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Descumprimento das medidas protetivas de urgência e os perigos do PL 6.020/23

A busca pela não violência a mulher tem como um dos pilares o Direito Penal justo, adequado a atual realidade social.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Atualizado em 18 de fevereiro de 2025 10:50

Uma das mais importantes leis que possuímos quando falamos sobre direitos humanos no Brasil é a lei Maria da Penha, lei essa de 2006 e que é um verdadeiro divisor de águas quando se trata de violência doméstica, já que infelizmente no passado agressores de mulheres dificilmente permaneciam presos, pagando cestas básicas e voltando a agredir das mais diversas formas as companheiras.

Um enorme avanço na lei ocorreu somente no ano de 2018, doze anos após a criação da lei Maria da Penha, pois em 2018 foi acrescentada à lei Maria da Penha o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, cuja pena era de três meses a dois anos de detenção. Em 2024 a pena passou a ser de dois a cinco anos de reclusão e multa.

Avanços na lei são sempre muito bem vindos, em especial quando se trata de a lei ser cada vez mais dura com agressores, entretanto neste artigo quero chamar a atenção para algo que pode ser muito perigoso. Está sendo tramitado na câmara dos deputados o projeto de lei 6.020/23 que prevê o seguinte:

"Art. 1º Esta Lei altera a Lei no 11.340, de 7 de agosto de 2006 - Lei Maria da Penha, para estabelecer que a aproximação voluntária do agressor, mesmo que ocorra com o consentimento expresso da vítima, configura crime de descumprimento de medida protetiva. Art. 2º O art. 24-A da Lei no 11.340, de 7 de agosto de 2006 - Lei Maria da Penha, passa a vigorar acrescido do seguinte §4°:

Art. 24- A, §4° Configura a hipótese descrita no caput a aproximação voluntária do agressor às áreas delimitadas por decisão judicial, mesmo que ocorra com o consentimento expresso da vítima."

Não tenho a mínima dúvida de que a deputada doutora Alessandra Haber, autora de tal PL, possui extrema boa-fé com esse projeto, pois quanto mais agressores de mulheres presos, mais mulheres estarão seguras, isso é fato. O que direi não é, de forma alguma direcionado como crítica, a nobre deputada, mas sim juízo de valor sobre os efeitos do que pode esse projeto, caso se torne lei.

Hoje, se uma mulher possuir medidas protetivas de urgência em desfavor do acusado e, em algum momento, entender que o relacionamento deva ser reatado, ou mesmo permitir que o acusado se aproxime para buscar um filho não havendo uma terceira pessoa que possa fazer isso, não é entendido como crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, pois não haveria a intenção de o acusado descumprir as medidas protetivas, não existindo a forma culposa do crime e, por consequência, não existindo o crime pela falta do dolo, ou seja, a intenção de o crime ser cometido, conforme o parágrafo único do art. 18 e o caput do art. 21, ambos do CP.

Endosso, sei que a intenção da nobre deputada é a melhor possível, prova disso é o bom trabalho que desenvolve na Câmara, entretanto preciso alertar sobre as consequências caso o PL 6.020/23 vire futuramente lei. Pode, por exemplo, uma mulher ligar para o ex, dizer que está com saudade e que quer que ele vá à casa dela, o homem com medidas protetivas de urgência em desfavor acreditando que não há problema vai então até a casa da ex, eles conversam na sala, de forma muito amistosa, sobre reatarem o relacionamento e então ela vai ao banheiro e liga para 190. Ao perceber a presença dos policiais o ex pergunta o que está acontecendo e a mulher diz: "Você sabe que não pode entrar nessa casa e nem se aproximar de mim a menos de cem metros" ele então diz "Mas foi você quem me ligou, disse que queria reatar o relacionamento, me convidou a entrar, eu não te coagi, isso não é justo" e os policiais terão que encaminhar as partes para a delegacia onde o acusado permanecerá preso, mesmo que não tenha ocorrido um novo crime durante o encontro.

Outro exemplo é o fato de a mulher acreditar que o marido a trai, solicita medidas protetivas de urgência, dentre elas a que o acusado não pode se aproximar dela a cem metros, pois acredita que terá sofrimento psicológico se o ver e, em determinado momento, percebe que havia se enganado, que na verdade o marido não a traia, a mensagem "eu te amo" na verdade era da mãe do esposo, não de uma amante. O relacionamento e reatado em um sábado e, estando ambos em um carro são parados pela polícia em uma "blitz" sendo verificado que há medidas protetivas de urgência e o homem então é preso, mesmo em momento algum anteriormente ter cometido um crime e havendo reatado o relacionamento sem que a mulher tenha sido coagida, ao contrário, teria partido dela a vontade expressa de o relacionamento ser reatado e não havendo tempo hábil para a mulher solicitar a extinção judicial de tais medidas protetivas.

Bem, esses são alguns exemplos do que pode ocorrer, hoje a lei Maria da Penha é um importante instrumento de justiça, que de forma imparcial fortalece a necessidade de a mulher ter maior proteção, ainda mais com o crescente aumento do número de feminicídios não só no Brasil, mas em todo o mundo, entretanto deve-se haver cuidado para que não possa ser utilizada de forma errada, o que pode se transformar infelizmente em alguns casos em um instrumento de vingança.

Uma humilde sugestão sobre uma mudança que, sim, seria interessante no art. 24-A da lei Maria da Penha: Que a pena máxima ultrapassasse oito anos de reclusão, para que, de tal forma, mesmo que o condenado não seja reincidente comece a pena em regime fechado, conforme dispõe o art. 33, § 2º, "a", do CP, já em se tratando da pena mínima seria interessante que ultrapassasse quatro anos de reclusão, para que em caso de o condenado ser reincidente a pena se inicie também no regime fechado, com fulcro no art. 33, § 2º, "b", do CP. Lembrando, hoje a pena para o crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência é de dois a cinco anos de reclusão e multa.

Apesar de a ação penal do crime do art. 24-A da lei Maria da Penha ser pública incondicionada, hoje por não haver a forma culposa de tal não se pode então haver o crime, conforme dispõe o parágrafo único do art. 18 do CP, não havendo então o crime pelo fato não haver tipicidade; já se houver a mudança no art. 24-A da lei Maria da Penha conforme o PL 6020/23, o tipo penal será válido mesmo com a permissão da mulher, devendo o fato se flagrado por um policial ser encaminhado para a delegacia.

Espero que esse texto, de alguma forma, contribua na luta pela não violência a mulheres, pois não existe sociedade justa se a violência é naturalizada.

Wagner Luís da Fonseca e Silva

Wagner Luís da Fonseca e Silva

Bacharel em Direito, aprovado na OAB. Pós-graduado em Direito Militar pelo Instituto Venturo. Pós-graduado em Gênero e Direito pela Emerj. MBA em Vioência Doméstica pela FACEC. Policial Militar.

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