição seja efetivo e real.
Cappelletti identificou três ondas reformistas voltadas para a ampliação do acesso à justiça:
- A primeira onda corresponde à criação de sistemas de assistência judiciária gratuita, visando reduzir as barreiras financeiras que impedem os menos favorecidos de buscar seus direitos.
- A segunda onda diz respeito à facilitação da litigância coletiva, permitindo que grupos sociais possam ajuizar demandas sem que cada indivíduo tenha que suportar os custos processuais isoladamente.
- A terceira onda, que se liga diretamente ao presente estudo, enfatiza a necessidade de reformar e simplificar o processo judicial, eliminando obstáculos formais que inviabilizam o julgamento do mérito.
A Teoria da Asserção, ao estabelecer que a análise das condições da ação deve ocorrer com base nas alegações da petição inicial, é um dos mecanismos que concretiza essa terceira onda reformista. Isso porque ela impede que demandas sejam extintas prematuramente sob o pretexto de ilegitimidade ativa, sem que se permita a devida instrução e exame do mérito.
Ao garantir que a legitimidade ativa seja aferida com base no que se alega na inicial e não em uma análise exauriente de provas antes da fase instrutória, a Teoria da Asserção impede que requisitos formais excessivos comprometam o direito do jurisdicionado de obter uma decisão fundamentada sobre seu direito material. Assim, ela se insere na lógica de Cappelletti de promover um acesso mais amplo e equitativo à jurisdição.
Além disso, um dos pontos centrais da doutrina de Cappelletti é a necessidade de evitar que o processo se torne um instrumento de exclusão social. Para ele, um Judiciário que se limita a questões formais em detrimento da análise substancial das pretensões das partes age em desconformidade com os princípios democráticos. Dessa forma, a interpretação restritiva da legitimidade ativa, ao impedir que beneficiários diretos de contratos busquem a tutela jurisdicional, representa uma violação aos fundamentos essenciais do acesso à justiça.
A proteção do acesso à justiça, como preconizado por Mauro Cappelletti, está diretamente relacionada à correta aplicação da Teoria da Asserção pelo magistrado, logo, a Teoria da Asserção, ao impedir que barreiras processuais formais impeçam o exame do mérito das ações, desempenha um papel essencial para garantir que a jurisdição esteja ao alcance de todos aqueles que dela necessitam.
No próximo capítulo, abordaremos como essa teoria deve ser interpretada e utilizada pelos juízes para evitar extinções prematuras e garantir a efetividade do direito de ação
4. O surgimento e a aplicação da Teoria da Asserção pelo magistrado
A Teoria da Asserção tem suas raízes no Direito alemão, especialmente a partir dos estudos desenvolvidos por Oskar von Bülow no século XIX sobre as condições da ação e os pressupostos processuais. O conceito foi posteriormente incorporado por outros sistemas jurídicos de tradição romano-germânica, chegando ao Brasil por influência da doutrina italiana, particularmente por Enrico Tullio Liebman.
No Brasil, a Teoria da Asserção começou a ganhar corpo no final do século XX, com o desenvolvimento de uma visão mais garantista do processo civil. A partir do CPC de 2015, essa teoria se consolidou na jurisprudência, sendo amplamente utilizada pelo STJ para evitar extinções prematuras de ações judiciais, garantindo a análise das condições da ação com base exclusivamente na petição inicial.
Para aplicar corretamente a Teoria da Asserção, o magistrado deve observar que a aferição da legitimidade ativa e do interesse processual deve ser feita com base nas alegações constantes na petição inicial, sem que seja necessária uma investigação aprofundada sobre o mérito da demanda. Isso significa que se as alegações do autor indicarem plausibilidade de sua relação jurídica com o direito postulado, o processo deve prosseguir para a fase instrutória.
O STJ já consolidou esse entendimento:
"A aferição da legitimidade ad causam deve ser feita com base na Teoria da Asserção, considerando-se as afirmações feitas na petição inicial, e não mediante análise exauriente do mérito." (AgInt nos EDcl no REsp 1.760.178/RS, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 30/03/2020, DJe 01/04/2020).
Dessa forma, o juiz deve interpretar a Teoria da Asserção como um instrumento para evitar a supressão prematura de demandas legítimas, garantindo que o exame da relação processual seja feito à luz das alegações iniciais e sem exigências probatórias antecipadas.
Isso fortalece o princípio da primazia da decisão de mérito e evita distorções que levem à negativa de jurisdição.
A correta aplicação da Teoria da Asserção pelos magistrados tem impacto direto na análise da estipulação em favor de terceiro, que constitui um importante mecanismo para garantir a eficácia dos contratos e a proteção dos beneficiários diretos.
5. A estipulação em favor de terceiro e a evolução da teoria contratual
A estipulação em favor de terceiro está prevista no art. 436 do CC/02 permitindo que um terceiro, ainda que não tenha sido signatário do contrato, possa exigir o cumprimento da obrigação estipulada em seu favor.
A evolução do Direito Contratual, sobretudo no CC/02, passou a adotar uma visão mais humanizada dos contratos, observando a necessidade de proteção da boa-fé objetiva (art. 422 do CC/02) e da função social do contrato. O STJ tem reconhecido que a interpretação contratual deve sempre privilegiar o interesse do beneficiário direto do contrato, evitando a exclusão indevida de sua tutela jurisdicional.
O magistrado, ao interpretar a estipulação em favor de terceiro, deve considerar que essa modalidade contratual não é apenas uma concessão formal, mas sim um mecanismo que protege os interesses legítimos do beneficiário, especialmente quando há elementos de boa-fé e função social envolvidos.
Assim, a análise judicial deve ser teleológica e principiológica, garantindo que a cláusula contratual cumpra sua finalidade prática e não seja esvaziada por interpretações excessivamente formais.
O STJ já se manifestou sobre o tema, consolidando o entendimento de que o beneficiário de um contrato tem legitimidade ativa para questionar sua execução:
"O beneficiário de contrato de prestação de serviço possui legitimidade para discutir eventuais irregularidades na execução, mesmo que não seja parte formal no ajuste, desde que demonstre prejuízo direto." (REsp 1.510.697/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 15/06/2015, DJe 22/06/2015).
Dessa forma, a estipulação em favor de terceiro deve ser interpretada de maneira ampla, garantindo que o beneficiário possa exercer seus direitos materiais e processuais sem entraves indevidos.
O magistrado deve considerar que o contrato não pode ser analisado isoladamente, mas sim dentro do contexto da relação jurídica estabelecida entre as partes e o terceiro beneficiado.
Diante da importância da estipulação em favor de terceiro para a garantia da legitimidade ativa dos beneficiários diretos, é essencial que as decisões judiciais sejam devidamente fundamentadas. Nesse sentido, o art. 489 do CPC desempenha um papel crucial ao exigir a fundamentação adequada das decisões, impedindo julgamentos baseados em argumentos genéricos ou evasivos.
6. A fundamentação das decisões judiciais e o artigo 489 do CPC
O art. 489 do CPC estabelece parâmetros essenciais para a fundamentação das decisões judiciais, garantindo que os magistrados enfrentem adequadamente os argumentos das partes e não simplesmente reproduzam fundamentações genéricas ou evasivas.
O §1º do art. 489 do CPC determina que não se considera fundamentada a decisão judicial que:
- Se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo sem explicar sua relação com a causa;
- Empregar conceitos jurídicos indeterminados sem explicar sua aplicação ao caso concreto;
- Não enfrentar todos os argumentos capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
- Se limitar a invocar precedentes sem demonstrar sua adequação ao caso sob análise.
A correta aplicação desse dispositivo tem sido reforçada pelo STJ, que exige que as decisões judiciais sejam claras e fundamentadas, garantindo o respeito ao devido processo legal e ao contraditório.
O descumprimento dessas exigências pode levar à anulação de decisões por ausência de fundamentação adequada.
O magistrado, ao aplicar o art. 489 do CPC, deve adotar uma abordagem que respeite os princípios constitucionais do devido processo legal e da motivação das decisões, conforme previsto no art. 93, IX, da CF/88. Isso significa que toda decisão deve ser suficientemente motivada, permitindo às partes compreenderem os fundamentos utilizados e, se necessário, interpor os recursos cabíveis.
No contexto da Teoria da Asserção e da legitimidade ativa, o art. 489 do CPC é um elemento essencial para evitar que decisões sejam proferidas sem o devido enfrentamento dos argumentos das partes.
Muitas vezes, a extinção prematura de uma ação ocorre sem uma devida fundamentação, desconsiderando elementos fundamentais como a estipulação em favor de terceiro e a interpretação ampla da legitimidade processual.
Portanto, a aplicação rigorosa do art. 489 do CPC se revela indispensável para assegurar a correta prestação jurisdicional e evitar injustiças decorrentes de decisões mal fundamentadas.
A necessidade de decisões bem fundamentadas e alinhadas com os princípios do devido processo legal e da motivação judicial reforça a importância de uma abordagem garantista, que privilegie a análise do mérito e evite a extinção prematura das demandas. Com isso, consolidamos a discussão e apresentamos as conclusões deste estudo.
7. Conclusão
A correta aplicação da Teoria da Asserção, aliada à estipulação em favor de terceiro, é essencial para evitar que demandas sejam extintas prematuramente sem a devida análise do mérito.
O acesso à justiça, conforme desenvolvido por Mauro Cappelletti, exige que barreiras processuais excessivas não impeçam o exercício do direito de ação, sendo a Teoria da Asserção um instrumento fundamental para garantir que a jurisdição esteja acessível a todos que dela necessitam.
A jurisprudência do STJ tem reiterado que a legitimidade ativa deve ser analisada com base nas alegações iniciais, garantindo o direito ao acesso à Justiça e evitando decisões que inviabilizem o direito de ação de beneficiários diretos de contratos.
Dessa forma, há um alinhamento entre a interpretação ampla da Teoria da Asserção e os princípios fundamentais que sustentam a proteção jurisdicional.
Além disso, a interpretação da estipulação em favor de terceiro deve ser feita à luz dos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, de modo a assegurar que os direitos dos beneficiários diretos sejam respeitados e tutelados de maneira adequada. O formalismo exacerbado na análise da legitimidade ativa pode resultar em injustiças, impedindo a devida prestação jurisdicional e contrariando os objetivos do processo civil moderno.
Diante desse cenário, é imprescindível que os tribunais adotem uma abordagem interpretativa mais garantista, respeitando os fundamentos do CPC/15, que prioriza a primazia da decisão de mérito e a instrumentalidade do processo.
Ao aplicar esses conceitos, o Judiciário reafirma seu compromisso com a efetividade da prestação jurisdicional e a justiça material.
Por fim, a Teoria da Asserção não apenas protege o direito fundamental de ação, mas também reforça o compromisso do Judiciário com a primazia da decisão de mérito, impedindo que meros formalismos restrinjam indevidamente o acesso à Justiça
O STJ tem papel crucial na uniformização dessa interpretação, promovendo a efetividade do Direito Processual e garantindo a aplicação correta da Teoria da Asserção em consonância com o direito fundamental de acesso à Justiça. Assim, este estudo reforça a necessidade de aperfeiçoamento da interpretação das normas processuais, para que a exclusão indevida de partes legítimas seja evitada e a tutela jurisdicional se torne cada vez mais acessível e equitativa no sistema jurídico brasileiro