Quando a lei se antecipa ao crime: O limite entre planejamento e execução em atentados
A reflexão explora o equilíbrio necessário entre a proteção da ordem constitucional e a preservação da liberdade, evitando a criminalização de intenções sem execução.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025
Atualizado em 20 de fevereiro de 2025 14:24
A defesa do Estado Democrático de Direito, especialmente diante de investidas que visam enfraquecer suas instituições, é um pilar essencial para a manutenção das garantias fundamentais. No entanto, a legislação penal que prevê a punição de condutas voltadas à subversão da ordem constitucional exige um tratamento criterioso. Isso porque a necessária proteção da democracia não pode se confundir com a criminalização prematura de atos embrionários, desprovidos de consequência imediata e concreta. A dogmática penal tradicional estabelece um percurso bem definido para a realização de um delito, segmentando-o em pensamento, preparação e execução. Essa distinção não é meramente teórica: ela representa um mecanismo de contenção ao avanço excessivo do poder punitivo sobre planos, articulações ou ideias que ainda não se materializaram em ações ofensivas reais. Punir condutas preparatórias que não se traduzam em atos de execução significa antecipar indevidamente a repressão estatal, violando o princípio da intervenção mínima.
No contexto dos crimes que atentam contra a ordem democrática, a gravidade do bem jurídico protegido é inquestionável. Ainda assim, mesmo quando a lei dispensa um resultado naturalístico para a consumação do delito, é imprescindível estabelecer um critério claro que diferencie o mero planejamento do início efetivo da execução. Caso contrário, corre-se o risco de criminalizar discussões, estratégias genéricas ou manifestações que jamais ultrapassaram a esfera do pensamento especulativo. A ausência de parâmetros rigorosos abre espaço para a aplicação arbitrária da norma, fragilizando direitos fundamentais conquistados ao longo da história.
Diante desse cenário, a construção de um equilíbrio entre a salvaguarda da ordem constitucional e a observância dos princípios estruturantes do Direito Penal torna-se um desafio inadiável. O sistema penal deve ser firme diante de conspiradores que efetivamente avancem na realização de um atentado contra o Estado de Direito, mas não pode se converter em ferramenta de repressão desproporcional. A democracia, para ser genuína, exige um limite claro ao punitivismo exacerbado, resguardando a liberdade de ideias, o direito à crítica e até mesmo a frustração de intenções que nunca saíram do plano hipotético.
Em suma, embora a estabilidade das instituições deva ser protegida pela legislação penal, a punição não pode recair sobre meras preparações destituídas de atos executórios concretos.
Sem uma análise rigorosa do momento em que a conduta se transmuta em ação apta a gerar lesão ou perigo iminente, o combate às ameaças à democracia pode facilmente degenerar em perseguição indiscriminada. A segurança jurídica e a tutela dos direitos fundamentais impõem uma postura prudente, na qual somente atos efetivamente idôneos para comprometer a ordem constitucional sejam considerados passíveis de responsabilização penal.
Uma dose de humor
Punir atos meramente preparatórios, sem resultado naturalístico ou sem passos concretos em direção à execução, costuma ser tão eficaz quanto tentar disciplinar um gato só por pensar em miar - ao final, o efeito pode ser muito barulhento, mas não necessariamente contribui para a harmonia do ambiente. Nesse sentido, aquele velho princípio que separa sonho de realidade (ou intenção de ação) não é apenas uma abstração filosófica: ele protege a nossa própria liberdade de existir em paz sem que o Estado precise bisbilhotar o que acontece no íntimo de cada um.
A defesa do Estado Democrático de Direito, obviamente, não é uma tarefa simples. É quase como manter uma planta carnívora saudável: é preciso cuidado diário, doses corretas de "nutrientes institucionais" e, principalmente, não tratá-la com exageros que acabem por sufocar o próprio ecossistema onde ela vive. Nesse cenário, criminalizar toda e qualquer conversa de bastidores poderia transformar qualquer reunião de final de semana em pauta de investigação, algo que lembraria um certo "panóptico" tão temido em discussões sobre controle social.
Há quem pense que, a partir do momento em que alguém fantasia sobre uma ruptura institucional, a roda da repressão deva ser imediatamente acionada. Mas vale lembrar que boa parte das pessoas, em algum ponto da vida, já teve pensamentos que não se materializaram - e punir intenções vagas seria tão lógico quanto multar quem, numa tarde entediada, se imaginou largando tudo para se tornar cantor de ópera. Até porque, se não houve uma aula sequer de canto ou uma partitura estudada, não há por que condenar o devaneio. Falando em devaneios, é sempre útil manter os pés no chão e garantir que o Direito Penal não se torne uma ferramenta para disciplinar sonhos (ou pesadelos).
É claro que os casos de movimentos efetivos para subverter a ordem constitucional trazem riscos sérios e merecem uma atenção real. Há situações em que a preparação é tamanha que já se avista a execução no horizonte, como quem está em pleno salto para além do mero planejamento. Nesse ponto, é legítimo impor barreiras legais, pois os fatos deixam o terreno das ideias e entram na seara da ameaça concreta. Entretanto, confundir conversas preliminares e articulações vagas com uma espécie de "magia negra penal" apenas estimula um punitivismo assustadoramente amplo, que praticamente equipara um projeto distante a um crime em vias de concretização.
É fundamental lembrar que, se o Direito Penal se basear somente em punir discursos ou rascunhos guardados na gaveta, abre-se espaço para que qualquer frase fora de contexto vire prova de intenção malévola. E cá entre nós, julgar alguém só por rabiscos que nunca ganharam forma é como condenar uma sombra projetada na parede por ser "culpada" de não ter substância própria. Vale a anedota: seria como acusar de sedicioso aquele grupo de amigos que, em tom de pura brincadeira, planejou "dominar o mundo" no fim de semana, tal qual vilões de desenhos animados. É exagerado? Sem dúvida. Mas, sem freios adequados, o sistema penal pode descambar para essas caricaturas de si mesmo.
Em suma, ao tratar dos crimes de atentado, mais vale olhar com cuidado para a linha que separa a simples preparação, que permanece no campo das possibilidades, dos atos capazes de produzir dano efetivo à ordem democrática. Afinal, aquele que só pensou em uma revolução continua, até prova em contrário, no reino das ideias. E o Direito Penal, por mais que seja fértil em hipóteses, não deveria se tornar o guardião de todos os sonhos, devaneios e conspirações imaginárias, sob pena de perder sua essência e virar uma espécie de "Rei Midas" ao avesso, que transforma até a mera intenção em chumbo jurídico. Desse modo, preservam-se tanto a estabilidade das instituições quanto a coerência de um sistema legal que não pode se dar ao luxo de punir ensaios teóricos como se fossem atos consumados.
Emerson Leônidas
Advogado criminalista e professor. Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da OAB-DF