O projeto de reforma do Código Civil volta ao ataque
O PL 4/25 visa atualizar o CC/02, mas enfrenta críticas pela falta de debate e pontos controversos sobre a função social do contrato.
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
Atualizado em 13 de fevereiro de 2025 13:44
Há alguns dias foi apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco o PL 4/25, que dispõe sobre a atualização do CC/02 (lei 10.406) e da legislação correlata, que na sua gestão como presidente do Senado havia sido objeto de um anteprojeto de lei preparado por uma comissão de juristas para tanto designados.
Não demorou quase nada para começarem a surgir críticas ao anteprojeto, entre as quais algumas de minha autoria, publicadas neste mesmo Migalhas1, por diversos motivos, os mesmos que se mantêm na sua recente apresentação, agora como projeto de lei. E nessa linha de contestações legitimas já estão aparecendo manifestações contrárias ao texto daquele projeto, como aconteceu com recente artigo de Demétrio Beck da Silva Giannakos e Luciano Benetti Timm2.
Não pode se aceitar que a segunda lei mais importante do país, somente abaixo da CF/88, seja tratada com tanto açodamento, originada de um texto começado do nada e terminado em apenas oito meses. Não se trata de correr para tirar o pai da forca, como dizia-se antigamente, a par de não ter tido a sociedade civil e os empresários (que também foram postos nessa onda) plena oportunidade de apreciação das propostas apresentadas para se manifestarem sobre elas, propondo mudanças que se revelaram extremamente necessárias, se o projeto andar tal como está, não contando com a torcida de muitos juristas de relevo.
O GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial - sob a minha coordenação e com a colaboração dos seus participantes e convidados, se propõe a debater o projeto, sendo este o texto inaugural de uma campanha que é julgada absolutamente imprescindível para que o texto seu texto se torne mais conhecido, a ser analisado e objeto de propostas voltadas para a sua reformulação, de maneira a que não se chegue a um grande estrago em nosso direito, não sendo somente um problema de volta ao passado como afirmaram os dois autores acima citados, mas também em muitos casos, um problema de ideologia jurídica distorcida dos princípios fundamentais da realidade social e empresarial, a exemplo da determinação da nulidade da cláusula contratual que violar a função social do contrato, na forma proposta para o art. 412,§ 2º, que será objeto de futuro artigo desta série, mas fazendo aqui um breve trailer.
No sentido acima, primeiro, proponho dar um prêmio a quem conseguir construir uma definição objetiva da função social do contrato, em abstrato, que possa se tornar um parágrafo do mesmo dispositivo acima, para o fim de orientar o julgador, afugentando-o de uma decisão subjetiva, que é sempre individual e perigosa para a certeza e segurança na aplicação do Direito. A doutrina e a jurisprudência tem mostrado a que veio essa função social, com soluções as mais disparatadas entre si3.
Em segundo lugar, verifica-se o absurdo de se entender que tão somente retirar uma cláusula que compõe um todo contratual, ainda assim se permitirá que o edifício construído pelas partes se mantenha incólume, sem desmoronar, evitando que o programa econômico/jurídico objeto da vontade das partes deixe de atender os objetivos propostos. Ora neste sentido, o contrato na sua integridade pode ser visto como um castelo de cartas. Tirada uma, todo ele vai abaixo.
O segundo problema, entre tantos outros que serão demonstrados nesta série de artigos, concerne ao desconhecimento aparente de que vivemos em uma sociedade que tem mudado de forma extremamente rápida, dando-se o estabelecimento de novas formas de viver, tanto no plano pessoal, como no familiar, como na atividade empresarial. Da geração X (os nascidos entre 1965 e 1980), passamos para a geração Y, integrada pelos millenials (os nascidos entre 1981 e 1999), tendo chegado agora na geração Z (os nascidos a partir de 2000), cada uma com as suas características próprias, cujos efeitos se dão de forma ampla e que criam conflitos da mais variada espécie entre uma e outra. Não sei que nome se dará à geração daqueles que nasceram nos anos recentes e os que estão nascendo agora, no ambiente extremamente disruptivo da inteligência artificial e que viverão sob uma realidade absolutamente nova, na qual as relações interpessoais necessitarão ser erigidas segundo um mínimo legal de objetividade, segurança e certeza. Tarefa para mais de metro, como diziam os caipiras paulistas. Pelo que se percebe, os autores do anteprojeto não pensaram nessa circunstância.
Nesse cenário ainda vivem os pré geração X, que conheceram uma sociedade em grande parte estável, e que podia ser objeto de um regime jurídico apropriado, que a refletia de forma adequada ao seu tempo. Ora, tendo diante de nós gerações cujos parâmetros se alteram tão rapidamente, não seria o caso de se fazer a sua tutela no bojo de um CC - de natureza intrinsicamente conservadora -, devendo ser deixadas as suas necessidades jurídicas para o tratamento por leis ordinárias, que são capazes (ou deveriam ser) de atender mais prontamente os solavancos de uma sociedade em rápida mudança, reconhecendo-se que o tempo do Direito é muito mais lento do que o dos indivíduos, das famílias e das empresas, conscientes de que, como se disse acima, a realidade da inteligência artificial está pondo em xeque muitas das concepções sociais que hoje podem ser consideradas até mesmo superadas.
É imprescindível ter em conta que na mesma época vivem gerações diferentes na sua formação, cada uma delas com os seus anseios próprios e suas necessidades peculiares. Fazer um arranjo de todos esses interesses diversificados debaixo de uma norma substancialmente estática pela sua natureza deveria levar o legislador e pensar mais do que duas vezes na adoção de mudanças jurídicas substanciais.
No plano da amplíssima abrangência do projeto de lei em pauta, verifica-se que ele desce à tutela dos animais no seu art. 91-A, cuja proteção deverá ser dar por meio de lei especial, mas já definindo a sua natureza jurídica como seres vivos sencientes. Essa proposta normativa já estaria socialmente atrasada, tendo sido noticiadas decisões que outorgam aos animais a titularidade de ações judiciais, para tanto representados por seus tutores, conforme matéria recentemente publicada neste mesmo Migalhas ("Gata é autora de ação contra clínica veterinária"), de 24/1/25. É para rir e chorar ao mesmo tempo.
Em suma, aguardando os desdobramentos que serão apresentados pelos participantes do GIDE nos seus próximos artigos, há uma grande questão que precisa ser enfrentada: qual é a alma que esse projeto pretende dar ao CC na sua proposta, sempre na dependência da ordem constitucional.
O CC de 1916 teria tido como alma um modelo de liberalismo, que poderia ser resumido no conhecido aforisma pacta sunt servanda, enquanto o atual poderia ser definido como o de um modelo socialista, no sentido de haver adotado certo limite de intervencionismo na vida privada. E o atual, olhando para o seu todo, como podemos vê-lo? Ele tem uma alma? Esta obrigatoriamente deverá estar centrada nos princípios constitucionais, presentes nos arts. 1º, 3º, 5º e 170 da CF, destacando-se os fundamentos, objetivos e fundamentos nela presentes, tais como a cidadania, a livre iniciativa, a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a solução pacífica de conflitos, a propriedade privada (e dentro dela a função social), a livre concorrência.
Dúvida cruel, será que as exigência acima referidas foram contempladas no projeto em vista? Tenho cá as minhas dúvidas e as discussões aqui iniciadas certamente mostrarão a verdade da insuficiência, da suficiência e/ou do hipersuficiência nele presentes, especialmente notado um elevado grau de intervencionismo estatal na vida privada e empresarial.
The game is afoot. A bola está com os senhores legisladores.
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1 Vide "A indefinível, impraticável e perigosa função social do contrato na reforma do Código Civil - Agravada reincidência de um erro", de 06.03.2024; "Reflexões críticas sobre a reforma do Código Civil: desafios metodológicos e hermenêuticos na proposta de um direito civil digital", por Bernardo Grossi, publicado no Linkedin em 08.10.2024; "Inconstitucionalidades do projeto de atualização do Código Civil em matéria de direito de família", in Consultor Jurídico de 12.03.2024; "Regras de interpretação dos contratos no anteprojeto de reforma do Código Civil Brasileiro: artigos 421-Cm 421-D e 421-E", por Dante O. Frazon Carbonar, in Revista Jurídica Profissional da FGV, volume especial de 2024, pp. 101/112/
2 "O anteprojeto do Código Civil: bem-vindo ao passado", Migalhas de 07.02.2025.
3 Sobre esse tema vide o item 7.7 do Vol. 4 da minha coleção de Direito Comercial, "Teoria Geral do Contrato - Fundamentos da Teoria Geral do Contrato", Ed. Dialética, São Paulo, 2022.
Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.