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A autonomia e a liberdade religiosa nas decisões médicas: Análise dos temas com repercussão geral 1.069 e 952 do STF

Os acórdãos do STF nos Temas 1.069 e 952 reforçam a autonomia individual e a liberdade religiosa ao permitir a recusa de transfusões por Testemunhas de Jeová.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Atualizado em 19 de fevereiro de 2025 07:29

Os acórdãos do STF nos Temas com repercussão geral 1.069 e 952 constituíram marcos importantes na interseção entre a liberdade religiosa e os direitos à saúde e à vida. Ambos os casos envolvem membros da religião Testemunhas de Jeová que, por convicções religiosas, recusam transfusões de sangue. Este artigo analisa os principais elementos dessas decisões, com citações dos votos dos ministros e respostas a questões cruciais sobre o tema, bem como o posicionamento dos órgãos governamentais.

Os acórdãos do STF proferidos nos RE 979.742 e 1.212.272 sob a sistemática da repercussão geral (mecanismo que visa uniformizar a interpretação das normas constitucionais, garantindo segurança jurídica e celeridade processual), possuem eficácia imediata e vinculante.1

Pontos principais dos acórdãos

  1. Liberdade religiosa e autonomia individual

No RE 979.742, o STF decidiu que as Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimentos médicos que envolvam transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa. O ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, afirmou: "A dignidade humana exige o respeito à autonomia da pessoa para tomar decisões sobre a sua saúde e o seu corpo".

  1. Possibilidade de recusa mesmo em iminente risco de morte

Os acórdãos do STF nos casos RE 979.742 e RE 1.212.272 deixam claro que a recusa de transfusão de sangue por parte das Testemunhas de Jeová deve ser respeitada mesmo em situações de iminente risco de morte. O ministro Gilmar Mendes destacou que "Desse modo, adotando a mesma lógica do Tribunal Constitucional alemão, que compreendeu, de certa forma, que a liberdade religiosa tem eficácia para condicionar a incidência do tipo penal de omissão de socorro, entendo, de igual forma, que a autodeterminação e a liberdade de crença, quando houver manifestação livre, consciente e informada de pessoa capaz civilmente em sentido contrário à submissão ao tratamento, impedem a atuação forçada dos profissionais de saúde envolvidos, ainda que presente risco iminente de morte do paciente".

O ministro Zanin pontuou: "Diante disso, se o paciente for adulto e capaz, tiver sido devidamente informado pelo médico acerca da enfermidade, dos possíveis tratamentos e dos riscos inerentes a eles e a sua vontade não estiver eivada por quaisquer vícios, deve-se reconhecer o seu direito de recusar intervenções médicas, ainda que medicamente indicadas, e de consentir apenas parcialmente no tratamento proposto pelo profissional de saúde, delimitando quais intervenções ele aceita ou não."

  1. Custeio de tratamentos alternativos

O STF também determinou que o poder público deve custear tratamentos médicos alternativos que respeitem as convicções religiosas do paciente, mesmo que isso implique a realização do tratamento fora do domicílio do paciente. O Estado tem o dever de oferecer tratamentos alternativos que não incluam transfusão de sangue, em respeito à fé religiosa do paciente. No voto do ministro Luís Roberto Barroso, ele destacou a necessidade de custeio do Tratamento Fora de Domicílio (TFD) na hipótese de indisponibilidade na localidade do paciente de tratamentos alternativos à transfusão de sangue. O ministro Barroso enfatizou que, embora alguns tratamentos alternativos à transfusão de sangue já sejam oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), eles ainda não estão amplamente disponíveis em todo o território nacional. Ele afirmou: "O poder público deve adotar medidas para, progressivamente, tornar esses procedimentos disponíveis e capilarizados no país. Na hipótese em que os métodos de tratamento no local de residência não forem adequados, será cabível o tratamento fora do domicílio, conforme as normas do Ministério da Saúde".

  1. Diretivas antecipadas de vontade

No RE 1.212.272, o STF reafirmou que a decisão do paciente adulto de recusar transfusões de sangue pode ser formalizada por meio de diretivas antecipadas de vontade. O ministro Alexandre de Moraes destacou: "No Brasil, em que pese inexistir lei expressa, tanto o testamento vital, quanto a procuração para cuidados médicos são admitidas. A resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina (CFM) normatiza o respeito às Diretivas Antecipadas de Vontade pelos profissionais de saúde no Brasil, regulamentado o modo como os médicos devem agir frente às decisões previamente expressas pelos pacientes ..." e ele concluiu a ideia: " Já temos isso, Presidente e Colegas, já temos isso na legislação em relação à doação de órgãos. As pessoas podem antecipadamente dizer da sua vontade de doar os seus órgãos, isso consta na cédula de identidade, no RG. Então, nós já temos aqui uma espécie desse testamento vital antecipado. Desde que seja maior e capaz, parece-me que não há nenhum problema em relação a isso." O ministro relator Gilmar Mendes afirmou: "Vale dizer, não se pode admitir interpretação que possibilite, em tais circunstâncias, a atuação médica contra a vontade do paciente, após expressa recusa (veiculada, inclusive, por diretivas antecipadas de vontade)."

  1. Objeção de consciência

Quanto à objeção de consciência, o STF reconheceu que médicos podem se recusar a realizar procedimentos que vão contra suas convicções pessoais. No entanto, o Estado e os hospitais públicos não podem invocar objeção de consciência para negar tratamento alternativo aos pacientes. A objeção de consciência é um direito individual do médico, mas não pode ser estendida ao Estado ou às instituições de saúde.

Ainda neste respeito, no seu voto, o ministro Cristiano Zanin, afirmou: "Em situações de emergência e urgência, contudo, nas quais não há tempo hábil para encaminhar o paciente para outro profissional sem que haja riscos iminentes para a sua saúde ou para a sua vida, o médico tem o dever de agir e realizar o tratamento conforme as convicções religiosas do sujeito a ser tratado, na medida do possível. Assim, se o paciente precisa ser tratado com urgência e recusa a transfusão de sangue, o médico deverá realizar o tratamento sem a transfusão, de acordo com os recursos disponíveis para o procedimento, e após informar o paciente sobre os riscos inerentes à recusa parcial. Nesses casos, não é possível dar preponderância ao direito do médico à liberdade em detrimento da saúde ou vida do paciente, sendo possível, inclusive, responsabilizá-lo por omissão imprópria caso deixe de tratar e o paciente, que deseja ser tratado, venha a falecer (art. 121 c/c art. 13 §2º, b, Código Penal)."

Os acórdãos deram respostas a perguntas cruciais:

1.      O profissional da saúde que realiza transfusão de sangue em paciente adulto e capaz, contra a sua vontade expressa, poderia incorrer nas penas do art. 146, §3º do Código Penal?

Sim. O art. 146, §3º do Código Penal trata do crime de constrangimento ilegal, que inclui a prática de ato médico contra o consentimento do paciente. No contexto dos acórdãos analisados, a atuação do médico contra a vontade informada e voluntária do paciente não se enquadra na exclusão de ilicitude do art. 146, § 3º, inciso I do CP, podendo configurar constrangimento ilegal. Para o ministro Zanin: "Considerando que o art. 146§ 3º, I, do Código Penal não possibilita a realização de intervenções médicas contra a vontade do paciente após uma recusa expressa, mas apenas sem o seu consentimento, entendo que o dispositivo somente é aplicável às situações em que não é faticamente possível obter o consentimento do paciente."

2.      O respeito à recusa de transfusão de sangue configura omissão de socorro?

A omissão de socorro, prevista no art. 135 do Código Penal, ocorre quando alguém deixa de prestar assistência a uma pessoa em perigo, quando possível fazê-lo sem risco pessoal. No caso de um paciente adulto e capaz Testemunha de Jeová que recusa transfusão de sangue, a conduta do médico que respeita tal recusa e trata o paciente sem transfusão de sangue não configura omissão de socorro, conforme decidido pelo STF. O ministro Gilmar Mendes destacou: "Registro, nesse contexto, que a atuação médica em respeito à legítima opção realizada pelo paciente não pode ser caracterizada, a priori, como uma conduta criminosa, como omissão de socorro. E preciso que se analise, caso a caso, se todos os meios aceitos pelo paciente foram empregados. ". Neste sentido, o ministro André Mendonça pontuou: "Extraio, nesta hipótese que, uma vez levado em tempo a conhecimento do médico responsável documentação hígida, isto é, que não apenas ateste a religião, mas sua expressa vontade de não se submeter à transfusão de sangue, quaisquer que sejam os riscos de sua recusa, não deverá ser considerada ilícita a inércia do profissional."

Posicionamento dos Órgãos Governamentais

Em nota informativa 763/24 o Ministério da Saúde se posicionou sobre a decisão do STF quanto a questão da transfusão de sangue nos seguintes termos: "Ainda, de acordo com a decisão, as pessoas que recusam determinado procedimento médico por causa da religião têm o direito a tratamentos alternativos que já estejam disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive fora da sua cidade de residência se necessário. Destaca-se que o Ministério da Saúde (MS), enquanto responsável pela Política Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados, forneceu, durante todo o julgamento da ação, subsídios ao STF no que diz respeito às questões técnicas relacionadas ao tema. Importante ressaltar ainda que o Ministério da Saúde já tem como premissa o uso racional do sangue, política mundialmente definida pela OMS, cujo objetivo final é a segurança transfusional dos pacientes e economias de recursos públicos."

E finalizou: "Alguns hemocentros no Brasil já estão implantando o PBM em suas redes e como o uso racional do sangue já faz parte da política desenvolvida por esta Pasta, o MS vem trabalhando para dar visibilidade e disseminar os preceitos do PBM, os quais serão gradativamente incorporados na Hemorrede Pública e nos serviços de assistência à saúde."

Quanto a estes projetos podemos destacar as iniciativas, posteriores à decisão judicial do STF, adotadas pelo Estado de São Paulo e pelo Distrito Federal.

Em São Paulo foi publicada a resolução SS 223, de 13 de setembro de 2024, proveniente do Gabinete do Secretário de Saúde de São Paulo, nos seguintes termos: "Institui no âmbito da Secretaria da Saúde a Comissão Interdisciplinar com o objetivo de desenvolver e implantar o programa de Gestão do Sangue do Paciente (Patient Blood Management PBM), nos equipamentos públicos do Estado de São Paulo."

Já no Distrito Federal, a Secretária de Estado de Saúde emitiu a PORTARIA Nº 593, DE 30 DE DEZEMBRO DE 2024, que criou o Programa de Gerenciamento do Sangue do Paciente - PBM, no Distrito Federal, cujas estratégias são: "I - Fortalecimento dos Comitês Transfusionais Intra-hospitalares; II - Desenvolvimento de protocolos clínicos para promoção das linhas de ação do programa; III - Capacitação obrigatória de residentes médicos, médicos e enfermeiros; IV - Reconhecimento público oficial das instituições e profissionais participantes do programa; V - Disponibilização de alternativas à transfusão nos cenários clínicos e cirúrgicos; VI - Acompanhamento de indicadores e divulgação de resultados; VII - Criação de grupos de trabalho para desenvolvimento de políticas que atendam aos pilares do PBM".

Conclusão

Os acórdãos do STF nos casos RE 979.742 e RE 1.212.272 reforçam, inegavelmente, a importância da autonomia individual e da liberdade religiosa nas decisões médicas. Eles estabelecem precedentes de suma importância para o respeito às convicções religiosas dos pacientes, garantindo que possam receber tratamentos médicos adequados, eficazes e compatíveis com suas crenças.

Não há dúvida de que aqueles que estão praticando políticas públicas, bem como os profissionais de saúde individuais e hospitais que adotam práticas para acolher os pacientes Testemunhas de Jeová estão na vanguarda da modernização médica e em harmonia com o entendimento jurídico expresso pela mais alta Corte do país. Aos demais, o risco da mudança.

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1 O acórdão proferido pelo Plenário do STF tem eficácia imediata e vinculante: "Direito Processual Civil. Agravo interno em reclamação. Aplicação imediata das decisões do STF. Desnecessidade de aguardar o trânsito em julgado. 1. As decisões proferidas por esta Corte são de observância imediata. Portanto, não é necessário aguardar o trânsito em julgado do acórdão paradigma para aplicação da sistemática da repercussão geral. Precedentes. (...)" (STF - AgR Rcl: 30003 SP - SÃO PAULO 0067656-55.2018.1.00.0000, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 04/06/2018, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-116 13-06-2018).

Mychelli de Oliveira Pereira Fernandez

Mychelli de Oliveira Pereira Fernandez

Graduada pela Universidade Estadual do Norte Paraná - UENP. Advogada.

Ricardo Brito Costa

Ricardo Brito Costa

Sócio da área de Contencioso Cível do Arystóbulo Freitas Advogados.

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