Operadoras de saúde não podem interferir na relação médico-paciente
A base da relação médico-paciente é a confiança de que o profissional é capacitado e empregará todos os seus esforços para tratamento do paciente, sem nenhuma interferência.
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
Atualizado às 10:35
Quando um beneficiário se utiliza da rede credenciada/cooperada/referenciada do plano de saúde para ter acesso ao atendimento médico de que necessita, essa relação passa a existir de forma autônoma, não podendo sofrer qualquer interferência da operadora.
A base da relação médico-paciente é a confiança de que o profissional é capacitado e empregará todos os seus esforços para tratamento do paciente.
Qualquer tentativa de ingerência da operadora de plano de saúde implica em cerceamento da liberdade de atuação do médico. Isso é vedado pelo Código de Ética da Medicina.
Nessa circunstância multifacetária há três relações distintas e independentes:
1ª - É a relação entre operadora x paciente/cliente;
2ª - É a relação entre médico x operadora;
3ª - É a relação entre médico x paciente/cliente.
Essas relações coexistem a partir de um eixo originário, que é o plano de saúde, no entanto, não podem interferir umas nas outras.
Profissionais da medicina têm relatado que as operadoras de saúde praticam imposições - através de contrato, estatuto ou informativos/comunicados - com o objetivo de limitar a prescrição médica. Esses documentos determinam que o médico prescreva somente os atos que se encontram no rol de eventos em saúde da ANS. Ou ainda, determinam que prescrições obedeçam a um tempo mínimo entre a frequência de solicitações - como por exemplo exames cardiológicos e oftalmológicos que só podem ser novamente solicitados se observados lapso temporal entre o exame realizado e o novo pedido.
Inclusive o Conselho Federal de Medicina realizou uma mesa de debate no I Encontro Nacional dos Conselhos de Medicina, em 2024, com essa temática e as discussões caminharam nesse sentido:
"O desequilíbrio na relação entre operadoras de planos de saúde e médicos foi o principal tema da segunda mesa de debate do dia 8 (sexta-feira), no I Encontro Nacional dos Conselhos de Medicina (ENCM) 2024. Na abertura dos trabalhos, a conselheira Yáscara Lages reiterou que há uma 'imensa insatisfação' por parte dos profissionais com relação à forma como as operadoras tratam várias questões envolvendo a atuação médica.
Yáscara Lages descreveu o que classificou de 'evidente desequilíbrio' no setor, com prejuízos para o trabalho dos médicos, como solicitações de acesso a dados sigilosos de pacientes e interferência na autonomia no momento da prescrição. Segundo ela, para contornar esses problemas, as entidades recomendam algumas ações. Em primeiro lugar, estabelecer limites na negociação de cláusulas contratuais, especialmente diante de indícios de práticas ruins. De modo complementar, os médicos devem encaminhar denúncias de irregularidades aos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) visando promover a equiparação de forças.
(...)
Como exemplo dos abusos que têm sido praticados, a 2ª vice-presidente citou o caso de um determinado plano de saúde que vinha cobrando várias informações dos médicos para deliberar sobre pedidos simples de exames laboratoriais de pacientes. 'Não existe essa obrigatoriedade. E os médicos têm de saber que tudo isso está previsto na resolução 2.147/2016', complementou."1
Corroborando com isso, temos uma pesquisa de 2018 realizada pelo Datafolha, veiculada pelo Conselho Federal de Enfermagem, onde, ao serem coletados dados e informações com médicos, o resultado foi o seguinte:
"Médicos - De fato, 90% dos médicos declararam que há interferência da operadora em seus trabalhos, segundo a pesquisa. O Datafolha fez levantamento também apenas com médicos do estado que estão na ativa e atendem pacientes de planos de saúde.
Foram ouvidos 615 profissionais (sendo 391 na capital e na Grande São Paulo e 224 no interior), entre os dias 12 de junho e 2 de julho. A margem de erro é de 4 pontos percentuais, para mais ou para menos.
As maiores causas de queixas dos médicos de interferência da operadora em seus trabalhos ocorrem em terapias (64%), atendimento a pacientes com doenças pré-existentes (60%) e exames para diagnóstico (59%)."2
Isso é ilegal.
A ilegalidade se identifica, primeiramente, porque o rol de eventos em saúde é exemplificativo e não é um limite legal para a cobertura dos atos e procedimentos pelos planos de saúde.
E ainda, o médico tem o dever de realizar a prescrição do que entender mais adequado ao seu paciente, não podendo:
- Renunciar à sua liberdade profissional nem permitir restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho (Código de ética - capítulo I, inciso VIII);
- Se submeter a nenhuma disposição estatutária ou regimental de instituição privada para estabelecer diagnóstico e executar tratamento (Código de ética - capítulo I, inciso XVI);
- Permitir que interesses de terceiros interfira na escolha dos melhores meios de diagnóstico ou tratamento do paciente (Código de ética - capítulo III, art. 20);
- Deixar de usar todos os meios disponíveis para diagnóstico e tratamento do paciente (Código de ética - capítulo III, art. 32).
Por fim, é direito do médico:
- Indicar o procedimento adequado ao paciente (Código de ética - capítulo II, inciso II);
- Apontar falhas nas normas das instituições junto as quais trabalhe, quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais a si mesmo, ao paciente, sendo seu dever comunicar ao CRM (Código de ética - capítulo II, inciso III).
Os médicos se veem em uma situação delicada, já que a operadora de saúde, da qual depende economicamente, lhe impõe restrições, do outro lado está o paciente, junto a quem o profissional tem deveres éticos e humanos.
É importante que o médico esteja bem orientado e assistido por um advogado da sua confiança para entender o liame de sua liberdade de atuação profissional e coibir as ações restritivas ilegais das operadoras de saúde.
Por sua vez, o paciente/cliente deve estar atento para que tenha acesso à informação clara e transparente sobre o tratamento proposto e as variáveis que o médico se utilizou para sua escolha, sendo obrigatório que o interesse econômico do plano de saúde esteja totalmente excluído. Isso porque o paciente/cliente tem o direito à prescrição médica do que for mais adequado e eficaz ante a patologia que lhe acomete.
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1 Desequilíbrio da relação entre planos de saúde e médicos tem de acabar, afirmam debatedores de encontro do CFM. 08/03/2024. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/desequilibrio-da-relacao-entre-planos-de-saude-e-medicos-tem-de-acabar-afirmam-debatedores-de-encontro-do-cfm
2 Disponível em: https://www.cofen.gov.br/96-dos-pacientes-relatam-problemas-com-plano-de-saude-diz-datafolha/