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Retrocesso na era Trump e os direitos fundamentais das pessoas transgênero

O escopo do presente artigo é ponderar sobre a evolução do reconhecimento da transgeneridade no Brasil e sopesar o retrocesso do governo americano em menosprezar e desqualificar as pessoas trans.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Atualizado às 13:37

1. Introdução

O direito à existência das pessoas transgênero voltou a ser questionado, justamente quando o mundo civilizado parecia reconhecer a identidade de gênero. Um dos grupos mais ridicularizados e incompreendidos em décadas anteriores volta à cena no discurso de ódio de um certo presidente da república. O governo dos Estados Unidos parece querer redefinir gênero para provocar a discriminação. Diante deste cenário, a vida das pessoas trans parece correr mais risco, tornando-se impossível viver com dignidade em certos países.

Estas pessoas não pediram para ser transgênero, elas simplesmente o são. Por que perseguir alguém por algo sobre o qual a pessoa não tem o controle? Essa perseguição existe para enfraquecer o orgulho de ser trans e minar a liberdade de ir, vir e ficar. Em que a transgeneridade de alguém impede o outro de ser feliz?

Nos Estados Unidos, o discurso de ódio retorna para tratar estas pessoas como doentes, imorais e dotadas de distúrbios mentais, além de serem discriminadas e humilhadas, como ocorre atualmente na Rússia.

As pessoas trans protestam pelo respeito aos seus direitos fundamentais. Elas não estão lutando em busca de privilégios ou prerrogativas, querem tão somente consideração e igualdade como pessoas humanas dignas de direitos.

Os tribunais brasileiros, nas últimas décadas, reconheceram diversos direitos às minorias sexuais. Em 2011, o STF possibilitou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e, no ano 2019, igualou a homotransfobia ao crime de racismo. Contudo, o Poder Legislativo brasileiro ainda é omisso em aprovar leis reafirmando o direito à igualdade das minorias, cabendo ao Poder Judiciário garantir os direitos fundamentais diante da indiferença do legislador.

De tal modo, o escopo do presente artigo é ponderar sobre a evolução do reconhecimento da transgeneridade no Brasil e sopesar o retrocesso do governo americano em desconsiderar, menosprezar, desqualificar as pessoas trans. No Brasil a falsa moral e a religião interferem no processo legislativo e, nos Estados Unidos, parecem interferir no Executivo, ampliando a vulnerabilidade social das pessoas trans.

Para elaborar o presente trabalho, utilizou-se da metodologia dedutiva, assim, partindo-se dos conhecimentos e experiências no trato da matéria nas últimas décadas.

2. Minorias e direito à igualdade

A CF/88, propõe em art. 5º que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" (Brasil, 1988), portanto, as pessoas devem ter as mesmas oportunidades e chances, independente das perspectivas pessoais de cada indivíduo. Diante deste cenário, é preciso tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais (Alexy, 2014).

Atualmente, busca-se mais o direito à igualdade e direito ao reconhecimento da  diversidade.

Dimoulis (2021, p. 84) indica que "as diferenças permitem que alguém seja reconhecido, que tenha identidade (com ele mesmo)". Ressalte-se que o direito à diferença é mirar o combate pelo reconhecimento, objetivando deter com a homogeneização, uma vez que todas as pessoas são diferentes, brotando assim a necessidade de se respeitar a diferença/diversidade (Bittar, 2009).

O direito à diferença valoriza a sociedade plural, a diversidade humana, validando o direito à dignidade humana, previsto no art. 1º, III, da CF/88, portanto, as pessoas não querem apenas a tolerância, mas o reconhecimento. Logo, o direito à diferença assegurado pelo Poder Público é bastante significativo para combater a discriminação e o preconceito.

Rios (2008, p. 84) enfatiza, sobre o igualitarismo:

O igualitarismo, por sua vez, pode ser abstrato ou concreto. Em sua versão abstrata, a igualdade de todos acima de qualquer diferença revela-se vazia, impedindo inclusive os seres humanos reais concretos de lutarem por uma equalização efetiva, que transforme a igualdade de direito em igualdade de fato. Seria, inclusive, um falso igualitarismo, na medida em que o Outro só será igual na medida em que se despojar de tudo aquilo que constitui sua especificidade. Implica, inclusive, uma anulação do Alter e uma desnecessidade de contato e comunicação, ao defini-lo como igual ao Ego.

O direito à igualdade somente sucede ponderando a sociedade plural, portanto, as minorias aspiram o respeito e batalham pelo reconhecimento do direito à diferença. Ademais, a luta por reconhecimento e respeito das identidades e diferenças culturais é tão importante quanto a luta por recursos econômicos e poder político, e as duas precisam ser abordadas em uma teoria vasta de justiça social para que assim exista uma sociedade equilibrada (Fraser, 2008).

Observa-se que a igualdade é essencial para a sociedade, por isso consta de forma expressa no texto da CF/88, contudo, uma sociedade rica em diversidade como é a sociedade brasileira, aguarda bem mais que a igualdade; almeja-se igualmente a consideração do direito à diferença, a celebração da diversidade.

Lembra Jeanne Ambar (2024, p. 114) que é constitucional a aplicação da lei do feminicídio para mulheres transexuais e travestis, necessitando o Judiciário excluir a expressão "sexo feminino" por "gênero feminino" na aludida lei para promover o exercício da cidadania desta classe de maneira "equânime, com condições dignas, garantindo a visibilidade e representatividade, colaborando para que o preconceito e a discriminação cheguem ao fim".

Por sua vez, nos Estados Unidos, o governo de Donald Trump tenta de todas as maneiras minar a existência de pessoas trans. Um magistrado americano, inibiu o governo de transferir uma detenta transexual para um presídio masculino. A deliberação do juiz de suspender a transferência também determinou que a detenta continuasse a receber o auxílio de afirmação de gênero. (CNN Brasil, 2025)

Após sua posse, o presidente Donald Trump afirmou que seu governo reconheceria apenas dois gêneros, sendo eles: feminino e masculino. Em seguida, assinou normas que revogaram direitos das minorias sexuais, atingindo principalmente pessoas trans. Essa política discriminatória gerou medo, tristeza e ataques de pânico entre brasileiros residentes nos Estados Unidos (Pilagallo, 2025).

Uma brasileira relatou que essa medida busca apagar a identidade e excluir a existência dessas pessoas. Fica evidente que o governo Trump representa um obstáculo significativo, especialmente por propor um retrocesso nos direitos humanos (Pilagallo, 2025).

O presidente Donald Trump, também firmou um decreto que veda que atletas transgênero participem em esportes femininos. O governo Trump sustenta que a restrição tem o escopo de garantir que os esportes continuem "justos" e "seguros para as mulheres". (Poder360, 2025)

A título de informação, menciona-se aqui que, enquanto o atual governo brasileiro continua incluindo pessoas transgênero em todos os setores, inclusive com políticas afirmativas para processo seletivo especial em universidades públicas, as Forças Armadas dos Estados Unidos não admitirão mais que pessoas trans se alistem e deixarão de efetuar ou promover procedimentos conexos à transição de gênero para membros do serviço militar.

A decisão do atual governo americano vai de encontro à pesquisa da Gallup divulgada em 10/2/25 (UOL apud Reuters, 2025), segundo a qual, 58% dos americanos são favoráveis à permissão que indivíduos abertamente trans sirvam nas Forças Armadas.

3. Identidade de gênero e acolhimento das pessoas transgênero pelo Conselho Federal de Medicina

Hodiernamente, a identidade de gênero é tida como uma construção, portanto, não se restringe ao feminino e ao masculino.

As sexualidades dissidentes não acompanham um sistema, "são vidas que inventam novos modos de existencialização, que se compõem através de outros modos de subjetivação, logo, escapam dos processos de normatização, captura e engessamento identitário". (Barreto, 2018, p. 33)

De tal modo,

Através de processos culturais, definimos o que é - ou não - natural; produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros - feminino ou masculino - nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade - das formas de expressar os desejos e prazeres - também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade (Louro, 2007, p.11 apud Barreto, 2019).

Cumpre aqui ressaltar a etimologia da palavra gênero, consoante Rodrigo da Cunha Pereira (2018, p. 389): "Empregado como conceito pela primeira vez em 1964, por Robert Stoller, serviu inicialmente para distinguir do sexo no sentido anatômico) da identidade (no sentido social ou psíquico)." Nesse sentido, logo, "o gênero designa o sentido (social ou psíquico) da identidade social, enquanto o sexo define a organização anatômica da diferença entre o macho e a fêmea."

Nota-se que a identidade de gênero não está fundamentalmente conexa com o sexo instituído com o nascimento. De tal modo, a criança pode nascer com o sexo masculino, por exemplo e, se identificar com o gênero feminino ou masculino, indicando que, as pessoas são igualmente produtos do aspecto social e não somente dos aspectos biológicos (Reis, 2021).

Inclusive, a desigualdade foi reforçada, justamente quando se edificou "no patriarcalismo a suposta superioridade do homem em relação à mulher, inclusive uma divisão sexual do trabalho, relegando às mulheres tarefas domésticas sem atribuição de um conteúdo econômico." (Pereira, 2018, p. 391).

Ao ressaltar a importância do Dia Internacional da Visibilidade Trans, dia 31 de março, Carla Watanabe (2023) assinala que invisibilizar a população trans, gera nas pessoas a impressão de que esta população não existe, de tal modo, a visibilidade tem como finalidade exibir que essas pessoas existem e fazem jus à dignidade (IBDFAM, 2023). Registra ainda:

No caso das pessoas trans, nossas lutas versam sobre o mais básico dos direitos, que é o de existir. Nossa história é apagada desde o momento que assumimos a autêntica identidade de gênero. Somos expulsas da família, da escola, do emprego e do círculo de amigos, que nos rejeitam por termos cruzado a fronteira intransponível do gênero. Como resultado, nós nos tornamos ininteligíveis, ou seja, o outro não nos reconhece como humanos, como um igual. Ao contrário, somos transformadas em 'seres abjetos', que podem ser ridicularizados nos púlpitos dos parlamentos, que são alvejados por insultos nas ruas e que merecem toda sorte de escárnio por ocupar 'indevidamente' o lugar do homem ou da mulher 'de verdade (IBDFAM, 2023).

Lembre-se aqui que, o Poder Judiciário faz uso de determinados princípios internacionais, como sobrevém com os julgamentos do STF ao valer-se dos Princípios de Yogyakarta, que em seu prelúdio alvitra a propósito da identidade de gênero:

 "identidade de gênero" como estando referida à experiência interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, que pode, ou não, corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo-se aí o sentimento pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive o modo de vestir-se, o modo de falar e maneirismos (Yogyakarta, 2006).

Assim sendo, retirar da pessoa o acesso ao conhecimento sobre a identidade de gênero é violar seus direitos fundamentais. Destarte:

verifica-se que a identidade de gênero é essencial para que as pessoas possam se conhecer e assim viver livremente os seus desejos, sem a limitação estatal ou de outros indivíduos, já que se trata de um direito humano fundamental, encontrado tanto na norma jurídica interna, como na internacional, portanto, a análise de gênero e sexualidade é essencial para possibilitar o desenvolvimento da personalidade, bem como evitar qualquer tipo de discriminação negativa e preconceito decorrente da orientação sexual. (Santana; Vieira, 2024, p. 159)

Esclareça-se que "transexual é a pessoa que tem a convicção que pertence ao gênero oposto ao designado ao nascimento, deste modo, rejeita o órgão genital e, na maioria das vezes, deseja realizar cirurgias e/ou acompanhamento hormonal" (Vieira, 2019).

Por sua vez, o CFM - Conselho Federal de Medicina por meio da resolução 2.265/19, delibera no art. 1º que "Compreende-se por transgênero ou incongruência de gênero a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento". Frise-se aqui que, o CFM reconhece às pessoas transgêneras o acesso integral à saúde, desde a acolhida inicial até o período pós-cirúrgico.

Por décadas, a transexualidade foi avaliada como um transtorno mental, porquanto classificada como desordem mental na Classificação Internacional de Doenças, o CID. 10, porém, com a nova classificação, desempenhada pela OMS - Organização Mundial da Saúde, a CID 11, em vigor desde 2022, mantém a transgeneridade dentro da incongruência de gênero, como um problema relacionado à saúde.

Presentemente, é permitida a realização de procedimentos cirúrgicos para afirmação de gênero a pacientes maiores de 18 anos. Contudo, frisa-se aqui que a pessoa transexual não é obrigada a se submeter a procedimentos médicos para ter acesso aos seus direitos.

Criança púbere (ou o adolescente), após aprovação da equipe, poderá realizar o bloqueio puberal, prática médica que propende cessar a produção de hormônios sexuais, de tal modo que não haverá o desenvolvimento de caracteres sexuais ligados ao sexo biológico. O bloqueio puberal é significativo, pois restringirá a chance de uma cirurgia corretiva no futuro (CFM, 2019).

Enfatiza-se aqui que as pessoas transgêneras possuem os mesmos direitos das pessoas cisgêneros, especialmente no que diz respeito ao planejamento familiar, como assinala a CF/88, uma vez que não há qualquer comportamento ou desvio na personalidade que subtraia das pessoas trans o exercício da paternidade/maternidade. Assim, como assevera Tereza Vieira:

O preconceito prejudica essas pessoas que desejam oferecer segurança jurídica, amor e afeto às crianças, sendo que o operador do direito precisa se livrar desta roupagem preconceituosa pautada na moral religiosa para garantir a efetivação da dignidade humana, portanto, evidente o direito de formação familiar das pessoas transgêneras decorrentes da adoção e da reprodução assistida (Vieira, 2023).

Apesar da luta incessante das pessoas trans pelo reconhecimento dos seus direitos fundamentais, percebe-se que o Poder Público ainda não oferece proteção suficiente para que estas pessoas não sofram discriminação e consigam sair da situação de vulnerabilidade.

4. Responsabilidade do Estado e o STF

Dentre os objetivos fundamentais elencados na CF/88, art. 3º, o inciso III perquire erradicar as desigualdades sociais, e o inciso IV dita que o Estado precisa promover o bem de todos, sem qualquer tipo de preconceito (BRASIL, 1988), versando, assim, sobre a igualdade material.

Ressalte-se que, conforme dispõe o art. 5º, da CF, todos são iguais perante a lei, portanto, todos têm direito à igualdade de direitos, de tal modo, todas as identidades de gênero carecem ser abrigadas pelo Estado, uma vez que a identidade de gênero é a expressão da personalidade humana, assim, compete ao Estado assegurar toda a proteção às pessoas transexuais, como acompanhamento psicológico, tratamento médico para aqueles que pretendem efetuar o procedimentos cirúrgicos, alteração do nome e do gênero em documentos (STF, 2021).

A ADIn - Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275 - a qual propôs a alteração do nome e gênero de pessoas transexuais no registro civil, foi julgada em 2018 com o desígnio de interpretar o art. 58, da lei 6015/79 à luz da CF/88, porquanto aos tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, teve êxito e conseguiu o reconhecimento do direito de as pessoas transgêneras substituírem o prenome e o "sexo  registral" independente da cirurgia de transgenitalização. Vide a seguir, a ementa da decisão do STF:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNERO. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL. POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES. 1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. 4. Ação direta julgada procedente. (Brasil, 2018).

Evidentemente, enquanto advogada militante em São Paulo, dezenas de anos antes desta honorável decisão do STF, já vínhamos obtendo o deferimento das petições que reivindicavam o direito das pessoas trans à adequação do nome e do gênero. Contudo, havia casos, nos anos 1990, em que o processo demorava três anos ou mais. Somente após 2010 é que os processos passaram a ser mais céleres, durando poucos meses.

O fato é que, após 1º/3/18, as normas sobre registro civil no Brasil vêm se tornando mais claras e inclusivas. O provimento 152/23, altera o CNN/CN/CNJ-Extra - Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial, instituído pelo provimento 149, de 30/8/23, para aprimorar as regras de averbação de alteração de nome, de gênero ou de ambos de pessoas transgênero, permitindo que os pedidos sejam feitos em qualquer cartório ou ofício de RCPN - Registro Civil das Pessoas Naturais. Desde 1º/3/18, não há mais necessidade de autorização judicial. Veja-se abaixo:

Art. 516. Toda pessoa maior de 18 anos de idade completos habilitada a` pra'tica de todos os atos da vida civil podera' requerer ao ofi'cio do registro civil das pessoas naturais (RCPN) a alterac¸a~o e a averbac¸a~o do prenome e do ge^nero, a fim de adequa'-los a` identidade autopercebida. 

§ 1.o A alterac¸a~o referida no caput deste artigo podera' abranger a inclusa~o ou a exclusa~o de agnomes indicativos de ge^nero ou de descende^ncia. 

§ 2.o A alterac¸a~o referida no caput na~o compreende a alterac¸a~o dos nomes de fami'lia e na~o pode ensejar a identidade de prenome com outro membro da fami'lia. 

§ 3.o A alterac¸a~o referida no caput podera' ser desconstitui'da na via administrativa, mediante autorizac¸a~o do juiz corregedor permanente, ou na via judicial. 

Art. 517. A averbac¸a~o do prenome, do ge^nero ou de ambos podera' ser realizada diretamente no ofi'cio do Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN ) onde o assento foi lavrado. 

Para'grafo u'nico. O pedido podera' ser formulado em ofi'cio do RCPN diverso do que lavrou o assento; nesse caso, devera' o registrador encaminhar o procedimento ao oficial competente, a`s expensas da pessoa requerente, para a averbac¸a~o pela Central de Informac¸o~es do Registro Civil (CRC) (CNJ, 2023).

Destarte, conforme a Arpen-Brasil - Associac¸a~o dos Registradores de Pessoas Naturais, o pedido para a retificac¸a~o de ge^nero ou nome pode ser feito em qualquer um dos 7.660 Carto'rios de Registro Civil do Brasil, de onde o procedimento sera' encaminhado ao Carto'rio que registrou o nascimento da pessoa.

O STF também efetuou o julgamento do mandado de jnjunção 4.733, sopesando a omissão do Congresso Nacional em não legiferar sobre as condutas ofensivas e discriminatórias decorrentes da orientação sexual. Assim, o STF deliberou pelo  emprego da lei 7.716/89 enquanto o Congresso Nacional não legislar a propósito da matéria.

Eis abaixo, um fragmento da decisão:

[...] É atentatório ao Estado Democrático de Direito qualquer tipo de discriminação, inclusive a que se fundamenta na orientação sexual das pessoas ou em sua identidade de gênero. 2. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero e a orientação sexual. 3. À luz dos tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil é parte, dessume-se da leitura do texto da Carta de 1988 um mandado constitucional de criminalização no que pertine a toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. 4. A omissão legislativa em tipificar a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero ofende um sentido mínimo de justiça ao sinalizar que o sofrimento e a violência dirigida a pessoa gay, lésbica, bissexual, transgênera ou intersex é tolerada, como se uma pessoa não fosse digna de viver em igualdade. A Constituição não autoriza tolerar o sofrimento que a discriminação impõe. [...] (Brasil, 2019).

Entendeu o STF que a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, bem como qualquer forma de discriminação, é infausta, porque arranca das pessoas a justa expectativa de que possuam igual valor. 

5. Violência obstétrica contra homens transgêneros

O tratamento dispensado aos homens trans que dão à luz tem sido objeto de grande debate, uma vez que estes reclamam da atuação desrespeitosa e abusiva perpetrada em alguns hospitais ou casas de saúde durante a gestação ou parto. As reclamações concernem à nomeada violência obstétrica, ou seja, a ação comportamental perpetrada por profissionais de saúde que não reverenciam a integridade (física, mental e social) dos pacientes.

Determinados componentes de equipes de saúde emitem comentários descabidos sobre a identidade de gênero e o processo reprodutivo em pessoas trans, disseminando-os, desnecessariamente. Aludidas práticas passaram a ser avaliadas como "violência". No que diz respeito aos homens trans, as apreciações se pautam no tratamento "feminino", como "a mãe", "a parturiente", "a paciente", "a gestante" (Vieira, 2023).

A desumanização do cuidado confirma o despreparo dos profissionais com a pessoa trans, no extraordinário momento da chegada de um filho. Com o nome e o gênero já alterados, por que a persistência em tratá-lo no feminino? Evidentemente, a pessoa trans não perdeu a sua autonomia ou aptidão de deliberar livremente sobre o seu corpo e sua sexualidade. Um conflito negativo é ocasionado na qualidade de vida da pessoa trans, produzindo sentimentos de perda de autoestima ou originando transtorno de estresse pós-traumático, podendo impactar no acompanhamento ginecológico, obstétrico, induzindo à desistência e à recusa de cuidados médicos (Vieira, 2023).

Aos poucos as minorias sexuais vão conquistando seus direitos, porém, pela via judicial. O Poder Legislativo não tem conseguido aprovar nenhuma lei que beneficie a comunidade LGBTQIA+ contra a desumana desigualdade cotidiana, garantindo mais segurança às minorias sexuais (Favreto; Santana; Vieira, 2021).

Por fim, reafirma-se que as pessoas transgênero têm os mesmos direitos das pessoas cisgêneros e incumbe ao Estado garantir a inclusão social dessas pessoas no meio social, sob pena de o Estado ser responsabilizado por não assegurar uma concretização total dos direitos fundamentais circunscritos na CF/88.

6. Conclusão

As pessoas transgêneras são pessoas que buscam o reconhecimento em diversos campos do Direito, sopesando a necessidade de obter, pelo menos, o mínimo essencial e o direito a oportunidades.

No Brasil não há uma legislação específica que tutele explicitamente todos os direitos das pessoas transgênero, porém, existem normas no ordenamento jurídico que protegem seus direitos. O CFM, por sua vez, através de uma resolução, regula pontos relacionados ao acolhimento e procedimentos destinados às pessoas transgêneras.

O Poder Legislativo brasileiro tem sido omisso sobre tais questões, deixando a cargo do Poder Judiciário a efetivação dos direitos fundamentais.

Hoje, pessoas trans são mais manifestas na sociedade e mais bem compreendidas, pois houve um progresso expressivo no mundo ocidental, objetivando a ampliação da proteção legal e o reconhecimento de seus direitos humanos. Contudo, cotidianamente, as pessoas trans ainda permanecem sendo alvo de violência, discriminação e insegurança.

Parece-nos que, reverenciar a dignidade humana, a integridade física e psicológica e a autonomia pessoal das pessoas trans é o único caminho que permite respeitar os direitos humanos.

No Brasil, desde 1997, já ocorre o reconhecimento da eticidade da realização da cirurgia de afirmação de gênero pelo CFM. De igual modo, desde março de 2018 o STF já autoriza a adequação do nome e do gênero, independente de autorização judicial, cirurgias ou terapias psicológicas, permitindo que o indivíduo vá diretamente ao Cartório e solicite a alteração de seus documentos, admitindo assim a autodeclaração. Assim, o Direito e a medicina deram-se às mãos para tutelar os direitos das pessoas transgêneras.

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1 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008

2 AMBAR, Jeanne Carla Rodrigues. O assassinato da mulher transexual e travesti. Londrina: Thoth, 2024

3 BARRETO, Daniele Jardim. Estudos de gêneros e suas implicações nas psicologias. In_Transgêneros, organizado por Tereza Rodrigues Vieira. Brasília: Zakarewicz, 2019

4 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Reconhecimento e direito à diferença: teoria crítica, diversidade e a cultura dos Direito Humanos. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 104, p. 551-565, 2009. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67869. Acesso em 23 abr. 2023.

5 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 24 abr. 2023

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Direito das pessoas LGBTQQIAP+ . Cadernos de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: concretizando direitos humanos. CNJ, Brasília. 2022.

7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4.275. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749297200. Acesso em: 26 abr. 2023.

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção nº. 4.733. Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, DF, 2019. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753957476. Acesso em: 26 abr. 2023.

9 CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº. 149/2023. Brasília, DF, 2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5243. Acesso em: 13 fev. 2025

10 CNN Brasil. Juiz impede governo Trump de transferir detenta transexual para presídio masculino. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/juiz-impede-governo-trump-de-transferir-detenta-trans-para-prisao-masculina. Edição de: 31 jan. 2025

11 CONSELHO Federal de Medicina. Resolução CFM nº. 2.265/2019. Brasília, DF, 2019. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2265. Acesso em: 30 mar. 2023.

12 CRP-PR. Diferença não é doença: OMS retira transexualidade da lista de transtornos mentais. 2018. Disponível em: https://crppr.org.br/diferenca-nao-e-doenca-oms-retira-transexualidade-da-lista-de-transtornos-mentais/. Acesso em: 25 abr. 202

13 DIMOULIS, Dimitri. Direito de igualdade: antidiscriminação, minorias sociais, remédios constitucionais. São Paulo: Almedina, 2021

14 FAVRETO, Gabriela Schons; SANTANA, Natan Galves; VIEIRA, Tereza Rodrigues. Minorias sexuais e os princípios de Yogyakarta: Evolução dos direitos humanos internacionais. Revista Prática Forense, n 51, março/2021

15 FRASER, Nancy. Redistribuição, reconhecimento e participação: por uma concepção integrada da justiça. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia. (Coord.) Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 167-189

16 IBDFAM. Dia Internacional da Visibilidade Transgênero reafirma o direito de existir das pessoas trans. Assessoria de Comunicação do IBDFAM. 2023. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/10643/Dia+Internacional+da+Visibilidade+Transg%C3%AAnero+reafirma+o+direito+de+existir+das+pessoas+trans+. Acesso em: 24 abr. 2023

17 LOURO, G. O corpo educado - pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007

18 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Princípios De Yogyakarta. 2006. Disponível em:

19 PEREIRA, Rodrigo da Cunha Pereira. Dicionário de direito de família e sucessões. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018

20 PILAGALLO, Sofia. Do medo à luta, brasileiros trans nos EUA reagem à era Trump: 'vamos desmantelar o ódio'. Brasil de Fato, 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/01/28/do-medo-a-luta-brasileiros-trans-nos-eua-reagem-a-era-trump-vamos-desmantelar-o-odio. Acesso em: 15 fev. 2025

21 PODER 360. Trump proíbe mulheres trans em esportes femininos. https://www.poder360.com.br/poder-internacional/trump-proibe-mulheres-trans-em-esportes-femininos/. 2025

22 REIS, Toni. Manual de comunicação LGBTI+. 2021. http://labds.eci.ufmg.br/bitstream/123456789/92/1/01.%20Manual%20de%20cominca%c3%a7%c3%a3o%20LGBT%20%2b%20Autor%20Grupo%20Dignidade.pdf Acesso em 23 abr. 2023.

23 RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação: discriminação direita, indireta e ações afirmativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008

24 SANTANA, Natan Galves; VIEIRA, Tereza Rodrigues. Entre reconhecimento e redistribuição: a luta das pessoas trans pelo direito fundamental à dignidade. In: CUNHA, Leandro Reinaldo da; MATOS, Ana Carla Harmatiuk; ALMEIDA, Vitor. Responsabilidade civil, gênero e sexualidades. Indaiatuba: Editora Foco, 2024

25 UOL. FOLHA. Reuters. Pentágono proíbe pessoas trans nas Forças Armadas dos EUA. Washington.10 fev 2025

26 VIEIRA, Tereza Rodrigues. Transgêneros. Brasília: Zakarewicz, 2019

27 VIEIRA, Tereza Rodrigues. A família transexual: algumas reflexões jurídicas e sociológicas acerca da afirmação de gênero. Publicado em 01 mar. 2023. Disponível em:https://www.migalhas.com.br/depeso/382264/a-familia-transexual Acesso em: 07 maio 2023.

Tereza Rodrigues Vieira

VIP Tereza Rodrigues Vieira

Pós-Doutora em Direito Université Montreal.Doutora em Direito PUC-SP. Especialista em Bioética Fac. Medicina da USP. Docente Mestrado em Direito Processual e graduação em Medicina e Direito na UNIPAR.

Natan Galves Santana

Natan Galves Santana

Doutorando em Direito pela ITE/CEUB. Mestre em Direito pela UNIPAR. Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões. Professor universitário na FACO e na UNIMEO/CTESOP. Advogado.

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