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Recuperação judicial e a penalização do credor omisso

A recente movimentação legislativa em torno do pagamento de credores que não informam seus dados bancários na recuperação judicial reacende um debate importante sobre a equidade do processo.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Atualizado às 14:16

A recente movimentação legislativa em torno do pagamento de credores que não informam seus dados bancários no contexto de recuperação judicial reacende um debate crucial sobre a equidade do processo e os limites da negociação coletiva.

O STJ, em decisão proferida em março de 2024 no âmbito do REsp 1.974.259/SP (2021/0356230-2)1, consolidou o entendimento de que cláusulas que estabelecem deságios adicionais para esses credores, desde que aprovadas em AGC - Assembleia Geral de Credores, integram a liberdade negocial inerente ao plano de recuperação. Dessa forma, tais cláusulas não justificam intervenção judicial, desde que respeitados os requisitos legais e processuais.

Em outras palavras, se a maioria dos credores, em assembleia, concordar com a aplicação de regras que impõem penalidades àqueles que não atualizam suas informações bancárias dentro do prazo estipulado, essa decisão coletiva deve ser respeitada. Isso inclui a validade de cláusulas que estabelecem deságios significativos, podendo chegar a percentuais elevados, como 90%, desde que observados os princípios da transparência, boa-fé e proporcionalidade.

No entanto, o Congresso Nacional parece discordar dessa lógica. Aprovado na Comissão de Indústria, Comércio e Serviços da Câmara, um projeto de lei propõe mudanças na legislação falimentar (lei 11.101/05) para evitar que a ausência de dados bancários resulte em descontos severos nos valores devidos. Em suma, o texto determina que, antes de qualquer penalização, o administrador judicial deve tentar efetuar o pagamento via pix com base no CPF ou CNPJ do credor e, caso não seja possível, publicar um edital solicitando a atualização dos dados.

O relator do projeto, deputado Julio Lopes, defende que a responsabilidade pelo pagamento não pode ser transferida ao credor e que a empresa em recuperação já deveria dispor dessas informações desde o início da relação comercial2.

Com base nesses dados, o administrador judicial, figura central que atua como fiscal do processo, assume a responsabilidade de encaminhar as comunicações iniciais e promover a ampla publicidade dos atos processuais (art. 22, I, "a" da lei 11.101/05). Além das notificações diretas, a legislação prevê medidas complementares para garantir a máxima divulgação, como a inclusão da expressão "em recuperação judicial" na denominação da empresa e a publicação de editais no Diário de Justiça Eletrônico.

Por sua vez, os credores desempenham um papel fundamental na recuperação judicial, uma vez que são eles que deliberam sobre o plano apresentado pelo devedor, decidindo, em AGC, pela sua aprovação ou rejeição. No entanto, um dos grandes desafios do processo é garantir a efetiva participação de todos os envolvidos. A ausência de atualização cadastral, dificuldades no recebimento das notificações ou mesmo a falta de acompanhamento do processo podem resultar na exclusão de credores da fase deliberativa, comprometendo seus direitos e o equilíbrio do processo como um todo.

Assim, a proposta levanta reflexões sobre a estrutura da recuperação judicial e seus impactos no equilíbrio entre credores e devedores.

De um lado, há o princípio da soberania da assembleia de credores, fundamental para dar viabilidade econômica ao plano e permitir a reestruturação da empresa em crise. De outro, está a necessidade de garantir que credores não sejam penalizados desproporcionalmente por exigências meramente formais. Se, por um lado, a imposição de um deságio de até 90% pode parecer uma medida extrema, por outro, a burocratização adicional do processo de pagamento pode sobrecarregar administradores judiciais e comprometer a segurança jurídica das negociações.

Nessa perspectiva, compreende-se que a mudança de entendimento proposta pelo Congresso não apenas reequilibra essa relação, mas também impõe um novo ônus aos administradores judiciais, que precisarão adotar mecanismos extras para localizar credores e viabilizar pagamentos. Na prática, isso poderia ocasionar atrasos na execução dos planos de recuperação e custos adicionais ao processo, afetando diretamente sua eficiência. Além disso, a proposta pode abrir precedentes para outras intervenções legislativas que enfraqueçam a autonomia da assembleia, um pilar do instituto da recuperação judicial.

A introdução de medidas que obrigam o administrador judicial a buscar ativamente os dados bancários dos credores no processo de recuperação judicial traz à tona uma questão delicada: a tensão entre liberdade contratual e a proteção dos direitos dos credores. Embora a intenção seja evitar prejuízos indevidos, essa intervenção legislativa pode acabar gerando mais insegurança jurídica do que soluções práticas.

Sabe-se, por oportuno, que o equilíbrio entre proteger os credores e garantir a eficiência da reestruturação empresarial é delicado, mas fundamental para o sucesso da recuperação judicial. O foco, portanto, deve ser sempre na manutenção da função social da empresa e na viabilidade do processo, sem perder de vista a necessidade de um ambiente jurídico claro e seguro para todos os participantes.

O projeto de lei segue agora para análise nas comissões de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, tornando o debate sobre a proposta ainda mais relevante. Para que se torne lei, o texto precisará ser aprovado pela Câmara e pelo Senado, o que possibilitará novas discussões e ajustes nas regras propostas. Espera-se, assim, que durante esse processo legislativo, a solução final consiga equilibrar, de maneira justa, as necessidades da recuperação judicial, a proteção dos direitos dos credores e a preservação da estabilidade jurídica. Tais aspectos são fundamentais não apenas para o êxito do sistema de recuperação empresarial, mas também para a manutenção da confiança no ambiente econômico e jurídico, assegurando que empresas em crise possam se reestruturar de forma eficiente e equitativa.

___________

1 STJ - REsp: 1974259, Relator: ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Publicação: 14/03/2024.

2 https://www.camara.leg.br/noticias/1128673-comissao-aprova-regras-para-empresa-em-recuperacao-judicial-pagar-credor-sem-dados-bancarios/

Letícia Marina da S. Moura

VIP Letícia Marina da S. Moura

Advogada e jornalista. Especialista em Direito Empresarial e Falência e Recuperação de Empresas. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/USP.

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