Honorários sucumbenciais em IDPJ: O agravamento do desequilíbrio
A fraude nas cotas de gênero e a aplicação de honorários em incidentes de desconsideração da personalidade jurídica revelam problemas no sistema jurídico, como a falta de provas claras e o risco de abusos, prejudicando a justiça e as mulheres.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
Atualizado às 10:55
I. Introdução - Qual a lição?
Ao escrevermos sobre a formação e dimensão subjetiva da coisa julgada formada em incidente de desconsideração da personalidade jurídica, adotamos um posicionamento minoritário e contrário à mais abalizada doutrina1.
Fazendo-o, taxamos de incongruente um sistema jurídico que fomente a fraude pela proteção institucional do fraudador. No âmbito da coisa julgada, entendemos que este incentivo à má-fé se dá pela limitação dos efeitos da decisão que afasta a autonomia patrimonial estabelecida entre empresa e sócio, permitindo que o devedor ofereça tantas defesas quanto forem seus credores.
Com o recente julgamento do REsp 2.072.206/SP (2023/0154241-7), o STJ sedimentou o status privilegiado do devedor ao garantir que o insucesso do incidente obriga o credor ao pagamento de honorários sucumbenciais em favor do patrono da parte desconsideranda.
Conquanto os fundamentos para o cabimento dos honorários sejam sólidos, sua aplicação apenas na hipótese de insucesso do incidente reforça um cenário prático que já incentivava o abuso da personalidade jurídica.
Neste artigo, apresentaremos de maneira simplificada dois aspectos do IDPJ que apontam para a necessidade de encararmos o instituto com novos olhos: i.) o standard por vezes insuperável imposto ao credor, impedido de obter as provas exigidas pela jurisprudência; e ii.) a inexistência de sanção direcionada ao responsável pelo abuso de direito justificador da superação da personalidade jurídica.
Em seu voto-vogal, a sempre brilhante ministra Nancy Andrighi destacou o "efeito pedagógico dos honorários de sucumbência em sede de IDPJ". Cabe, entretanto, o questionamento: se o exequente deve aprender a agir "de forma mais diligente, evitando instauração irresponsável de tais incidentes, em prejuízo à celeridade processual e à segurança jurídica", qual é a mensagem enviada para aquele que abusa da autonomia patrimonial de sua empresa para se eximir de suas obrigações?
II. - Cascos, zebras e a fraude
No fim da década de 40, Theodore Woodward, professor da Escola de Medicina da Universidade de Maryland, cunhou o famoso aforismo: "quando você ouvir cascos atrás de você, não espere ver uma zebra".
O professor alertava sobre os perigos da falácia da taxa-base quando se buscando um diagnóstico, ignorando-se a prevalência de determinada doença no grupo a que pertenceria o paciente. Quando o médico atende o 10º paciente que relata, naquele dia, febre e cansaço, deve considerar estar diante de uma gripe comum ou uma rara doença autoimune?
No campo do Direito Processual, a maneira que empregada a presunção da boa-fé acaba por prestigiar versões incongruentes com a explicação mais razoável para os fatos estabelecidos na lide, por vezes eliminando a própria viabilidade do remédio jurídico perseguido.
Tomemos como exemplo uma situação familiar a todo advogado: o pedido de penhora de ativos financeiros com resultado negativo em execução movida em face de pessoa jurídica em atividade.
Deve o julgador considerar que uma empresa possa atuar regularmente sem qualquer valor em caixa, com funcionários renunciando a salários, fornecedores mantendo o fluxo de insumos sem contraprestação e sócios sem receber pró-labore?
A questão foi, recentemente, enfrentada pelo TJ/SP:
"De fato, para que respondam pessoalmente por dívida da empresa, imprescindível se denota a produção de prova da prática por seus administradores de atos que tipifiquem o abuso da personalidade jurídica, não se prestando a simples presunção de que a sociedade empresarial devedora não tenha potencial financeiro para adimplir suas obrigações, nem mesmo a falta de declaração à Receita Federal, à desconsideração de sua personalidade jurídica e consequente autorização de inclusão dos seus representantes no polo passivo da relação processual.
Não se nega que sendo a executada empresa em atividade, não foram encontrados ativos financeiros ou bens em seu nome, mas essa circunstância, por si só, é insuficiente para configurar má-fé ou abuso da personalidade jurídica, pressupostos imprescindíveis ao deferimento da desconsideração da personalidade jurídica da empresa devedora." 2
Deixemos de lado, por ora, a dificuldade de se produzir prova de transferências bancárias entre empresa e sócio, ou entre empresas do mesmo grupo econômico. Em sua ementa, o acórdão aponta faltar "prova cabal da verificação do abuso da personalidade jurídica", a despeito de reconhecer a inexistência de ativos financeiros ou bens em nome de uma empresa "em atividade".
Nesse sentido, a prova exigida é aquela além de qualquer dúvida razoável, usualmente reservada à ciência penal. Na lição do professor Michele Taruffo3 encontramos um eco do posicionamento largamente adotado pela jurisprudência:
"Ainda que possam surgir problemas acerca da definição precisa e analítica desse standard - especialmente se se utilizam critérios quantitativos inadequados para a natureza do problema - uma coisa que parece indiscutível é a razão moral fundamental - antes mesmo que jurídica - que está na adoção do critério da "dúvida razoável; ou seja, a opção ética pela qual é preferível que muitos culpados sejam absolvidos ao perigo de se condenar um inocente."
Vemos a adoção deste mesmo princípio moral voltado à ideia de que é a excepcionalidade do instituto que garante a sobrevivência da figura da pessoa jurídica:
"A desconsideração da personalidade jurídica é medida extremamente grave, que somente pode ser adotada em situações excepcionalíssimas, em que fortes sejam os indícios de abuso da personalidade jurídica. Isso porque a ausência de separação do patrimônio da pessoa jurídica e de seus sócios levaria, fatalmente, à extinção das pessoas jurídicas, vez que ninguém se arriscaria a empreender e talvez perder tudo o que construiu."4
Aproximando-se ainda mais da processualística penal, há uma corrente na jurisprudência que exige prova concreta do dolo, da própria intenção de fraudar aquele credor individual5.
Resguardados pelo sigilo bancário, fiscal e de comunicação, como poderia o credor produzir prova cabal de confusão patrimonial ou desvio de finalidade?
É certo que, de tempos em tempos, o próprio devedor oferece a solução ao juntar, voluntariamente, extratos de sua conta corrente à inicial de seus embargos à execução:
"O único extrato bancário de José Aparecido (fls. 27/36 do incidente) prova que ele recebeu, entre 01/01/2023 e 31/03/2023, diversas transferências de Dominik (titular da Grano Cozinha), Luiza e Vinicius (sócios da PMR), inclusive transferências enviadas diretamente pela Grano Cozinha.
A fim de justificar tais transferências, foram acostadas supostas Propostas de serviços da Grano e da PMR (fls. 137/152) e recibos de pagamento emitidos por José Aparecido (fls. 212/222). Todavia, como bem apontou o agravante, a proposta comercial e os recibos são facilmente produzidos e manipulados, e é, de fato, deveras conveniente que se refiram justamente às transferências encontradas no referido extrato bancário. Não se ignora, ainda, que ambas as propostas de serviços são praticamente idênticas, e que a prestação do suposto serviço não foi demonstrada, pois a mera cópia do cardápio não prova que foi José Aparecido quem o produziu."6
É evidente que apenas estruturas de blindagem patrimonial pouco sofisticadas dão ensejo a deslizes tais. Ainda aquelas tentativas rudimentares feitas através da criação de empresas no mesmo ramo de atividade, instaladas no mesmo endereço da devedora principal, por familiares de seu sócio, por exemplo, são ignoradas por larga parcela da jurisprudência:
"É certo que referidas empresas atuam em ramo de atividade semelhante, são administradas por pessoas do mesmo núcleo familiar, bem como estão sediadas no mesmo endereço, contudo, referidas circunstâncias por si só não são capazes de demonstrarem os requisitos do art. 50 do Código Civil para deferimento da medida almejada pelo recorrente.
Isso porque não demonstrou o agravante de modo convincente a existência de indícios de dilapidação ou blindagem patrimonial com o fim de fraudar credores ou mesmo obrigações de uma empresa assumidas pela outra."7
Sem o auxílio do próprio fraudador, qual recurso caberá à parte para obter prova convincente de que uma empresa cumpre obrigações assumidas por outra? Ou se o sócio administrador utiliza as contas de sua companhia para pagar a mensalidade da escola de seus filhos?
Vejamos como o mesmo Tribunal recepcionou um pedido de apresentação de documentos capazes de demonstrar a movimentação financeira de pessoa jurídica inadimplente:
"Não parece razoável que, à mingua de elementos que apontem para ilicitudes da executada ou de seus sócios, busque-se a chancela judicial para violação do sigilo bancário e da privacidade de pessoas que sequer integram o processo.
Portanto, mesmo ante o histórico do caso dos autos, não se mostra pertinente a adoção das medidas indeferidas em primeiro grau, porquanto apartadas da noção de razoabilidade e equilíbrio que se deve ter na adoção de medidas executivas atípicas."8
Ou ainda:
"Ocorre que, no caso dos autos, o agravante busca a satisfação de crédito decorrente de relação contratual de natureza cível, que possui interesse exclusivamente privado, e não demonstrou a ilicitude dos atos praticados pelo agravado, a justificar a restrição de seus direitos e garantias fundamentais.
Ademais, o agravante aventa a possibilidade de haver confusão patrimonial nas contas da empresa, de modo que a disponibilização dos extratos seria relevante para fundamental eventual pedido de desconsideração da personalidade jurídica. Ocorre que a quebra de sigilo bancário não pode servir como meio de produção antecipada de prova para fins de desconsideração da personalidade jurídica, especialmente quando o fundamento para tal consiste em suposições decorrentes da dificuldade em localizar bens executáveis."9
Em outras palavras, ao credor que pretende demonstrar a confusão patrimonial é negado o único meio pelo qual poderia obter a prova "inequívoca" que lhe exige a jurisprudência.
Não basta a incongruência da completa falta de recursos de uma companhia em atividade ou a constituição de empresas familiares, no mesmo endereço, explorando o mesmo ramo. Exige-se prova cabal que só pode ser obtida através do descuido do fraudador.
Este é o cenário enfrentado por aquele que busca ver seu direito tutelado através do incidente de desconsideração da personalidade jurídica: protegido por um standard probatório semelhante àquele reservado à esfera criminal, o devedor pode contar também com o novo entendimento do STJ como elemento de dissuasão.
Ampliando nossa analogia inicial, o que se exige do credor é a prova de que os cascos que escuta em uma sala fechada a que não tem acesso, pertencem a uma zebra.
III. A (in)consequência da desconsideração da personalidade jurídica
Admitamos, agora, que tudo correu de maneira favorável ao exequente: o devedor trouxe prova de sua movimentação bancária demonstrando a confusão patrimonial, o incidente é julgado procedente e o sócio que abusou da personalidade jurídica de sua empresa chamado a satisfazer a obrigação.
Pergunto: Qual o prejuízo para o devedor?
Os colegas a quem propus essa indagação, invariavelmente, indicaram a obrigação de suportar a dívida de terceiro. Mas esse já era seu dever, elidido pelo abuso da personalidade jurídica de sua empresa.
O acórdão proferido pelo STJ torna essa conclusão ainda mais clara:
"Já em caso de deferimento do pedido de desconsideração (direta ou inversa), com o efetivo redirecionamento da demanda contra o sócio ou a pessoa jurídica, conforme o caso, o eventual sucumbimento destes somente poderá ser aferido ao final, a depender do juízo de procedência ou improcedência da pretensão contra eles direcionada."
Por acaso os honorários são fixados de maneira individual e independente em desfavor de cada executado ou permanecem vinculados ao limite de 20%, na forma de obrigação solidária?
Temos, portanto, a conclusão inevitável de que a única consequência vinculada ao desvirtuamento de um instituto tão sério, tão fundamental, é o cumprimento simples da obrigação que se pretendia evitar.
Cada credor prejudicado pelo subterfúgio precisa, na forma estabelecida pela jurisprudência e doutrina majoritárias, ter a sorte de encontrar prova "inequívoca" disponibilizada pelo próprio devedor, além de um magistrado que aplique um standard probatório atingível.
Uma vez que a excepcionalidade é utilizada como justificativa para que os efeitos não sejam estendidos a terceiros na mesma situação, aquele que opta pela fraude conta, ainda, com a probabilidade: quanto mais casos, mais provável que consiga escapar de alguma de suas obrigações em prejuízo daquele que com ele negociou em boa-fé.
O professor e jurista José Rogério Cruz e Tucci, em recente artigo, defendeu a aplicação do benefício da ordem por quem foi inserido no polo passivo da execução por incidente julgado procedente:
"Isso significa que aquele ou aquela alvejada pelo decreto de desconsideração tem a faculdade de requerer a substituição da penhora que recaíra sobre seus bens por ativos da empresa desconsiderada, cabendo-lhe à evidência, o ônus de provar que tal patrimônio é suficiente para responder pelo montante do crédito e, ainda, que se encontra livre e desembaraçado de quaisquer gravames."
Segundo o ilustre jurisconsulto, o exequente não teria o direito de se opor à indicação, a não ser na hipótese de demonstrar que "os bens do devedor primário não sejam suficientes para responder pela execução".
À luz do risco unilateral da condenação em verbas sucumbenciais imposto àquele que busca a satisfação de seu direito através do incidente processual, essa sugestão nos parece reforçar a conclusão de que a má-fé não atrai qualquer consequência ao fraudador que poderá, inclusive, indicar bem de baixa liquidez para travar mais uma vez a execução.
Quantas tentativas de alienação seriam necessárias para que se retornasse à constrição do patrimônio da empresa ou do sócio vencido no IDPJ? De onde surgiriam os recursos utilizados pelo executado principal para adquirir o bem a ser penhorado e por que não foi o montante direcionado à satisfação da execução?
Ao desvincularmos as atitudes da pessoa jurídica dos interesses de seu sócio, atribuindo-lhes intento adversarial, acabamos por sacrificar a razoabilidade em favor do princípio da autonomia patrimonial.
Segundo o art. 186 do CC, aquele que violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. O art. 187 do mesmo diploma inclui nessa categoria o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Por fim, o art. 927 estabelece que o autor do ilícito fica obrigado a repará-lo.
Indaga-se, leitor: A ocultação de patrimônio viola direito do credor? Como definido na norma supracitada, o abuso da personalidade jurídica deve ser considerado um ilícito?
A resposta, conquanto pareça óbvia, está em conflito com o quanto decidido pelo STJ: nem mesmo honorários sucumbenciais são devidos pela descoberta da fraude, incidindo apenas quando o exequente, posto diante de barreiras quase instransponíveis, não tem a boa fortuna de se deparar com a prova cabal cuja produção lhe é vedada.
Vencendo o hercúleo desafio, receberá somente o quanto já lhe era devido, enquanto o devedor derrotado poderá aprimorar sua defesa e suas táticas para que seu próximo credor não tenha a mesma sorte.
Retomemos nosso questionamento inicial, dirigido retoricamente à douta ministra Nancy Andrighi, cuja atuação confessamos admirar abertamente: qual a lição transmitida pela fixação de honorários sucumbenciais exclusivamente na hipótese de improcedência do incidente de desconsideração da personalidade jurídica?
Respeitosamente, a nosso ver, a mensagem é clara: esquivar-se de sua obrigação é a única escolha economicamente razoável, pois se descoberta a fraude, responde-se unicamente por aquilo que já era devido naquele único processo. E, na hipótese de não ter tornado públicas as provas do desvio, seu ludibriado credor responderá pelas verbas sucumbenciais.
É o que se extrai do atual contexto da disregard doctrine no Direito pátrio e isso, convenhamos, faz muito pouco sentido.
__________
1 https://www.migalhas.com.br/depeso/420398/coisa-julgada-e-idpj
2 TJSP; Agravo de Instrumento 2199885-24.2024.8.26.0000; Relator: João Camillo de Almeida Prado Costa; Órgão Julgador: 19ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 04/10/2024; Data de Registro: 04/10/2024.
3 TARUFFO, Michele. A Prova, tradução João Gabriel Couto, 1ª ed., São Paulo : Marcial Pons, 2014, p. 295.
4 TJSP; Agravo de Instrumento 2148182-59.2021.8.26.0000; Relator (a): Ademir Modesto de Souza; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 27ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/09/2021; Data de Registro: 20/09/2021
5 No artigo que publicamos a respeito da extensão subjetiva da coisa julgada em IDPJ, de mencionar a explicação oferecida por um desembargador do TJSP e que é, mais uma vez, relevante. Naquela oportunidade, o magistrado ponderou que, conquanto os fatos provados fossem incongruentes com a administração normal de um negócio, a dinâmica poderia ter se dado como meio de fraudar o fisco e não os credores particulares da empresa executada. Assim, havendo a possibilidade de existir outra intenção para a confusão patrimonial, a desconsideração pretendida seria incabível.
6 TJSP; Agravo de Instrumento 2259136-70.2024.8.26.0000; Relator: Milton Carvalho; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 26/09/2024; Data de Registro: 26/09/2024.
7 TJSP; Agravo de Instrumento 2336376-72.2023.8.26.0000; Relator (a): Emílio Migliano Neto; Órgão Julgador: 23ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas - 7ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 05/09/2024; Data de Registro: 05/09/2024.
8 TJSP; Agravo de Instrumento 2186907-15.2024.8.26.0000; Relator: L. G. Costa Wagner; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 30/10/2024; Data de Registro: 30/10/2024.
9 TJSP; Agravo de Instrumento 2270579-18.2024.8.26.0000; Relatora: Ana Lucia Romanhole Martucci; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 30/09/2024; Data de Registro: 30/09/2024
Guilherme Barros
Advogado da área de Special Situations e Recuperação Avançada de NPLs.