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Sentença por IA: Inovação necessária ou ameaça à essência do Direito?

A IA pode impactar a redação de sentenças sem comprometer o Direito? Kelsen defendia que o Direito é intrinsecamente humano, refletindo valores sociais e éticos.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Atualizado em 21 de fevereiro de 2025 10:46

Estaria Kelsen correto ao defender que o Direito é intrinsecamente humano? 

O Direito, como ciência social aplicada, sempre refletiu as transformações da sociedade. Desde os primórdios da civilização, a construção de juízes e sentenças foi moldada por valores humanos, culturais e éticos. 

No entanto, o mundo atual, marcado pela revolução tecnológica, coloca novos desafios para o Direito. A IA - inteligência artificial emerge como uma ferramenta poderosa, capaz de analisar dados, redigir textos e até sugerir argumentos jurídicos. Mas até que ponto a IA pode participar da elaboração de sentenças sem comprometer os princípios fundamentais do Direito? Essa questão ganhou destaque recentemente, quando uma decisão judicial foi contestada não por seu mérito, mas por sua suposta autoria: uma sentença que teria sido redigida por IA, mais especificamente pelo ChatGPT.

Nesse contexto, é oportuno recordar as palavras de Hans Kelsen, em sua obra "Teoria Pura do Direito": "O Direito é uma ordem normativa da conduta humana, um sistema de normas que regula o comportamento." Kelsen defendia que o Direito deve ser compreendido como um sistema dinâmico, construído por decisões humanas que refletem valores sociais e éticos. A introdução de IA na elaboração de sentenças, portanto, pode ser vista como uma contradição à sua teoria, pois substituiria a vontade humana por algoritmos, despersonalizando o processo decisório.

Recentemente, o TJ/SP julgou um caso peculiar: uma parte contestou uma sentença, alegando que ela havia sido redigida por inteligência artificial. A argumentação foi embasada em uma consulta ao ChatGPT, que indicou uma "probabilidade média a grande" de o texto ter sido gerado por IA. O TJ/SP, contudo, considerou o pedido infundado e negou o recurso por insuficiência probatória. Esse episódio, além de peculiar, suscita uma questão fundamental: quais são os impedimentos legais à elaboração de sentenças por IA, e quais os impactos dessa prática para a comunidade jurídica?

A inteligência artificial tem transformado diversas áreas, e o Direito não é exceção. Estas ferramentas são capazes de analisar vastos volumes de dados, elaborar documentos e até sugerir argumentos jurídicos com base em jurisprudência e doutrina. No entanto, quando se trata da redação de sentenças, a fronteira entre o progresso tecnológico e a violação de princípios jurídicos torna-se tênue. Embora a IA possa ser uma aliada na automação de tarefas repetitivas, sua utilização para a tomada de decisões judiciais representa um risco significativo.

A CF/88 e o CPC estabelecem princípios que podem ser interpretados como obstáculos legais à elaboração de sentenças por IA. O princípio da fundamentação das decisões judiciais (Art. 93, IX, CF/88) exige que o magistrado demonstre de forma clara e lógica como chegou à conclusão apresentada. Uma decisão redigida por IA, por mais bem estruturada que pareça, não reflete o raciocínio humano, o que pode configurar uma violação desse princípio. Ademais, o dever de independência e imparcialidade do juiz (Art. 95, CF/88) pode ser comprometido, uma vez que a IA não possui capacidade de julgar com base em valores humanos, como a empatia e a sensibilidade.

Outro aspecto crucial é a responsabilidade do magistrado (Art. 133, CPC). Se uma sentença for elaborada por IA, quem responde por eventuais equívocos ou injustiças? A falta de clareza nessa questão pode gerar um vácuo de responsabilidade, minando a confiança no sistema Judiciário. Por fim, a segurança jurídica pode ser comprometida, já que a IA pode produzir decisões inconsistentes ou baseadas em vieses presentes em seus dados de treinamento.

A adoção de IA para redigir sentenças não apenas viola princípios legais, mas também representa uma série de desafios para a comunidade jurídica. Um estudo realizado pelo CNJ1 em 2022 revelou que 76% dos magistrados brasileiros veem a IA como uma ferramenta útil para tarefas auxiliares, como pesquisa jurisprudencial e redação de minutas, mas apenas 15% apoiam sua utilização na elaboração de sentenças. 

Em termos de eficiência, a IA poderia reduzir o tempo médio de tramitação de processos em até 30%, segundo projeções do IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. No entanto, esse ganho de eficiência pode ser anulado pelos riscos de decisões inconsistentes ou discriminatórias. Um exemplo preocupante é o caso dos vieses algorítmicos: em 2021, um estudo da Universidade de Stanford2 mostrou que sistemas de IA treinados com dados históricos tendem a reproduzir padrões discriminatórios, como preconceitos raciais e de gênero, presentes nesses dados.

A discussão não deve ser vista como uma mera curiosidade tecnológica, mas sim como uma questão que toca o cerne da atividade jurídica. Enquanto a IA pode ser uma ferramenta útil para otimizar processos e auxiliar na pesquisa jurídica, sua utilização para redigir sentenças representa um risco significativo para a integridade do sistema Judiciário. A comunidade jurídica deve estar atenta a esses desafios e buscar um equilíbrio entre a inovação tecnológica e a preservação dos princípios fundamentais do Direito.

Hans Kelsen ressaltou que o Direito é fruto da vontade humana e da razão. Decisões judiciais não são meras aplicações mecânicas de normas; são construções complexas que exigem sensibilidade, experiência e discernimento. A substituição do juízo humano pelo algorítmico pode representar um retrocesso, afastando o Direito de sua missão primordial: promover justiça e equidade.

Portanto, a comunidade jurídica deve encarar a IA com cautela e responsabilidade. A inovação tecnológica deve ser bem-vinda, mas sempre subordinada aos princípios éticos e legais que garantem a confiança no sistema Judiciário. Afinal, o Direito não é apenas um conjunto de normas; é uma expressão da humanidade em sua busca incessante por justiça. E, nessa busca, a máquina jamais poderá substituir o coração e a mente do ser humano.

___________

1 Estudo sobre o uso de tecnologias no Judiciário, incluindo a percepção dos magistrados sobre IA.  https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/

2 https://ai100.stanford.edu/gathering-strength-gathering-storms-one-hundred-year-study-artificial-intelligence-ai100-2021-1-0

Mabel Cristina Santos Guimarães

Mabel Cristina Santos Guimarães

Advogada de inovação jurídica, UX Jurídica, Legal Storyteller. Pós graduada em Direito Administrativo (UFPE) e LegalTech: Direito, inovação e startups (PUC), Especialista em Business Analytics e Ciência de Dados (UNICAP) e Soft Skills (University of Chicago), sócia do Urbano Vitalino Advogados, colunista da Revista Paradigma e Premiada como Expressão Brasil 2022 e 2024.

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