MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Patrimônio de afetação e SPE: Semelhanças e diferenças

Patrimônio de afetação e SPE: Semelhanças e diferenças

O patrimônio de afetação e a SPE garantem segurança a adquirentes e investidores. O artigo compara suas semelhanças, diferenças e eficácia na proteção dos compradores e na mitigação de riscos.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Atualizado às 14:04

Patrimônio de afetação e sociedade de propósito específico: Similitudes e diferenças destes dois mecanismos amplamente utilizados pelas construtoras e incorporadoras brasileiras

Introdução

O mercado imobiliário brasileiro tem passado por transformações significativas nos últimos anos, impulsionado por mudanças econômicas, avanços legislativos e o comportamento do consumidor. Segundo dados recentes, o setor apresentou um crescimento expressivo, com vendas de imóveis novos aumentando 17,9% no segundo trimestre de 2024, alcançando 93.743 unidades vendidas. Esse desempenho se deve, em parte, à melhoria das condições de crédito, às expectativas de redução da taxa Selic e à busca por soluções habitacionais mais sustentáveis e adaptadas às novas dinâmicas de trabalho remoto.

Dentro desse cenário, a estruturação de empreendimentos imobiliários requer mecanismos que garantam segurança tanto para os adquirentes quanto para os investidores. Dentre as soluções existentes, duas se destacam: o patrimônio de afetação e a SPE - sociedade de propósito específico. Ambos possuem vantagens e desafios, sendo amplamente utilizados pelas construtoras e incorporadoras para mitigar riscos e segregar o patrimônio de um empreendimento específico. Neste artigo, analisaremos as similitudes e diferenças entre esses dois mecanismos, sua eficiência na proteção dos adquirentes e qual deles apresenta maior segurança no cenário ideal.

Aquisição de imóveis na planta

A aquisição de imóveis na planta é uma estratégia comum no Brasil, oferecendo vantagens como menor custo inicial e possibilidade de personalização do imóvel. Contudo, o histórico do setor mostra que essa prática também apresenta riscos significativos. A falência de grandes construtoras, como Encol, Porto Freire, Itapemirim e Coesa, causou prejuízos incalculáveis a milhares de famílias, que se viram sem os imóveis adquiridos e sem perspectivas de reaver seus investimentos.

Para mitigar esses riscos, foram criados mecanismos de segurança jurídica, sendo os principais o patrimônio de afetação e a sociedade de propósito específico. O questionamento essencial é se tais mecanismos realmente oferecem a proteção esperada para os adquirentes. No entanto, antes mesmo de analisar a adoção desses mecanismos, há outros fatores que os adquirentes devem observar.

Análise do financiamento da obra e instituição financeira responsável

Um dos primeiros pontos a serem investigados é se a obra possui financiamento aprovado e qual instituição financeira está vinculada ao empreendimento. A existência de um financiamento bancário pode trazer maior segurança, pois as instituições financeiras realizam análises rigorosas sobre a viabilidade do projeto antes de conceder o crédito.

Dessa forma, ao avaliar um empreendimento, o comprador deve:

  1. Verificar se a obra conta com financiamento aprovado por uma instituição sólida;
  2. Analisar as condições desse financiamento e o estágio de liberação dos recursos;
  3. Observar se a construtora cumpre os requisitos estabelecidos pelo banco financiador;
  4. Solicitar informações sobre a liberação dos recursos e os critérios exigidos pela instituição financeira para o repasse das parcelas.

Se um empreendimento possui financiamento de uma instituição bancária de renome, isso pode indicar maior confiabilidade na execução da obra, já que o banco acompanhará o cronograma físico-financeiro do projeto

Mecanismos de proteção: Patrimônio de afetação

O patrimônio de afetação foi introduzido pela lei 10.931/04, que adicionou os arts. 31-A a 31-F à lei 4.591/1964, visando aumentar a segurança jurídica nas incorporações imobiliárias. Esse mecanismo permite que o terreno, as edificações em construção e os demais bens e direitos vinculados a uma incorporação sejam separados do patrimônio geral do incorporador, formando um patrimônio autônomo destinado exclusivamente à consecução do empreendimento e à entrega das unidades aos adquirentes.

Objetivos e vantagens do patrimônio de afetação

A principal finalidade do patrimônio de afetação é proteger os adquirentes de imóveis em construção contra eventuais problemas financeiros do incorporador, como falência ou insolvência. Ao segregar o patrimônio do empreendimento, garante-se que os recursos obtidos com a venda das unidades sejam utilizados exclusivamente na execução da obra, evitando que sejam desviados para outras finalidades ou para quitar dívidas alheias ao projeto.

Além disso, o patrimônio de afetação proporciona maior transparência na gestão financeira do empreendimento, uma vez que exige contabilidade separada e prestação de contas específica. Isso facilita a fiscalização pelos adquirentes e por eventuais financiadores, aumentando a confiança no cumprimento das obrigações assumidas pelo incorporador.

Funcionamento e procedimentos para constituição

A constituição do patrimônio de afetação é facultativa e deve ser formalizada pelo incorporador por meio de termo específico, que é levado a registro no Cartório de Registro de Imóveis competente. Uma vez instituído, o patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos, respondendo apenas por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva.

É importante destacar que, embora o patrimônio de afetação ofereça uma camada adicional de segurança aos adquirentes, ele não é imune a todas as contingências. Por exemplo, dívidas contraídas pelo incorporador que estejam diretamente relacionadas ao empreendimento podem ser satisfeitas com os recursos do patrimônio afetado. Além disso, a efetividade dessa proteção depende do cumprimento rigoroso das obrigações legais e contratuais por parte do incorporador, bem como da fiscalização pelos adquirentes e demais interessados.

Impacto do caso Encol e evolução legislativa

A falência da Encol, uma das maiores construtoras do país na década de 1990, evidenciou a vulnerabilidade dos adquirentes de imóveis na planta e a necessidade de mecanismos legais que oferecessem maior proteção. A crise gerada pela insolvência da empresa, que deixou milhares de consumidores sem receber suas unidades habitacionais, foi um dos principais motivadores para a introdução do patrimônio de afetação na legislação brasileira.

Desde então, o patrimônio de afetação tem sido reconhecido como um instrumento eficaz para aumentar a segurança jurídica nas incorporações imobiliárias, contribuindo para a estabilidade do mercado e para a confiança dos consumidores. No entanto, sua adoção ainda não é universal, e muitos empreendimentos são realizados sem a utilização desse mecanismo, o que pode expor os adquirentes a riscos adicionais.

SPE - Sociedade de Propósito Específico

SPE - Sociedade de Propósito Específico é uma entidade empresarial criada para desenvolver um projeto específico. No setor imobiliário, esse modelo tem sido amplamente utilizado como forma de segregar riscos e organizar juridicamente a execução de um empreendimento. Uma SPE pode assumir a forma de sociedade limitada ou sociedade anônima, permitindo maior flexibilidade para os investidores e incorporadores.

Benefícios da SPE no mercado imobiliário: Expectativa vs realidade

A adoção da SPE no mercado imobiliário tem como objetivo proporcionar maior previsibilidade e segurança tanto para investidores quanto para adquirentes. No entanto, é necessário avaliar se os benefícios esperados são efetivamente alcançados na prática.

  • Segregação de riscos: A criação de uma SPE busca isolar os riscos de um empreendimento dos demais negócios do incorporador. No entanto, em situações de crise financeira da construtora, há casos em que a separação patrimonial se mostra ineficaz, especialmente quando há garantias cruzadas ou ingerência administrativa compartilhada com a empresa-mãe.
  • Maior segurança jurídica: A SPE, teoricamente, oferece maior proteção contratual e reduz a exposição dos investidores a problemas financeiros de outros empreendimentos. Porém, na prática, falhas na governança e na fiscalização das SPEs podem gerar incertezas jurídicas e comprometer sua efetividade.
  • Facilidade na captação de recursos: Muitos bancos e investidores preferem financiar empreendimentos estruturados por SPEs, pois isso sugere maior controle financeiro. No entanto, a ausência de um regime de afetação pode significar que os recursos captados sejam desviados para outros fins, aumentando os riscos para os compradores.
  • Controle eficiente do fluxo de caixa: A independência patrimonial da SPE pode facilitar a administração financeira do empreendimento. Porém, essa vantagem se perde caso a gestão financeira seja deficiente ou se a incorporadora detiver poder excessivo sobre a SPE, comprometendo sua autonomia.

Dessa forma, embora a SPE represente um avanço na organização do setor imobiliário, sua eficácia depende de uma gestão transparente e de regras rígidas para evitar fraudes e manipulações patrimoniais.

SPE e regime de afetação: É possível a combinação?

Uma dúvida comum é se uma SPE pode adotar o regime de afetação. A resposta é sim. Uma SPE pode ser estruturada de forma que cada empreendimento tenha seu patrimônio segregado pelo regime de afetação. Isso aumenta ainda mais a segurança do comprador, pois combina dois mecanismos de proteção que atuam de forma complementar.

Recentemente, o STJ decidiu que uma SPE que adote o patrimônio de afetação pode ser excluída de um processo de recuperação judicial, reforçando a tese de que esses mecanismos garantem maior proteção aos adquirentes. Essa decisão demonstra que a combinação da SPE com o regime de afetação cria um escudo legal eficiente contra eventuais dificuldades financeiras da incorporadora.

Comparação: Patrimônio de afetação vs. SPE

No cenário ideal, a melhor proteção ao adquirente ocorre quando a obra adota tanto o regime de afetação quanto a estruturação por meio de uma SPE. Isso garante a segregação patrimonial e limita a transmissão de passivos a terceiros.

Se a obra não estiver submetida ao regime de afetação, é fundamental verificar se ao menos a incorporação está estruturada por meio de uma SPE. Caso nenhum desses mecanismos seja utilizado, o risco ao adquirente se torna significativamente maior.

Critério

Patrimônio de afetação

SPE

Proteção contra falência

Sim

Parcial

Segregação patrimonial

Sim

Sim

Controle de recursos

Sim

Sim

Maior transparência

Sim

Sim

Obrigatoriedade

Facultativo

Facultativo

Ambos os mecanismos oferecem vantagens distintas, sendo que o regime de afetação possui uma proteção mais rigorosa quanto à destinação dos recursos. A SPE, por sua vez, pode proporcionar uma estruturação jurídica mais flexível, mas sua efetividade depende da governança e da ausência de práticas abusivas por parte da incorporadora.

Conclusão

A análise comparativa entre o patrimônio de afetação e a SPE - sociedade de propósito específico evidencia que ambos são mecanismos jurídicos relevantes para a segurança das incorporações imobiliárias, contudo, apresentam diferenças substanciais em termos de eficácia e proteção dos adquirentes.

O patrimônio de afetação, introduzido pela lei 10.931/04, é um instrumento que impõe uma segregação patrimonial rígida, garantindo que os recursos arrecadados em um empreendimento sejam destinados exclusivamente à sua conclusão. Além disso, sua adoção impõe maior transparência e controle financeiro, o que reduz significativamente os riscos de falência ou inadimplência da incorporadora. A jurisprudência tem reforçado a validade e a eficácia desse regime, excluindo os empreendimentos afetados de processos de recuperação judicial e proporcionando uma camada adicional de segurança aos adquirentes.

Por outro lado, a SPE, embora apresente vantagens estruturais, como a facilidade na captação de recursos e a limitação da responsabilidade dos sócios, não garante, por si só, a proteção total do patrimônio do empreendimento. Na prática, SPEs sem a adoção do regime de afetação podem ter seus ativos utilizados para cobrir obrigações de outros empreendimentos da mesma incorporadora, o que pode comprometer a segurança dos adquirentes. A governança corporativa e a fiscalização sobre SPEs nem sempre são rigorosas, deixando margem para práticas que podem colocar em risco a viabilidade financeira do projeto.

Dessa forma, considerando os aspectos analisados ao longo do artigo, conclui-se que o patrimônio de afetação representa uma ferramenta mais robusta e confiável para assegurar a proteção dos adquirentes e a entrega dos imóveis prometidos. Sua capacidade de segregar os recursos, restringir a responsabilidade do incorporador ao empreendimento específico e garantir maior transparência faz com que esse mecanismo seja a opção mais segura para aqueles que desejam adquirir imóveis na planta.

Portanto, recomenda-se que os adquirentes priorizem empreendimentos submetidos ao regime de afetação, garantindo que seus investimentos estejam resguardados contra eventuais dificuldades financeiras da incorporadora. Além disso, a regulamentação deve ser aprimorada para incentivar a adesão ao regime de afetação, tornando-o um padrão obrigatório no mercado imobiliário, de modo a evitar prejuízos aos consumidores e fortalecer a confiança no setor. O mercado imobiliário brasileiro requer instrumentos de proteção que garantam a segurança dos adquirentes e investidores. O patrimônio de afetação e a SPE são dois modelos amplamente utilizados para mitigar riscos, cada um com suas vantagens e limitações.

A escolha entre um ou outro depende do grau de segurança desejado. No cenário ideal, a combinação de ambos os mecanismos representa a solução mais robusta.

Dessa forma, os adquirentes devem realizar análises detalhadas antes da aquisição de imóveis na planta, assegurando-se de que estão protegidos contra eventuais dificuldades financeiras das construtoras e incorporadoras. Além disso, órgãos reguladores e instituições financeiras devem continuar aprimorando mecanismos de fiscalização para evitar que eventuais falhas na implementação da SPE ou do patrimônio de afetação prejudiquem os consumidores e o mercado como um todo.

__________

1 BRASIL. Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação, dentre outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.

2 STJ - Superior Tribunal de Justiça. Acórdãos sobre Patrimônio de Afetação. Disponível em: https://www.stj.jus.br.

3 MORDOR INTELLIGENCE. Residential Real Estate Market in Brazil. Disponível em: https://www.mordorintelligence.com/pt/industry-reports/residential-real-estate-market-in-brazil.

4 METRÓPOLES. Imóveis: Vendas crescem 17,9% e batem recorde no 2º trimestre de 2024. Disponível em: https://www.metropoles.com.

Gabriel de Sousa Pires

VIP Gabriel de Sousa Pires

Advogado, ex-Conselheiro Seccional e atual membro da Comissão de Seleção da OAB-DF. Especialista em Direito Contratual, Imobiliário e Empresarial. Sócio da J Pires Advocacia & Consultoria

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca