MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Inadimplência no Brasil e seus vieses

Inadimplência no Brasil e seus vieses

A inadimplência no Brasil, exacerbada pela pandemia, afetou milhões. Embora tenha diminuído em 2021-2022, ainda atinge 40% da população, exigindo atenção contínua.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Atualizado em 7 de fevereiro de 2025 10:48

Inicialmente, é preciso fazer um breve contexto do cenário em que nos encontramos hoje: como se sabe, o Brasil há muito tem parcela de sua população considerada inadimplente, parcela essa monitorada pelos índices de pessoas com dívidas em atrasos e gerenciado pelos birôs de crédito idealizados para essa finalidade. 

Sem desconsiderar outros momentos históricos, mas voltando poucos anos na história, com a pandemia da Covid-19 nos anos de 2019 e 2020, inúmeros brasileiros enfrentaram dificuldades financeiras, mediado pelo desemprego, queda de renda, retração significativa do consumo e consequentemente, o aumento de dívidas. Nessa época, o Brasil registrou recordes históricos, com a taxa superior a 63 milhões de brasileiros inadimplentes.

Com o avanço da vacina e retomada tímida da economia, o ano de 2021 e 2022 registraram o início da queda da inadimplência no país. Já os anos de 2023 e 2024 denotam que o assunto ainda requer muita atenção, oportunidade em que os indicadores apontam cerca de 62 milhões de brasileiros com dívidas não quitadas. Esse número reflete cerca de 40% da população. 

Pois bem. 

Quando se aborda o tema, não é raro a interpretação direta de que o principal afetado pela inadimplência é o credor que não teve/terá seu crédito satisfeito. Mas a verdade é que esse tema envolve muitas outras camadas e demanda enfrentamento. 

Nesse escrito, queremos traçar uma breve linha sobre o tema e destacar de modo não taxativo alguns efeitos da inadimplência no Brasil: 

  1. Risco de crédito e perda da confiança financeira: Quando uma quantidade expressiva de consumidores não logra êxito em quitar suas dívidas, as instituições concessoras precisam amortizar o risco de não pagamento do valor concedido através do aumento da provisão de perda, risco de crédito e reajuste das políticas de concessões. 
  2. Aumento da taxa de juros: Proporcional ao aumento da inadimplência, muitas vezes os bancos precisam tornar os juros mais caros para equilibrar eventuais perdas vinculadas a crédito não pagos. 
  3. Impacto nas instituições credoras: Além dos riscos mencionados, as instituições igualmente enfrentam um aumento em seu custo operacional relacionados à gestão da dívida e da carteira envolvida. Também por isso, não são raras as empresas de cobrança instituídas pelos bancos a fim de terceirizar a frente de cobrança, de modo que a instituição bancária não perca a essência de seu negócio realizando a gestão de créditos deteriorados. 
  4. Retração no crédito: Em um cenário de inadimplência desfavorável, os credores podem ficar mais cautelosos ao conceder créditos, evitando ofertas de incentivo ao financiamento, e isso tende a afetar diretamente setores de trânsito contínuo, como construção, varejo e setor automobilístico.   
  5. Insegurança dos investidores: Altos níveis de inadimplência deixa a economia sensível, frágil e instável, chamando pouca atenção de investidores internos e externos.  
  6. Subemprego: Em uma realidade com redução do consumo, pequenas e médias empresas podem reduzir ou demitir contratações. Isso, somado ao próprio cenário de endividamento de muitos brasileiros, podem os levar a se submeter a trabalhos precários e informais, ao total arrepio das proteções previstas na CLT - Consolidação das Leis do Trabalho. 
  7. Aumento das desigualdades: Indicadores apontam que a população mais afetada pelo endividamento recebe entre 2 e 5 salários-mínimos. Nesse sentido, as classes sociais mais baixas são as mais vulneráveis e mais afetadas pelo desemprego, inflação, juros e choque econômico. Torna-se um ciclo vicioso em que consumidores adquirem empréstimos à juros mais altos para quitar dívidas emergenciais e aumentam seu saldo devedor pela alta nas condições do financiamento. Foi inclusive buscando contornar graves cenários como esse que incentivos como a lei do superendividamento (lei 14.181/21) e o desenrola Brasil surgiram.
  8. Intervenção estatal: A depender do cenário, o Estado pode precisar intervir através de políticas de incentivo ao crédito, como já citado acima. Além disso, casos mais graves que afeta empresas e o consumo, o Estado pode precisar aumentar os gastos públicos para sustentar a economia, o que pode fazer aumentar a dívida pública, e influenciar negativamente nos investimento em áreas substanciais, como educação e saúde. 

Como visto, o assunto da inadimplência é urgente e merece envolvimento e preocupação de todos que são direta e indiretamente afetados. 

Assim, trazendo essa discussão para o âmbito judicial, dois exemplos bem refletem o quanto esse assunto carece de aprofundamento: as milhares de ações genéricas que desaguam em decisões de declaração de inexistência/inexigibilidade do débito e a cultura da dívida que "caduca", essas fomentadas indiretamente pelos julgamentos procedentes sem qualquer critério ou análise objetiva que não em benesse do consumidor vulnerável. 

No primeiro exemplo citado, são vistos as centenas de milhares de ações genéricas de desconhecimento da cobrança/negativação indevida em demandas propostas pelo rito dos juizados especiais. Na ocasião, pleiteia-se a declaração de inexigibilidade da dívida e o dano moral. Essas ações, por envolver relação de consumo, tem a aplicação do CDC. 

Na prática, observa-se que princípios e institutos importantes têm sido banalizados, como a própria inversão do ônus probante e confusão entre hipossuficiência e vulnerabilidade do consumidor. Tais demandas, como as reclamações de negativação indevida, são exemplos de casos em que os autores sequer fazem juntada de extrato de negativação oficial em muitos casos, o que, diga-se de passagem, é prova de fácil acesso e substancial para sustentar o mérito da demanda. 

Com essa cultura em voga, a consequência tem sido óbvia: o Poder Judiciário tem se tornado loteria sem riscos reais de prejuízos aos litigantes. A facilidade na propositura de ações com pedidos de assistência judiciária gratuita sem muitas fiscalizações; a postura do judiciário em flexibilizar as peças e provas que instruem as demandas; e o movimento de litigância abusiva que tem sido instada por alguns advogados criam as condições perfeitas para tal judicialização em massa e decisões que agridem diretamente essa e outras esferas do país. 

Sobre o tema, conforme dados levantados pelo CNJ através da "A Justiça em Números", o aumento sem contexto da judicialização no Brasil causa fortes impactos na atualidade1:  

No final de 2023, 83,8 milhões de processos aguardavam desfecho na Justiça, alta de 1,1% em relação ao final de 2022. Entre as razões para o aumento, está a alta de processos que tramitam em juizados especiais, especialmente na Justiça Federal. Em 2023, foram 1,3 milhão de processos a mais desse tipo. [...]O ingresso de casos novos atingiu o maior patamar da série histórica, com o volume de 35,3 milhões em 2023, alta de 9,4% frente a 2022. Desses, excluídos os recursos e as execuções judiciais, 22,6 milhões ingressaram pela primeira vez na Justiça em 2023. A Justiça julgou 33,2 milhões de processos em 2023, o maior volume da série histórica. O total corresponde a um aumento de 11,3% em relação a 2022 e de 40,3% no acumulado dos últimos 14 anos. Também foram baixados 35 milhões de processos.

Figura 1 - Recorte de "A Justiça em Números", CNJ, 2024, página 19.

Nesse contexto, sempre que demandas de massa desaguam - sem muito critério - em decisões de inexigibilidade de débito, as Empresas credoras precisam baixar esses débitos internamente. Todavia, uma dívida inadimplida não deixa de existir simplesmente. Essa insolvência não será sentida pelo devedor que a contraiu, mas será sentida por toda a população que indiretamente sofrerá os efeitos da inadimplência, conforme alguns exemplos aqui elencados. 

A nosso ver, esse tema tem raízes muito mais profundas e culturais no Brasil. Mais do que aprender a somar e subtrair nos bancos das escolas, jovem e adultos precisam ser ensinados sobre educação financeira e regras básicas de economia. Do mesmo modo, como demonstrado, o poder judiciário exerce papel de fundamental importância na saúde financeira e econômica de nosso país. Por tal razão, escritos como esse tem o simples objetivo de provocar e causar reflexão para com os que têm poder de decisão e para os que o poder de influenciá-los.

__________

1 "A Justiça em Números". Conselho Nacional de Justiça. 2024.

Isabela Conceicao Oliveira Pereira

Isabela Conceicao Oliveira Pereira

Sócia do Mascarenhas Barbosa Advogados. Advogada, especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - (UPM). Pós-graduanda em Direito da Proteção e Uso de Dados pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - (PUC Minas). Coordenadora de equipe jurídica cível contencioso, com experiência na condução de ações consumeristas e envolvendo LGPD.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca