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Testamento particular: Tradição e inovação digital

Este artigo visa explorar as formalidades dos testamentos particulares e refletir sobre os desafios e oportunidades apresentados pela digitalização.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Atualizado às 14:31

1. Introdução

O testamento particular ocupa um lugar único no direito das sucessões brasileiras, oferecendo uma alternativa privada e flexível para a declaração de última vontade. No entanto, sua validade jurídica é condicionada ao cumprimento de formalidades específicas, estabelecidas para salvaguardar a autenticidade da vontade do testador.

2. As formalidades legais do testamento particular

De acordo com o art. 1.876 do CC, os testamentos particulares podem ser escritos de próprio punho ou por meio mecânico.

Ambos os métodos exigem precauções rigorosas:

  • Testamento manuscrito: O autor do testamento deve escrevê-lo de próprio punho, lê-lo e assiná-lo na presença de no mínimo três testemunhas. As testemunhas devem, igualmente, assinar o testamento, atestando a veracidade e a voluntariedade da declaração.
  • Testamento mecânico: Este deve ser produzido sem rasuras ou espaços em branco. O testador deve ler e assinar o documento diante de, pelo menos, três testemunhas, que também devem assinar o testamento para confirmar que presenciaram o ato.

3. Debates doutrinários e evoluções jurisprudenciais

A necessidade de o testador assinar cada página de um testamento mecânico é objeto de debate. Zeno Veloso (2012) defende que a lei não exige a rubrica em cada folha, sendo suficiente a assinatura na última página do documento.

Flávio Tartuce (2023) ecoa esse posicionamento, argumentando que a ausência de uma norma explícita sobre rubricas adicionais alinha-se com a interpretação mais flexível das formalidades.

Em uma virada significativa, o STJ, em 2020, validou um testamento particular com assinatura digital, reconhecendo que os métodos modernos de autenticação podem servir adequadamente para confirmar a identidade e a vontade do testador, mesmo na ausência de uma assinatura manuscrita tradicional.

Destaca-se:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONFIRMAÇÃO DE TESTAMENTO PARTICULAR ESCRITO POR MEIO MECÂNICO. OMISSÃO E OBSCURIDADE NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INOCORRÊNCIA. QUESTÃO ENFRENTADA E PREQUESTIONADA. SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA. AUSÊNCIA DE ASSINATURA DE PRÓPRIO PUNHO DO TESTADOR. REQUISITO DE VALIDADE. OBRIGATORIEDADE DE OBSERVÂNCIA, CONTUDO, DA REAL VONTADE DO TESTADOR, AINDA QUE EXPRESSADA SEM TODAS AS FORMALIDADES LEGAIS. DISTINÇÃO ENTRE VÍCIOS SANÁVEIS E VÍCIOS INSANÁVEIS QUE NÃO SOLUCIONA A QUESTÃO CONTROVERTIDA. NECESSIDADE DE EXAME DA QUESTÃO SOB A ÓTICA DA EXISTÊNCIA DE DÚVIDA SOBRE A VONTADE REAL DO TESTADOR. INTERPRETAÇÃO HISTÓRICO-EVOLUTIVA DO CONCEITO DE ASSINATURA. SOCIEDADE MODERNA QUE SE INDIVIDUALIZA E SE IDENTIFICA DE VARIADOS MODOS, TODOS DISTINTOS DA ASSINATURA TRADICIONAL. ASSINATURA DE PRÓPRIO PUNHO QUE TRAZ PRESUNÇÃO JURIS TANTUM DA VONTADE DO TESTADOR, QUE, SE AUSENTE, DEVE SER COTEJADA COM AS DEMAIS PROVAS. 1- Ação ajuizada em 26/01/2015. Recurso especial interposto em 02/06/2016 e atribuído à Relatora em 11/11/2016. 2- Os propósitos recursais consistem em definir se: (i) houve omissão relevante no acórdão recorrido; (ii) é válido o testamento particular que, a despeito de não ter sido assinado de próprio punho pela testadora, contou com a sua impressão digital. 3- Deve ser rejeitada a alegação de omissão, obscuridade ou contradição quando o acórdão recorrido se pronuncia, ainda que sucintamente, sobre as questões suscitadas pela parte, tornando prequestionada a matéria que se pretende ver examinada no recurso especial. 4- Em se tratando de sucessão testamentária, o objetivo a ser alcançado é a preservação da manifestação de última vontade do falecido, devendo as formalidades previstas em lei serem examinadas à luz dessa diretriz máxima, sopesando-se, sempre casuisticamente, se a ausência de uma delas é suficiente para comprometer a validade do testamento em confronto com os demais elementos de prova produzidos, sob pena de ser frustrado o real desejo do testador. 5- Conquanto a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça permita, sempre excepcionalmente, a relativização de apenas algumas das formalidades exigidas pelo Código Civil e somente em determinadas hipóteses, o critério segundo o qual se estipulam, previamente, quais vícios são sanáveis e quais vícios são insanáveis é nitidamente insuficiente, devendo a questão ser examinada sob diferente prisma, examinando-se se da ausência da formalidade exigida em lei efetivamente resulta alguma dúvida quanto a vontade do testador. 6- Em uma sociedade que é comprovadamente menos formalista, na qual as pessoas não mais se individualizam por sua assinatura de próprio punho, mas, sim, pelos seus tokens, chaves, logins e senhas, ID's, certificações digitais, reconhecimentos faciais, digitais e oculares e, até mesmo, pelos seus hábitos profissionais, de consumo e de vida captados a partir da reiterada e diária coleta de seus dados pessoais, e na qual se admite a celebração de negócios jurídicos complexos e vultosos até mesmo por redes sociais ou por meros cliques, o papel e a caneta esferográfica perdem diariamente o seu valor e a sua relevância, devendo ser examinados em conjunto com os demais elementos que permitam aferir ser aquela a real vontade do contratante. 7- A regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular, pois, traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção juris tantum, admitindo-se, ainda que excepcionalmente, a prova de que, se porventura ausente a assinatura nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador. 8- Hipótese em que, a despeito da ausência de assinatura de próprio punho do testador e do testamento ter sido lavrado a rogo e apenas com a aposição de sua impressão digital, não havia dúvida acerca da manifestação de última vontade da testadora que, embora sofrendo com limitações físicas, não possuía nenhuma restrição cognitiva. 9- O provimento do recurso especial por um dos fundamentos torna despiciendo o exame dos demais suscitados pela parte. Precedentes. 10- Recurso especial conhecido e provido.

(STJ - REsp: 1633254 MG 2016/0276109-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 11/03/2020, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 18/03/2020)

4. Conclusão

O encontro entre a tradição testamentária e as inovações tecnológicas desafia conceitos jurídicos estabelecidos e sugere uma adaptação das práticas legais. Este artigo ressalta a necessidade de um diálogo contínuo entre a lei, a doutrina e a jurisprudência para refletir de maneira equilibrada e eficaz as realidades emergentes.

__________

1 VELOSO, Zeno. (2012). Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva.

2 TARTUCE, Flávio. (2023). Direito das Sucessões. Rio de Janeiro: Forense.

3 STJ. (2020). REsp 1.633.254/MG, j. 11.03.2020, Dje 18.03.2020.

Charys Baldissera

VIP Charys Baldissera

Formada em Administração e Direito, com três pós-graduações, incluindo Direito Civil. Especialista em Direito Imobiliário, Sucessório e de Família, focada em soluções patrimoniais e familiares.

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