Os riscos da subsunção da norma em abstrato ao fato concreto pelo Judiciário: Tratamento experimental oncológico de Car-T Cell
O fenômeno da subsunção no Direito busca aplicar normas a casos concretos, mas, muitas vezes, a norma é adaptada ao fato, como em decisões sobre tratamentos como o Car-T Cell.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025
Atualizado em 18 de fevereiro de 2025 13:57
O fenômeno da subsunção do fato à norma no âmbito jurídico confere aos magistrados a segurança de adequar uma conduta ou fato concreto à uma norma jurídica. Essa ferramenta hermenêutica traz, ou deveria trazer, uma uniformização das decisões judiciais sobre casos semelhantes, uma vez que a norma aplicada deveria ser a mesma para condutas iguais. Todavia, o que se percebe é uma inversão desse fenômeno, passando muitas vezes a norma a se adequar ao caso concreto.
Em inúmeros casos observam-se decisões cuja fundamentação legal é construída para justificar um entendimento prévio do julgador, ou seja, se buscam normas, entendimentos, princípios que se enquadrem no fato típico e sirvam de argamassa ao decisório, e não o inverso. O exercício normativo muitas vezes somente é realizado após a opinativo pessoal do aplicador da lei, indo de encontro ao princípio da legalidade que norteia o exercício do magistério na aplicação da lei ao caso concreto da forma em que fora prevista pelo legislador.
A prolação de decisões por julgadores que fogem ao princípio da legalidade termina por invadir a competência do legislador, posto que atribui interpretações e aplicações da norma legal de acordo com suas próprias convicções, perde-se assim a objetividade do julgamento em afronta direta ao ordenamento jurídico pátrio.
Nesse sentido, o que se vê de mais comum quando se tratam de demandas da saúde, envolvendo tratamentos como o câncer, que ameaçam a vida, são as decisões se pautarem de imediato nos princípios constitucionais que salvaguardam a vida por meio da preservação da saúde, deixando de lado muitas vezes uma análise mais criteriosa, e essencial, das peculiaridades do caso e da pertinência técnica e regulamentar do tratamento. É o caso recente do tratamento milionário experimental de Car-T Cell.
O tratamento constitui uma terapia inovadora e experimental antineoplásica imunocelular autóloga de alta complexidade e passível de diversas intercorrências médicas também de alta complexidade. Em síntese, são coletadas as células "T" do paciente no Brasil e, na sequência, essa amostra passa por um processo de congelamento e é enviada para o exterior, para criação da medicação e inserção da informação genética nas células, para só então retornarem ao Brasil e serem devolvidas ao corpo do paciente, mediante processo de infusão.
Diante da complexidade do tratamento, é necessário que o paciente preencha todos os critérios de elegibilidade, além de não se enquadrar no rol das hipóteses de exclusão, devendo ser obrigatório e imprescindível responder a todos esses requisitos cumulativos. É que, por ser um tratamento experimental com resultados clínicos ainda incipientes, sem, ainda, pesquisa de longo prazo aplicada, a comunidade cientifica ainda não comprovou a segurança do tratamento, sendo passível inclusive de levar o paciente à óbito, conforme bula do medicamento.
Contudo, mesmo diante de uma série de critérios e análises técnicas prévias para iniciar um tratamento tão complexo e sem robustez de resultados clínicos, o Judiciário vem autorizando o custeio do tratamento pelos planos de saúde em casos que sequer se averigua o preenchimento dos requisitos obrigatórios, pondo em risco a vida do paciente sob o fundamento generalista do princípio à vida e à saúde, ou seja, enquadrando a norma ao caso concreto.
Ocorre que, com essas decisões sem a devida subsunção do fato concreto à norma em abstrato, o Judiciário forma precedentes que põem em risco tanto à saúde dos beneficiários, quanto à saúde financeira das operadoras de saúde, uma vez que está sendo autorizado um procedimento ainda em teste, de custos milionários, sem que tenha sequer cobertura obrigatória prevista pela ANS.
É compreensível que a ANS não tenha incluído um tratamento em seu rol de procedimentos quando se é de caráter experimental, ou seja, não há garantias de segurança e eficácia, não podendo uma entidade representativa da saúde se comprometer com tanta incerteza. Ainda, corroborando com essa ausência de previsão, a própria lei 9.656 em seu art. 10 permite às operadoras de saúde a exclusão de cobertura aos tratamentos experimentais. É nítida a preocupação do legislador em garantir a preservação da saúde e limitar os riscos das operadoras frente às inovações da medicina que ainda não tenham a devida comprovação.
Diante de um fato concreto como a solicitação de um tratamento experimental de alto custo, sem cobertura obrigatória pela ANS, sem garantia de resultados eficazes e, ainda, sem a pertinência técnica verificada, é essencial que o caminho hermenêutico a ser seguido pelos magistrados seja a subsunção do fato à norma, isto é, analisar a lei 9.656, que rege a saúde suplementar, observar às normativas da ANS e considerar os pareceres médicos para que, após a análise do conjunto normativo, adeque o fato concreto ao conjunto legal que rege nosso ordenamento. É primordial que o judiciário atue não com suas convicções pessoais, mas com a aplicação da lei vigente para que assim se mantenha o equilibro jurídico das relações.

Maria Eduarda Loureiro
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 2022. Advogada inscrita na OAB - Seccional do RN sob o n° 20494. Pós-graduanda em Processo Civil pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UNI-RN). Atuante no Contencioso Cível, especialmente nas áreas de Direito Securitário defendendo os interesses de clientes na esfera da saúde suplementar