A utilização de empresas-veículo em operações de fusões e aquisições (M&A)
Empresas-veículo são peças-chave em operações de fusões e aquisições (M&A). Descubra como elas otimizam transações, reduzem riscos e garantem eficiência tributária. Estratégia essencial para negócios.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
Atualizado às 13:23
Uma das ferramentas para otimizar a estrutura de uma transação de M&A é a chamada empresa veículo. Trata-se de uma entidade criada com o propósito específico de realizar uma operação de aquisição, fusão ou reestruturação de empresas. Sua principal função é permitir que uma empresa compradora ou investidora realize a aquisição de outra empresa ou de ativos sem a necessidade de envolver diretamente o patrimônio da empresa compradora na operação. Esse procedimento oferece uma série de vantagens tanto no aspecto jurídico-societário quanto tributário, porém exige cuidados específicos para garantir que a operação seja estruturada de maneira adequada e, principalmente, lícita.
1. O conceito de empresa-veículo
Uma empresa veículo é uma empresa criada para atuar como intermediária em uma transação de M&A. Ela possui, de forma geral, um escopo de atividades restrito, ou seja, sua única função é a realização da transação-alvo específica. Após a operação concluída, a empresa veículo pode ser dissolvida ou mantida. Tudo dependerá da estratégia adotada pelas partes em conjunto com as equipes jurídica e contábil envolvidas na operação.
Roberto Duque Estrada e Eduardo Barboza Muniz1, conceituam:
De todo modo, por empresa veículo, costuma-se designar determina pessoa jurídica cuja existência foi efêmera. Essas pessoas jurídicas podem ser utilizadas para finalidades bem diversas no que concerne ao aproveitamento e/ou transferência fiscal do ágio.
Essas empresas são constituídas de maneira um tanto quanto simplificada - se é que assim podemos chamar - sem excessivos ativos ou passivos, e geralmente não possuem operações comerciais significativas além da aquisição de ativos ou participação societária de outra empresa. A bem da verdade, o objetivo é criar uma empresa com essa única finalidade, que não carregue passivos, operações ou ativos de outro negócio. Esse tipo de estrutura permite que o comprador adquira a empresa-alvo (ou seus ativos) sem que o risco envolvido no processo seja transferido diretamente para a empresa compradora, minimizando eventuais passivos ocultos ou riscos legais.
2. A "mão na massa". Procedimento de utilização de uma empresa veículo em uma operação de M&A
O procedimento para a utilização de uma empresa veículo em uma operação de M&A é estruturado em várias etapas, que vão desde a constituição da empresa veículo até a realização efetiva da operação e, se for o caso, a dissolução dessa empresa após a transação.
2.1. Criação da empresa veículo
O primeiro passo é a constituição da empresa veículo, que pode ser feita com um capital social reduzido e com o objetivo exclusivo de realizar a aquisição ou fusão. Normalmente, essa empresa não exerce atividades operacionais e pode ser uma sociedade limitada ou anônima, conforme a estrutura jurídica mais adequada à operação. A empresa veículo deve ser criada com um contrato social claro, que especifique que sua finalidade é a realização de uma única operação de M&A. Fique atento também para que o capital social, mesmo reduzido, não seja infinitamente inferior ao valor da operação. Isso pode acarretar em impactos tributários e déficits operacionais.
Exemplo: Uma empresa A, especializada em energia renovável, deseja adquirir uma startup de tecnologia para aumentar sua capacidade de inovação. Em vez de realizar a compra diretamente, a empresa A cria uma nova companhia, uma empresa veículo, para realizar a aquisição. Essa nova empresa vai adquirir as ações da startup de tecnologia, e a empresa A pode integrar a startup ao seu portfólio sem que a startup de tecnologia assuma direta e sumariamente os passivos e riscos da empresa A.
2.2. Planejamento tributário e definição do tipo de transação
Antes de fechar a operação, é necessário realizar um planejamento tributário detalhado para determinar qual será o tipo de transação: se uma compra de ativos, uma aquisição de ações/cotas ou uma fusão. A escolha do tipo de transação é fundamental para definir como a empresa veículo será utilizada e como o ágio gerado na transação será tratado fiscalmente.
- Aquisição de ações/cotas: Quando a empresa veículo compra as ações/cotas da empresa-alvo, ela assume a participação societária. Em muitos casos, isso permite a dedução de ágio, caso o valor pago exceda o patrimônio líquido da empresa adquirida. Vale lembrar que o CARF vinha rejeitando essa possibilidade sob o argumento de que as empresas veículo seriam meras ficções para obtenção de benefícios fiscais. Este entendimento vem mudando e sinaliza novos posicionamentos sobre o tema. Veja julgamentos referentes aos casos: Raízen e Cosanpar e Bradesco Saúde S/A e Odontoprev.
- Compra de ativos: Quando a aquisição envolve ativos específicos, como imóveis, patentes ou equipamentos, a empresa veículo adquire os ativos em substituição à compradora na operação. Nesse caso, o ágio também pode ser deduzido, caso seja comprovada a criação de um valor adicional por meio da transação. É aqui que a equipe societária deve se unir à equipe tributária e contábil para mapear o desenho da operação e mitigar riscos. É comum que nessa etapa, sanar um problema societário implique em risco tributário e/ou vice-versa.
Exemplo: Suponha que a empresa adquirente crie uma estrutura (empresa veículo) para adquirir uma fábrica de eletrônicos. A transação envolveu a compra de todos os ativos da fábrica, incluindo imóveis e equipamentos. Neste caso, não acontece o que comumente chamamos de "comprar o CNPJ". Digamos que preço pago por esses ativos excedeu o valor contábil de mercado, criando um ágio que, em conformidade com estes recentes entendimentos do CARF, pode ser amortizado ao longo do tempo para fins tributários. Essa operação pode gerar uma série de aproveitamentos operacionais e fiscais para a adquirente.
No artigo "Ágio e Empresa Veículo no Planejamento Tributário: Um Estudo de Decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais2", Pedro Valladão Ferraz analisa criticamente o uso de empresas-veículo e a dedução de ágio como estratégias de planejamento tributário para obtenção de economia fiscal. O autor examina a jurisprudência do CARF - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais por meio de uma amostra de 45 acórdãos de 2018, que tratam do tema. A pesquisa conclui que, embora não haja unanimidade, o entendimento predominante no CARF é de que o planejamento tributário envolvendo ágio e o uso de empresas-veículo em reorganizações societárias é considerado inválido no ordenamento jurídico brasileiro. Isso ocorre porque tais operações são frequentemente vistas como artificiais, sem propósito negocial legítimo, visando apenas à obtenção de benefícios fiscais indevidos. Portanto, segundo a análise de Ferraz, o uso de empresas-veículo para economia tributária enfrenta resistência significativa na esfera administrativa, sendo geralmente desqualificado pelas autoridades fiscais.
2.3. Documentação e due diligence
Concomitantemente ao mapeamento estratégico, é necessário o start da análise jurídica e contábil detalhada da empresa alvo, conhecida como due diligence. Isso é fundamental para garantir que a empresa veículo não adquira passivos não identificados ou riscos ocultos que possam comprometer a validade da transação. É aqui que também identificamos possibilidades de alteração no preço de aquisição, que podemos discutir em outro artigo. A due diligence também garante que a empresa veículo esteja adquirindo os ativos ou as ações de forma transparente e que todos os valores envolvidos na transação sejam adequados.
Muito embora as cláusulas de declarações e garantias possam trazer uma certa segurança da operação, o dever de diligência do adquirente permanece e é papel das equipes de due identificar e quantificar as possíveis perdas e riscos envolvidos na operação.
A lisura da documentação dessa etapa é crucial para garantir a dedutibilidade do ágio, que é a diferença entre o valor pago e o valor contábil da empresa adquirida. Muito se trata sobre os custos envolvidos neste momento. O adquirente despende de grandes montantes de honorários para equipes de consultores tributários, contadores e equipe jurídica para se certificar da segurança da operação. O "no-go" (não fechamento do contrato de aquisição) é muito comum nesta etapa do processo.
3. Realização da operação e integração
Uma vez que a due diligence é concluída e a documentação necessária é preparada, a operação é formalizada. A empresa veículo adquire os ativos ou as ações da empresa-alvo, e a integração das duas empresas começa. Em uma fusão, por exemplo, a empresa veículo pode ser incorporada pela empresa compradora, ou a empresa-alvo pode ser absorvida pela empresa veículo, dependendo da estrutura escolhida.
Após a conclusão da operação, a empresa veículo pode ser dissolvida, caso não haja mais necessidade de sua existência, ou pode ser mantida como uma entidade legal separada se houver interesse estratégico em continuar com a estrutura.
Em muitos casos, uma vez que a operação de M&A é concluída e a integração entre as empresas foi realizada, a empresa veículo é dissolvida. Essa dissolução pode ocorrer rapidamente, sem a necessidade de manter a empresa veículo ativa após a transação. Contudo, em algumas situações, a empresa veículo pode ser mantida se for necessário para futuras reestruturações ou se houver interesse estratégico em manter a estrutura.
4. Por que utilizar uma empresa veículo?
Destaco alguns benefícios de operações das quais participei em que os principais temas das mesas em que se reuniram advogados, contadores e representantes do adquirente pautaram:
- Isolamento de passivos: A empresa veículo permite que o comprador adquira os ativos ou a participação na empresa-alvo sem assumir diretamente os passivos, o que minimiza o risco de assumir dívidas não planejadas.
- Otimização tributária: O uso de empresas veículo facilita a dedução de ágio, o que pode reduzir a carga tributária do comprador. A amortização do ágio ao longo do tempo proporciona uma economia fiscal considerável.
- Flexibilidade na estrutura da transação: A utilização de empresas veículo proporciona maior flexibilidade nas transações, permitindo que o comprador escolha a estrutura mais eficiente, seja por meio da compra de ativos ou de ações, de acordo com suas necessidades e objetivos fiscais.
- Spin-offs e carve-outs: A empresa adquirente pode isolar determinadas unidades de negócios da empresa-alvo antes de integrar totalmente a operação.
- Holding intermediária: Muitas multinacionais utilizam empresas-veículo como holdings intermediárias para facilitar a gestão de investimentos internacionais.
5. Conclusão
A utilização de empresas veículo em operações de M&A é uma estratégia eficaz que permite otimizar a estrutura jurídica e tributária das transações. Contudo, para que essa estratégia seja bem-sucedida, é imprescindível que todas as etapas do processo, desde a criação da empresa veículo até a sua dissolução, sejam executadas com rigor, transparência e respaldo técnico, tanto no aspecto jurídico quanto contábil.
Embora o CARF tenha apresentado resistência para admitir o uso de empresas-veículo para economia tributária, essas entidades continuam sendo ferramentas essenciais para operações de M&A bem estruturadas. Seu valor está na proteção contra passivos, segregação de ativos, otimização da governança e facilitação da reestruturação societária.
A chave para o uso bem-sucedido de uma empresa-veículo está na substância econômica da operação. Sempre que houver um propósito legítimo além da redução de tributos - como reorganização patrimonial, proteção contra riscos ou facilitação de transações complexas -, a estrutura se mostra altamente vantajosa e defensável do ponto de vista jurídico e regulatório.
Se for apenas para criar um ágio artificial e obter economia fiscal sem propósito negocial real (de acordo com o entendimento majoritário do CARF), as chances de questionamento por parte do Fisco são altíssimas. Mas se usada corretamente, a empresa-veículo é uma das estratégias mais eficazes em operações empresariais sofisticadas.
Ao empresário incumbe não economizar quando o assunto é prevenção e planejamento. O que boas equipes de advogados, contadores e consultores pode proporcionar é o investimento em resultados nas suas operações, segurança e lisura do processo.
___________
1 Estrada, Roberto Duque; Muniz, Eduardo Barboza
ESTRADA, Roberto Duque; MUNIZ, Eduardo Barboza. Empresa Veículo e Ágio Interno. Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), 2022. Disponível em: https://www.ibet.com.br/wp-content/uploads/2022/11/Roberto-Duque-Estrada-e-Eduardo-Barboza-Muniz.pdf. Acesso em: 19 fev. 2025.
2 Ferraz, Pedro Valladão
FERRAZ, Pedro Valladão. Ágio e Empresa Veículo no Planejamento Tributário: Um Estudo de Decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), 2018. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/jspui/bitstream/1/5078/1/Pedro%20Vallad%C3%A3o%20Ferraz.pdf. Acesso em: 19 fev. 2025.