O novo marco legal dos seguros e a necessária superação da súmula 465 do STJ
A lei 15.040/24 regula o setor de seguros privados, detalhando deveres das partes, boas práticas e medidas de comunicação. A norma visa equilíbrio entre segurado e seguradora.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
Atualizado em 21 de fevereiro de 2025 10:42
No dia 10/12/24, a lei 15.040 (o marco legal dos seguros) foi publicada no Diário Oficial da União. Com período de vacância de um ano, a norma remonta ao PL 3.555/04, protocolado pelo deputado Eduardo Cardozo no dia 13/5/04. O anteprojeto que deu origem ao mencionado PL foi redigido por comissão instituída no IBDS - Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, sob a coordenação de Ernesto Tzirulnik (presidente do IBDS) e de Flávio de Queiroz Bezerra Cavalcanti (Fundador do IBDS e Professor da Faculdade de Direito do Recife-UFPE).1
Com 134 arts., a lei 15.040/24 tem número de regras equivalente às do CDC; o que justificaria a denominação de Código dos Seguros Privados2. Filiamo-nos à ideia de que o contrato de seguro visa fornecer garantia ao segurado; é a promessa de garantia feita pela seguradora que justifica o pagamento do prêmio pelo segurado3. Também existe respeitável corrente doutrinária que defende o caráter aleatório do contrato de seguro, ao argumento da suposta falta de equivalência entre as prestações e sua execução, "em face da dependência de evento futuro e incerto.
Por meio desta relação contratual entabulada há o translado do risco do segurado à seguradora em virtude do pagamento de um prêmio".4 Cabe destacar que a seguradora assume obrigação de garantir levando em consideração os riscos descritos na proposta de seguro ("riscos predeterminados"), que é formulada pelo segurado.5
Com base nestas informações, a seguradora vale-se das regras da matemática estatística para analisar a frequência dos riscos e perdas em determinado setor, a fim de compartilhar tais perdas com o maior número possível de segurados. Neste sentido, fala-se em uma base mutuária do seguro, porquanto os segurados terminem por cobrir reciprocamente os riscos aos quais estão expostos.6
Contudo, há que se atentar para uma grave assimetria informacional existente entre as partes no momento da formação do contrato, na medida em que a seguradora não conhece a pessoa do segurado e que espécies de riscos podem ocorrer em relação a ele. Em razão disto, o segurado formula proposta ao segurador, detalhando os riscos que ele espera que sejam assumidos pela seguradora. Daí porque se impõe às partes "a mais estrita boa-fé e veracidade" na prestação de tais informações (CC, art. 765).7
Em razão de tais deveres de boa-fé e veracidade, o agravamento intencional e relevante do risco imputável ao segurado resultará na exclusão da garantia, seja em virtude da regra do art. 768 do CC atual ou da regra do art. 13 do novo Código dos Seguros Privados8. Isto porque tal agravamento intencional do risco poderá resultar na imposição de prejuízos financeiros à seguradora, que poderia ser levada a garantir riscos que não foram assumidos por ela e que não foram considerados no cálculo feito para a fixação do prêmio.
Nesta toada, o novo Código dos Seguros Privados determina que cabe ao segurado "comunicar à seguradora relevante agravamento do risco tão logo dele tome conhecimento" (art. 14). Contudo, o enunciado 465 da súmula do STJ diz que: "Ressalvada a hipótese de efetivo agravamento do risco, a seguradora não se exime do dever de indenizar em razão da transferência do veículo sem a sua prévia comunicação". O entendimento do STJ parece se apoiar na interpretação de que o seguro de automóvel é seguro de dano e não pessoal9. Pressupõe, portanto, que o seguro de dano é transmitido com a alienação da coisa.
Assim, também parece pressupor que as obrigações decorrentes do contrato de seguro de automóvel tem natureza de obrigações reais ou propter rem, ou seja, são obrigações que decorrem da titularidade do direito de propriedade e que seguem a sorte do bem (a ambulatoriedade das obrigações reais10). Com todas as vênias, parece-nos um erro reduzir o contrato de seguro de automóvel a mero seguro de dano, posto que também tem características do seguro de responsabilidade civil, visando assegurar o segurado em relação a danos causados a terceiros.11
Por outro lado, é de se cogitar a possibilidade da transferência automática de apólice cujo prêmio ainda não foi pago em virtude da alienação do veículo. É possível presumir que o adquirente do veículo concordou em assumir tal dívida e pode ser demandado em juízo? Parece-nos que não. Ademais, nos seguros facultativos, a eficácia da cessão do seguro a terceiro dependerá da comunicação a seguradora no prazo de 30 dias (art. 109, da nova lei dos seguros privados12).
Some-se a isto o fato de as seguradoras normalmente concederem descontos a segurados com históricos positivos, ante o risco relacionado ao ressarcimento de terceiros por acidentes causados na condução veicular. Atalá Correia faz importante reflexão sobre os efeitos indesejáveis da lógica ínsita à súmula 465 do STJ: "Tome-se, por hipótese, a venda de um veículo por um jovem do sexo masculino a uma mulher, com longo histórico de direção cuidadosa. Com a transferência automática do seguro, sem comunicação à seguradora, a adquirente poderia estar obrigada a pagar mais do que se contratasse o seguro diretamente. A solução encontrada pelo STJ retirou da companhia seguradora a possibilidade de se manifestar sobre o tema de antemão, tornando obrigatória uma transferência de posição contratual que nem sempre será desejada".13
Ora, o dever de comunicação da transferência da cobertura à seguradora imposto em virtude do art. 109 da nova lei dos seguros privados resulta na necessidade de superação da súmula 465 do STJ. Realizada tal comunicação nos termos do art. 109, caberá a seguradora o direito de exigir o aumento do valor do prêmio na hipótese de majoração dos riscos (art. 108, § 2º), ou de resolver o contrato mediante a devolução proporcional do prêmio (art. 109, §§ 1º e 3º). Em verdade, tal obrigação de comunicar a transferência do contrato a terceiro nos seguros nominativos já encontra previsão no art. 785, § 1º do CC vigente. Assim, é de se concluir pela necessidade de superação da súmula 465 do STJ, ante sua patente incompatibilidade com a nova lei dos seguros privados e a evidência de que a reprodução desta lógica termina por onerar indevidamente as seguradoras e os segurados.
________________
1 Cf.: https://www.ibds.com.br/projeto-de-lei/ Acesso em: 09 de fevereiro de 2025.
2 Por outro lado, também se nota entre nós o costume de "batizar" os Códigos com o nome do jurista encarregado de sua redação inicial ou que presidiu a comissão redatora do Anteprojeto. Neste sentido, fala-se em Código Beviláqua (para referir ao Código Civil de 1916) ou Código Fux (em alusão ao Código de Processo Civil de 2015). Seguindo esta lógica, pedimos vênia para eventualmente nos referirmos a nova Lei como Código Queiroz-Tzirulnik, em reconhecimento ao labor dos coordenadores da Comissão de juristas responsável pelo Anteprojeto.
3 CAVALCANTI, Flávio de Queiroz Bezerra. Regulação de sinistro no Projeto de Lei n. 3.555/04. Revista Brasileira de Direito do Seguro e da Responsabilidade Civil, v. 1, n. 2 (dez.2009). São Paulo: MP Editora/Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, p. 50.
4 FACHIN, Luiz Edson. Contrato de seguro e o agravamento de risco na perspectiva do Código Civil brasileiro. Soluções práticas de direito: pareceres, v. 1 (jan. 2012). São Paulo: RT, p. 157-187. RT Online.
5 Lei n. 15.040/2024, art. 1º. "Pelo contrato de seguro, a seguradora obriga-se, mediante o pagamento do prêmio equivalente, a garantir interesse legítimo do segurado ou do beneficiário contra riscos predeterminados".
6 CORREIA, Atalá. Revisitando a súmula 465 do Superior Tribunal de Justiça. In: PRADO, Camila Affonso; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; SOARES, Flaviana Rampazzo; ROSENVALD, Nelson (coords.). Seguros e Responsabilidade Civil. Indaiatuba-SP: Foco, 2024. E-book. Disponível em: https://plataforma.bvirtual.com.br Acesso em: 09 fev. 2025.
7 Lei n. 15.040/2024: Art. 37. "Os intervenientes são obrigados a agir com lealdade e boa-fé e prestar informações completas e verídicas sobre todas as questões envolvendo a formação e a execução do contrato".
8 Lei n. 15.040/2024, Art. 13. "Sob pena de perder a garantia, o segurado não deve agravar intencionalmente e de forma relevante o risco objeto do contrato de seguro. § 1º Será relevante o agravamento que conduza ao aumento significativo e continuado da probabilidade de realização do risco descrito no questionário de avaliação de risco referido no art. 44 desta Lei ou da severidade dos efeitos de tal realização. § 2º Se a seguradora, comunicada nos termos do art. 14 desta Lei, anuir com a continuidade da garantia, cobrando ou não prêmio adicional, será afastada a consequência estabelecida no caput deste artigo".
9 Confira-se a manifestação do Ministro Humberto Gomes de Barros no REsp 600.788/SP, representativo do entendimento da Corte: "Trata-se, pois, de seguro sobre res e não pessoal, em que aquele visa segurar o bem móvel ou imóvel, enquanto este visa resguardar a pessoa física do segurado. Entre ambos, existe diferença substancial, uma vez o seguro pessoal é intransferível e o de coisas é transferível. No caso do seguro sobre bens móveis ou imóveis objetiva a segurança da res e não da pessoa do seu titular. Assim, o seguro de veículo colima garantir o bem e não a pessoa de sua propriedade" (STJ, REsp 600.788/SP, 3.ª T., j. 25.09.2006, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 30.10.2006, p. 293) .
10 CARNAÚBA,Daniel Amaral; REINIG,Guilherme Henrique Lima.O regime das obrigações propter rem eas despesas condominiais. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 7, n. 2, 2018, p. 3. Disponível em: http://civilistica.com/o-regime-das-obrigacoes-propter-rem/ Acesso em: 14 de fevereiro de 2025.
11 Lei n. 15.040/2024, Art. 98: "O seguro de responsabilidade civil garante o interesse do segurado contra os efeitos da imputação de responsabilidade e do seu reconhecimento, assim como o dos terceiros prejudicados à indenização".
12 Cf., Art. 109: "A cessão do seguro correspondente deixará de ser eficaz se não for comunicada à seguradora nos 30 (trinta) dias posteriores à transferência do interesse garantido. § 1º A seguradora poderá, no prazo de 15 (quinze) dias, contado da comunicação, resolver o contrato. § 2º A recusa deverá ser notificada ao cedente e ao cessionário e produzirá efeitos após 15 (quinze) dias contados do recebimento da notificação. § 3º Se a seguradora resolver o contrato nos termos do § 1º deste artigo, o segurado fará jus à devolução proporcional do prêmio, ressalvado, na mesma proporção, o direito da seguradora às despesas incorridas".
13 CORREIA, Atalá. Revisitando a súmula 465 do Superior Tribunal de Justiça. In: PRADO, Camila Affonso; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; SOARES, Flaviana Rampazzo; ROSENVALD, Nelson (coords.). Seguros e Responsabilidade Civil. Indaiatuba-SP: Foco, 2024. E-book. Disponível em: https://plataforma.bvirtual.com.br Acesso em: 09 fev. 2025.
Bruno Novaes Bezerra Cavalcanti
Sócio-Diretor de Queiroz Cavalcanti Advocacia
Carolina Cavalcanti
Sócia e integrante da área contencioso estratégico de Queiroz Cavalcanti
Venceslau Tavares Costa Filho
Advogado e vice-presidente da ADFAS - Associação de Direito de Família e das Sucessões de Pernambuco. Mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.