MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. O preço da inconstitucionalidade: A mercantilização da educação inclusiva

O preço da inconstitucionalidade: A mercantilização da educação inclusiva

Os PLs 3.035/20 e 116/25 ameaçam a educação inclusiva, desresponsabilizam o Estado e mercantilizam direitos, gerando exclusão e retrocesso constitucional.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Atualizado às 11:44

Estamos diante de um movimento coordenado que ameaça um dos pilares mais importantes da democracia: a educação inclusiva, pública e de qualidade para todos. Sob o disfarce de propostas inovadoras, o PL 3.035/20 e o PL 116/25 propõem mudanças que não apenas desresponsabilizam o Estado, como também resgatam um modelo segregacionista que afronta a Constituição Federal e, em particular, o decreto 6.949/09, responsável por promulgar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status constitucional.

A convenção internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo decreto 6.949/09, tem status constitucional e é clara ao garantir o direito à educação inclusiva em igualdade de condições. O art. 24 é categórico: as pessoas com deficiência têm direito ao acesso à educação inclusiva no sistema educacional geral, em igualdade de condições com as demais pessoas. Não é um favor, é um direito fundamental. Não pode ser diluído por discursos assistencialistas travestidos de "suporte especializado" ou por propostas que fragmentam o atendimento educacional sob o pretexto de "liberdade de escolha".

PL 3.035/20: A segregação disfarçada de inclusão

O PL 3.035/20, de autoria do então deputado Alexandre Frota e hoje defendido com unhas e dentes pelo deputado Duarte Jr., propõe a criação de Centros de Convivência e a contratação de APs - Acompanhantes Pessoais, pagos diretamente pelas famílias. Na prática, é a segregação educacional travestida de inclusão.

Ao separar os alunos com deficiência do convívio escolar comum, o projeto revive o antigo modelo de escolas especiais, aquelas mesmas que foram abolidas porque excluíam ao invés de integrar. Não é preciso ser especialista em educação inclusiva para entender o impacto devastador dessa medida: afastamento do convívio social, estigmatização e perpetuação do preconceito.

Exclusão econômica: A profunda desigualdade de acesso

O PL 3.035/20 aprofunda a exclusão econômica ao permitir que as famílias contratem diretamente os Acompanhantes Pessoais. Na prática, quem tem dinheiro pode pagar pelo suporte especializado, quem não tem fica à margem, desassistido. O Estado, ao transferir a responsabilidade para as famílias, exime-se de seu dever constitucional de garantir a educação inclusiva em igualdade de condições. Isso não é inclusão. É exclusão econômica.

O projeto mercantiliza o direito à educação, criando um abismo social entre aqueles que podem pagar pelo suporte e aqueles que não podem. Em vez de promover igualdade, transforma a educação inclusiva em um privilégio reservado às famílias com maior poder aquisitivo. Não é apenas uma política excludente; é um retrocesso social e constitucional, que converte o direito à educação em mercadoria.

Desresponsabilização do Estado e mercantilização da inclusão

E onde fica o papel do Estado em garantir a educação inclusiva? Fica esvaziado. O projeto exime o Estado de sua responsabilidade, ao mesmo tempo em que cria um mercado promissor para clínicas e serviços especializados. É a mercantilização da educação inclusiva sob o pretexto de "liberdade de escolha". Um discurso sedutor que encobre um projeto de poder.

Mas não nos enganemos: a mercantilização da educação não é nova. Como bem afirmou a Ministra Macaé Evaristo, "sempre que um governo investe em educação, aparece todo tipo de pessoa oferecendo tecnologias e serviços que em nada beneficiam os estudantes". Aqui, não é diferente. O que se observa é a criação de um nicho lucrativo para empresas de consultoria e prestadores de serviços especializados que, sob o manto da inclusão, exploram o desespero das famílias e mercantilizam o direito à educação.

A justificativa paradoxal: O decreto estadual 68.415/24

Em Brasília, tanto parlamentares da esquerda quanto da direita têm defendido o PL 3035/2020 sob a justificativa de que "já é prática no Estado de São Paulo", amparados pelo decreto Estadual 68.415/24, assinado pelo governador Tarcísio de Freitas. O que não é mencionado é que a redação desse decreto foi feita pela Deputada Andrea Werner, conhecida por seu histórico de defesa da inclusão.

Eis o paradoxo político: um decreto redigido por uma defensora da inclusão agora serve como fundamento para um projeto de lei que segrega e mercantiliza o direito à educação. A ironia não é apenas política. É uma contradição ideológica que escancara um alinhamento estratégico entre esquerda e direita em torno de um modelo que desresponsabiliza o Estado e privatiza direitos sociais.

O silêncio conveniente: O pacto de Brasília

Convencionou-se em Brasília que nenhum deputado se opõe a projetos de lei que tratam da vivência de pessoas autistas. Seja por medo de represália, por receio de serem acusados de falta de empatia ou por puro cálculo político, há um acordo não escrito de que esses projetos passam sem resistência, mesmo quando populistas, inconstitucionais ou quando desvirtuam a inclusão.

Esse silêncio conveniente não é neutro. Ao se absterem de um debate crítico, os parlamentares endossam um modelo de exclusão econômica, segregação educacional e mercantilização da inclusão. Ao não questionarem o PL 3.035/20, os deputados validam um projeto que ofende a Constituição Federal, o decreto 6.949/09 e a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008).

O silêncio também é político. E nesse caso, é cúmplice.

Como diria Raymundo Faoro, "em política, o discurso é o disfarce mais eficiente para as práticas mais contraditórias". A retórica assistencialista e o discurso de liberdade de escolha escondem uma agenda de poder que fragmenta a educação, precariza a magistratura e transforma direitos sociais em nichos de mercado.

É preciso resistir. E resistir com a clareza de que educação inclusiva não é favor, é direito constitucional. Afinal, a educação não é mercadoria, a inclusão não é nicho de mercado, e a igualdade de condições não é concessão. É direito constitucional, e como tal, deve ser defendido.

Guilherme de Almeida

Guilherme de Almeida

Autista. Cientista. Presidente da Associação Nacional para a Inclusão de Pessoas Autistas.

Silvano Furtado

Silvano Furtado

Diretor Executivo da ConsulTEA.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca