Iniciativas legislativas de direitos autorais em 2024 no Brasil
Este artigo analisa as principais iniciativas legislativas de 2024 sobre direitos autorais, com ênfase em inteligência artificial, jogos eletrônicos e CONDECINE.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
Atualizado em 14 de fevereiro de 2025 07:17
2024 foi bastante movimentado em termos de direitos autorais, cujo debate parece ter voltado ao palco principal. A aprovação pelo Senado do PL 2338/23 e do PL 2331/22, e a promulgação da lei 14.852/24, são as três ações de impacto que destacamos. No entanto, não houve avanço nem no PL 2630/20 do Senado ("PL das fake news") nem no PL 2730/19 da Câmara, que prevê uma reforma mais ampla da lei de direitos autorais.
Obviamente, o que mais chamou a atenção e pautou muitas conversas e seminários foi a aprovação do PL 2338/23 no Senado Federal em 10/12/24,1 principalmente em razão das incertezas e tensões em torno dos sistemas de IA - inteligência artificial e do conteúdo sensível da proposta sobre os direitos autorais. O Senado aprovou ainda o PL 2331/22, que inclui a instituição de uma taxa pela exploração comercial das obras audiovisuais no ambiente digital, com provável impacto nas atividades das plataformas de disponibilização de conteúdos gerados pelos usuários, como o YouTube. E também foi sancionada a lei 14.852/24, que institui o marco regulatório dos videogames no Brasil, incluindo sua classificação normativa como "obra audiovisual interativa desenvolvida como programa de computador".
Inteligência artificial e direitos autorais
O PL 2.338/23, que estabelece o marco regulatório dos sistemas de IA no país, foi aprovado pelo Senado em 10/12/24, que deverá agora ser apreciado pela Câmara dos Deputados. Interessante notar que a proposta inicial de regulação foi aprovada na forma do PL 21-A/20 na Câmara dos Deputados em 29/9/21, 2 mas foi sobreposta pelo PL 2.338/23. Em sua estrutura, lógica e direcionamento se espelha no AI Act Europeu.3 É um exemplo claro do 'efeito Bruxelas'. Contudo, tal espelhamento pode ser excessivo e não deve deixar de incorporar as particularidades e vicissitudes nacionais.
A relação entre direitos autorais e IA é complexa e só ganhou proeminência nacional a partir de abril de 2024, com a inserção de um capítulo dedicado ao tema. Como qualquer tema deste nível de complexidade e incerteza (e todos relacionados à regulação de IA o são), há sempre aspectos que podem e outros que devem ser melhorados, como indicado no estudo "Inteligência artificial e Direitos Autorais: contribuições ao debate regulatório no Brasil".4
A pesquisa mais amplamente, e a mineração de textos e dados em especial, receberam tratamento insuficiente para garantir que a pesquisa possa continuar a ser feita sem sérios riscos e custos, que são fatores impeditivos à atividade essencial para o país. Esses excessos incluem a restrição que a pesquisa deve ser feita apenas institucionalmente, que não possa ser fruto de relações público-privado e, mais importante, que o acesso ao material para treinamento seja 'lícito', o que traz muitas implicações. Sem pesquisa de ponta o país só irá naufragar. E seus comandos irão afetar todas as atividades de pesquisa intensiva em dados, em todos os setores, independente de desenvolverem ou não sistemas de IA.
Os deveres de remuneração e licenciamento estabelecidos para o treinamento de sistemas de IA com dados de obras protegidas por direitos autorais, embora sejam razoáveis nos casos de usos comerciais com efeitos substitutivos, estabelecem altos custos de entrada para empresas nacionais. Como consequência, os beneficiários serão grandes players da tecnologia e titulares de bancos de dados (grandes empresas estrangeiras) que contenham obras protegidas em número suficiente para servirem como fonte de dados para o treinamento dos sistemas. Assim, prejudicará certamente a inovação nacional e o desenvolvimento de sistemas de IA que reflitam as características brasileiras. E todo esse arcabouço sem efetiva garantia de remuneração aos autores e artistas, sua principal justificativa!
Como aprovados no Senado, esses constrangimentos para a pesquisa e a inovação nacional afetarão praticamente todas as atividades econômicas, industriais ou de interesse público, que exigem ou utilizam grande número de informações e dados, seja na pesquisa pura ou no desenvolvimento de sistemas de IA que atendam as demandas nacionais. Isso terá impacto inclusive na customização das empresas e no desenvolvimento de sistemas internos, afinal a proteção aos direitos autorais alcança texto, sons e imagens, e toda utilização de sistemas de IA que tenham essas características serão afetados.
Marco legal dos videogames
Publicada em 3/5/24, a lei 14.582/24,5 também chamada de marco legal para a indústria de jogos eletrônicos, regula a "fabricação, a importação, a comercialização, o desenvolvimento e o uso comercial de jogos eletrônicos" no Brasil (art. 2), por meio do estabelecimento de diretrizes e princípios para seu uso (art. 6), bem como a proposição de medidas de fomento e investimentos relacionados (art.4). E também a clara exclusão de jogos que envolvam apostas com prêmios, resultados aleatórios, promoções comerciais ou modalidades lotéricas (art. 5o, parágrafo único)
A legislação traz incentivos concretos à produção nacional de videogames com o seu reconhecimento como parte do segmento cultural (art. 12), habilitando-os a receberem incentivos fiscais e fomento para a sua produção, tais como os demais bens culturais. A inclusão dos investimentos em desenvolvimentos dos jogos eletrônicos como "investimento em pesquisa, desenvolvimento, inovação e cultura" (art. 11, parágrafo único) certamente abre espaço para o crescimento dos recursos disponíveis para o crescimento deste setor.
Interessante a facilitação do uso de jogos eletrônicos na educação e formação (art. 10), no qual merecem destaque o desenvolvimento de políticas públicas no âmbito da política nacional de educação digital e a criação de um repositório destes jogos criados com recursos públicos. Igualmente relevante para pesquisa e desenvolvimento é a possibilidade de apoio estatal "à pesquisa, ao desenvolvimento e ao aperfeiçoamento de jogos eletrônicos direcionados à educação, inclusive mediante a criação de plataforma de jogos eletrônicos educativos." (art. 13, § 1º, IV). Entretanto, são todas políticas opcionais, e não obrigatórias, como deveriam ser.
Uma das principais contribuições da lei é a definição de "jogo eletrônico", que traz referência direta à legislação autoral. Enquadra os jogos eletrônicos como "a obra audiovisual interativa desenvolvida como programa de computador" (art. 5.1) e vincula sua proteção à lei de software (9.609/98),6 que tem particularidades em relação à lei geral de direitos autorais (9.610/98).7
Apesar de não tratar diretamente dos direitos autorais, traz definições sobre múltiplos papéis que podem ser assumidos por diferentes profissionais na criação e produção dos jogos: potenciais autores, como artistas visuais (art. 7º, § 3º, I) e de áudio para jogos (art. 7º, § 3º, II), designers de narrativas (art. 7º, § 3º, III) e programadores de jogos (art. 7º, § 3º, V), e titulares , como é o caso do produtor de jogos (art. 7º, § 3º, VII).
Por fim, é feita uma alteração na lei de propriedade industrial, com a inserção, dentre as medidas de proteção aos direitos, da "concessão de registro para jogos eletrônicos". É uma alteração questionável, uma vez que o próprio texto do marco legal, ainda que mencione dispositivos centrais e acessórios, traz uma definição de jogos eletrônicos conectada com proteção dos programas de computador, que é vinculada aos direitos autorais. Por isso mesmo, ao ser uma "obra audiovisual interativa desenvolvida como programa de computador", não depende da concessão de um registro para a sua efetiva proteção. Mesmo considerando os elementos de hardware que podem estar protegidos sob a propriedade industrial, esta alteração da LPI suscita um questionamento sobre a obrigatoriedade e a criação de um registro exclusivo para os jogos eletrônicos.
Vídeo on Demand e a Condecine digital
Anos após sua existência, o PL 2331/22 aprovado pelo Senado em 25/4/24 e encaminhado para a Câmara dos Deputados em 9/5/24,8 busca regular a disponibilização de VoD - vídeo sob demanda no Brasil, e, dentre os tópicos de que trata, amplia a competência da Ancine, expande a incidência da Condecine - Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional para esta modalidade de utilização das obras audiovisuais, e cria novos incentivos à participação de filmes brasileiros nestes serviços por meio de cotas mínimas.
Quando da criação da Ancine - Agência Nacional de Cinema, em 2001, por meio da MP 2.228-1,9 o VoD não estava no radar, afinal estávamos no início no mundo digital, que hoje engolfa quase todas as atividades e relações sociais. A fim de que pudesse regular as atividades específicas deste setor, o PL 2.331/22 (art. 11) altera a MP 2.228-1 (art. 7º, XXIV) e amplia suas competências para "regulamentar a implementação das obrigações previstas na lei que trata do serviço de vídeo sob demanda", como já faz com vários outros setores que disponibilizam obras audiovisuais (cinema, TV, vídeo, etc.).
Como boa parte das operadoras deste serviço e seus catálogos de obras oferecidas são estrangeiros, entendeu-se pela necessidade de estabelecer cotas de tela para obras nacionais em seus serviços, inclusive na composição dos catálogos a serem ofertados ao público. Ou seja, será necessário criar espaço na vitrine do VoD para filmes brasileiros.
Contudo, os percentuais de participação, sempre na ordem de 5%, são ínfimos e não parecem suficientes para a missão. Um levantamento da atual situação - que não parece ter sido produzido, muito menos considerado - poderia auxiliar. Sua aplicação será progressiva, poderá ser dispensada, mas não traz nenhum marco temporal para sua revisão nem a obrigatoriedade de estudos que apoiem as decisões.
A Condecine é paga em razão da exibição comercial das obras audiovisuais, e, como o próprio nome diz, seu objetivo é financiar políticas públicas destinadas ao desenvolvimento da indústria audiovisual brasileira. É um dos pilares de sustentação do financiamento da produção audiovisual, que, eventualmente, pode encontrar seu caminho ao público por meio do sistema de cotas de telas. Caso seja aprovado, as empresas de VoD deverão pagar a Condecine.
Mas este aspecto não é a grande novidade, o que realmente chama a atenção é a inclusão das plataformas de compartilhamento de vídeos produzidos ou disponibilizados por usuários - mesmo que a disponibilização seja voluntária e sua utilização gratuita, desde que haja receita econômica, como anúncios de diversos tipos, e os valores que deverão ser pagos a título de Condecine. Nesta categoria, se destacam YouTube e TikTok, inclusive e expressamente mencionados na nota técnica da Ancine (SEI 3238269), elaborada em resposta à solicitação da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (Req. 219/23).
Há ressalvas importantes de atividades excluídas da incidência da legislação (art. 3o), como os jogos eletrônicos (art. 3o, IV), material 'estritamente' educacional (art. 3o, IV), material informativo e jornalístico (art. 3o, III), eventos esportivos (art. 3o, VIII) ou "conteúdos gerados por terceiros e não remunerados" (art. 3o, IX).
Não sabemos quais serão os resultados efetivos desta proposta, que agora estará em apreciação na Câmara dos Deputados. Mas uma das questões que permanece na 'sala' é sobre a titularidade dos direitos autorais sobre as obras produzidas com financiamento público (inclusive dos fundos gerados com o recolhimento da Condecine). Até hoje, em boa parte, embora financiadas por recursos nacionais, os direitos sobre os filmes acabam pertencendo às empresas transnacionais de audiovisual, mas esta é uma questão que merece atenção própria.
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1 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233
2 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236340
3 https://eur-lex.europa.eu/eli/reg/2024/1689/oj/eng
4 https://ibdautoral.org.br/novo/wp-content/uploads/2024/08/IA-Direitos-Autorais-Completov2-mesclado.pdf
5 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14852.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2014.852%2C%20DE%203%20DE%20MAIO%20DE%202024&text=Cria%20o%20marco%20legal%20para,14%20de%20maio%20de%201996.&text=art.,a%20ind%C3%BAstria%20de%20jogos%20eletr%C3%B4nicos.
6 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9609.htm
7 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm
8 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154545
9 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2228-1.htm