O fluxo reverso sob a perspectiva das distribuidoras de energia elétrica
O fluxo reverso trouxe impactos ao setor elétrico. Sob a perspectiva das distribuidoras, é preciso avaliar se o fenômeno assegura o equilíbrio contratual, a sustentabilidade financeira e a conformidade com princípios constitucionais.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025
Atualizado às 09:56
1. Introdução
A geração distribuída ("GD"), regulamentada inicialmente pela resolução normativa ANEEL 482/12 e atualizada por normativos subsequentes1, promoveu mudanças significativas no setor elétrico brasileiro. Ao permitir que consumidores se tornem produtores parciais de energia, o sistema elétrico passou a operar sob a lógica do fluxo reverso, em que a energia excedente é injetada na rede das distribuidoras. Esse novo modelo trouxe impactos relevantes na esfera jurídica, desafiando a estrutura tradicional do setor.
Sob a perspectiva das concessionárias de distribuição, é imperativo avaliar se o marco regulatório vigente assegura o equilíbrio contratual, a sustentabilidade financeira e a conformidade com os princípios constitucionais.
A análise desses aspectos é fundamental para garantir que a expansão da geração distribuída ocorra de forma harmoniosa, sem comprometer os direitos das distribuidoras e, consequentemente, dos consumidores.
2. A natureza jurídica do fluxo reverso e a ausência de remuneração direta
Do ponto de vista prático, o fluxo reverso configura servidão administrativa não remunerada, uma vez que a rede de distribuição é utilizada para escoamento da energia gerada por terceiros (unidades consumidoras com GD), sem contraprestação específica por esse uso.
Conforme estabelecido pela lei 10.848/04 e pela lei 9.074/1995, a remuneração das distribuidoras é proveniente das tarifas cobradas pelo uso do sistema de distribuição e pela comercialização de energia. No entanto, o sistema de compensação de créditos, previsto na resolução normativa ANEEL 1.059/23, permite que os consumidores com GD reduzam significamente suas faturas de energia, sem pagar integralmente pelo uso da infraestrutura de distribuição.
Essa dinâmica é uma clara afronta o princípio da justa remuneração do serviço público (art. 175 da CF/88), uma vez que as distribuidoras arcam com os custos de operação, manutenção e expansão da rede, sem receber uma compensação proporcional pelo seu uso. Como resultado, a sustentabilidade econômica do serviço público de distribuição de energia, essencial para sua continuidade e qualidade, fica comprometida, gerando um desequilíbrio entre os benefícios concedidos aos geradores distribuídos e os encargos suportados pelas concessionárias.
3. A transferência de custos e o risco de subsídio cruzado
A GD cria um cenário de externalidades negativas para as distribuidoras. Como os consumidores com GD pagam menos pela parcela de energia (embora utilizem a rede com a mesma intensidade), os custos fixos do sistema são rateados por uma base menor de consumidores, elevando a tarifa para os demais.
Esse fenômeno contraria o princípio da isonomia tarifária (art. 6º, lei 10.438/02), pois usuários em condições equivalentes passam a suportar encargos desproporcionais.
A ANEEL, ao editar a resolução normativa 1.059/23 (regulamentação da lei 14.300/22), reconheceu parcialmente o problema ao criar a Taxa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD Fio B). No entanto, a solução é insuficiente, pois a taxação não cobre integralmente os custos marginais do fluxo reverso, persistindo o subsídio implícito.
Essa distorção gera um efeito cascata, em que os consumidores sem GD acabam subsidiando indiretamente os que possuem GD, em clara afronta também ao princípio da isonomia (art. 5º, CF/88).
Desse modo, a falta de equidade na distribuição dos custos compromete a justiça social e a eficiência econômica do sistema.
4. A incompatibilidade com o princípio da legalidade estrita e os avanços da lei 14.300/22
Além de tudo que já foi apresentado, a imposição do fluxo reverso sem contraprestação financeira adequada afronta o art. 175 da CF/88, que exige lei específica para a prestação de serviços públicos por particulares. Inicialmente, a GD foi regulamentada por resoluções da ANEEL, sem amparo em lei federal, gerando insegurança jurídica para os contratos de concessão, que previam exclusividade e remuneração tarifária previsível.
A lei 14.300/22 trouxe avanços ao estabelecer um marco legal para a GD, criando a Taxa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD Fio B) para cobrir parte dos custos do fluxo reverso. No entanto, a contraprestação ainda não é integral, mantendo subsídios implícitos e desequilíbrios econômicos para as concessionárias
Apesar de representar um progresso, a lei 14.300/22 não resolveu plenamente a tensão entre a GD e as Concessionárias de Distribuição. Persistem lacunas, como a falta de mecanismos para garantir a cobertura integral dos custos do sistema e a compensação justa pelas externalidades geradas. Essas insuficiências perpetuam violações ao princípio da isonomia e à sustentabilidade do serviço público.
5. A violação aos contratos de concessão
Os contratos de concessão de distribuição de energia elétrica, celebrados sob o regime da lei 8.987/1995, garantem às empresas o direito de explorar o serviço de forma exclusiva em sua área. O fluxo reverso, ao permitir que terceiros utilizem a rede para "vender" energia (ainda que sob forma de créditos), configura interferência unilateral pelo Poder Público, violando o equilíbrio econômico-financeiro original (art. 9º, Lei 8.987/1995).
Essa interferência unilateral no equilíbrio contratual, sem a devida compensação, viola o princípio do equilíbrio econômico-financeiro, que garante a intangibilidade dos contratos de concessão. Quando novas obrigações são impostas às concessionárias sem uma contrapartida financeira adequada, ocorre uma ruptura desse equilíbrio, o que pode comprometer a viabilidade do serviço público de distribuição de energia.
6. A tensão entre livre iniciativa e serviço público concedido
A regulação da GD evidencia o conflito entre a livre iniciativa e a natureza do serviço público concedido. A livre iniciativa, garantida pela Constituição (art. 170, CF/88), não pode ignorar as obrigações das concessionárias, como universalização, continuidade e qualidade dos serviços, em troca de uma remuneração tarifária justa.
O atual modelo de GD, ao permitir que particulares utilizem a infraestrutura das concessionárias sem contraprestação adequada, desequilibra o contrato de concessão, transferindo custos de operação, manutenção e expansão da rede para as distribuidoras, sem a devida compensação. Essa dinâmica viola o equilíbrio econômico-financeiro das concessões, ferindo não apenas o princípio da isonomia entre os agentes do setor, mas também a segurança jurídica dos contratos celebrados sob o regime da Lei nº 8.987/1995.
7. A necessidade de segurança jurídica
Como ensina André Ramos Tavares, "avanço tecnológico não pode sobrepor as bases do regime constitucional brasileiro"2. A GD é benéfica, mas a sua implementação deve respeitar os pilares do serviço público: regularidade, igualdade e continuidade. Sem isso, o setor elétrico encaminhará para uma crise de insolvência regulatória, onde todos perderão.
A segurança jurídica é princípio fundamental para a estabilidade das relações jurídicas e para a confiança dos agentes econômicos. A regulação da GD, ao não observar os princípios constitucionais e legais que regem o serviço público, gera incertezas que podem desincentivar investimentos e comprometer a eficiência do setor.
Dessa maneira, é essencial que a regulação seja clara, previsível e equilibrada, de modo a garantir a sustentabilidade do sistema e a proteção dos direitos de todos os envolvidos.
8. Conclusão
O diagnóstico apresentado revela que o fluxo reverso decorrente da GD traz impactos significativos ao setor elétrico, desequilibrando economicamente as concessões ao transferir custos de infraestrutura para as distribuidoras sem a devida contrapartida.
Além disso, fere princípios constitucionais fundamentais, como isonomia, legalidade e modicidade tarifária, e carece de suporte legal específico, sendo sustentado por atos regulatórios frágeis.
Esses fatores evidenciam a necessidade urgente de medidas que restabeleçam o equilíbrio do sistema e garantam a sustentabilidade de modelo de GD.
A adoção de um marco regulatório mais robusto e equilibrado, que observe os princípios constitucionais e legais, é essencial para garantir a viabilidade econômica do setor e a proteção dos direitos de todos os envolvidos. A regulação de GD deve buscar um equilíbrio entre promoção da inovação e a sustentabilidade financeira do sistema, de modo a garantir a continuidade e a qualidade do serviço de distribuição de energia elétrica.
_____
1 Veja sobre o assunto em: < https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/geracao-distribuida> . Acesso em: 11.fev.2025.
2 TAVARES, André Ramos. Ciência e tecnologia na Constituição. Revista Brasileira de Informação Legislativa, Brasília, v. 44, n. 175, p. 7-20, jul./set. 2007. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/44/175/ril_v44_n175_p7.pdf. Acesso em: 11 fev. 2025.
Gabriel Richer Evangelista
Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira e Talamini Advogados Associados.