Súmula 552 do STJ precisa ser cancelada
A súmula 552 do C. STJ, precisa ser cancelada em razão de sua hierarquização e metrificação de deficiências em relação à visão monocular (súmula 377, STJ).
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
Atualizado às 08:36
Com a devida vênia, sempre me pareceram contraditórias as súmulas 377 e 552 do C. STJ. A primeira prevê que a visão monocular confere direito à vaga de deficiente e a segunda prevê que a surdez unilateral não configura deficiência para o direito à mesma vaga reservada a deficientes.
Em nosso modesto entendimento, o confronto entre as duas súmulas parece criar um paradoxo axiológico incontornável: a visão seria mais relevante que a audição. Haveria uma implícita metrificação e hierarquização de deficiências.
Poderíamos reforçar esse paradoxo com a observação de que quem enxerga, ainda que seja completamente surdo, poderia fazer a leitura labial e contornar a deficiência auditiva. Por outro lado, pessoas com deficiência visual costumam utilizar com maior eficiência o sentido da audição.
Sinceramente, tal escolha equivale à escolha de Sofia1, no filme estrelado por Meryl Streep, onde a mãe deve escolher qual dos filhos deve ser morto num campo de concentração.
A simples comparação e/ou hierarquização entre deficiências é inviável pela ótica Kantiana de que o ser humano é um fim em si mesmo e não instrumento desta ou daquela vontade. Tanto as vidas humanas quanto as deficiências físicas são valores insuscetíveis de metrificação e/ou hierarquização.
Data máxima vênia, não há, na vida real, hierarquia valorativa de sentidos e a ausência de quaisquer dos sentidos é uma deficiência a ser reconhecida pelo Direito. A simples comparação de deficiências (implícita na leitura conjunta dos enunciados do STJ) é um amesquinhamento da essência humana e vilipêndio ao princípio constitucional da dignidade humana. Não há dignidade quantificada, mas apenas a própria dignidade em sua essência.
Súmulas do STJ
Assim estabelecem as mencionadas súmulas:
"SÚMULA 377 - O portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes. (SÚMULA 377, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/04/2009, DJe 24/05/2013, DJe 05/05/2009)
SÚMULA 552 - O portador de surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência para o fim de disputar as vagas reservadas em concursos públicos. (SÚMULA 552, CORTE ESPECIAL, julgado em 04/11/2015, DJe 09/11/2015)"
Data vênia, não me parece que essa análise de súmulas passaria pelo crivo da proporcionalidade da aplicação do princípio da isonomia.
Poderia o intérprete criar uma hierarquia ou uma métrica de deficiências inexistentes no mundo dos fatos?
Pensamos que qualquer ausência de sentidos interfere na isonomia substancial em relação aos não portadores de deficiência.
Nesse sentido é a previsão do Estatuto da Pessoa com deficiência:
"Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas."
No mesmo diapasão, citaríamos o mestre Celso Antonio Bandeira de Mello2 em sua obra "Conteúdo jurídico do princípio da igualdade" onde ensina que a diferenciação deve ter uma razão jurídica para que não se configure como arbitrária.
Data vênia, não há conteúdo jurídico numa diferenciação hierárquica de deficiências.
Competência legislativa
A competência legislativa para normas de proteção e integração de pessoas portadoras de deficiência é concorrente entre União, Estados e Distrito Federal.
Assim, prevê a Carta Federal de 1988:
"Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;"
Portanto, não há que se falar em suposta necessidade de norma do próprio ente político para que que haja tal reconhecimento da cota para pessoa portadora de surdez unilateral. A existência da lei Federal 14.768/23 é o suficiente para o reconhecimento da surdez unilateral como deficiência apta ao enquadramento na cota reservada a deficientes em concursos públicos da União, dos Estados e dos municípios.
No caso do Estado de São Paulo, há lei prevendo tal reconhecimento. Trata-se da lei estadual 16.769/18.
Em sede de interesses difusos, a interpretação a ser dada é a mesma que é reconhecida em meio ambiente: a norma mais protetiva deve ser aplicada.
Jurisprudência da corte bandeirante
Num caso envolvendo a contratação de professores pelo município de Ribeirão Preto, o E. TJ/SP reconheceu a hermenêutica referida.
Assim:
"Ementa: CONCURSO PÚBLICO - Pedido de inclusão na lista para pessoas com deficiência - Autora portadora de surdez unilateral - Edital que exigiu surdez bilateral, nos termos do Decreto Federal nº 3.298/1999 e da Súmula 552/STJ - Instrumento convocatório publicado já na vigência da Lei Estadual nº 16.769/2018, que garante aos portadores de surdez unilateral o direito de concorrência na lista para pessoas com deficiência em concursos públicos - Prevalência da legislação estadual específica e posterior - Precedentes jurisprudenciais - Sentença de procedência mantida - Apelação da Municipalidade não provida"
(Apelação 1007529-29.2019.8.26.0506, Relator: Fermino, Magnani Filho, Comarca de Ribeirão Preto, 5ª Câmara de Direito Público, julgamento e publicação: 02/05/2024 - grifos nossos)
No caso acima, o Tribunal decidiu com base em lei estadual. Também poderia ter sido fundamentada na lei Federal3 14.768/23. Prevê referida lei:
"Art. 1º Considera-se deficiência auditiva a limitação de longo prazo da audição, unilateral total ou bilateral parcial ou total, a qual, em interação com uma ou mais barreiras, obstrui a participação plena e efetiva da pessoa na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas." (grifos nossos).
Princípio da responsabilidade hermenêutica
Inobstante a doutrina costume denominar o art. 20 da LIND como "princípio do consequencialismo", preferimos a denominação "responsabilidade hermenêutica" já que enfatiza que é o intérprete o responsável pela situação real que será gerada.
Pensamos que a tal regra deve ser respeitada, inclusive, no cotejo entre súmulas. Assim, prevê referida regra batizada por nós de "princípio da responsabilidade hermenêutica":
"Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão."
Vênia concessa, as súmulas não podem ter abstração que gere incongruências entre si, tampouco podem estratificar injustiças ou metrificar a dignidade humana.
Conclusão
A surdez unilateral é deficiência que autoriza o candidato a participar na cota de deficiente em concursos públicos em razão da previsão da lei Federal 14.768/23. Trata-se de regra cuja competência legislativa é concorrente entre União, Estados e Distrito Federal. A súmula 552 do C. STJ, precisa ser cancelada em razão de sua hierarquização e metrificação de deficiências em relação à visão monocular (súmula 377, STJ) sendo ofensiva ao princípio da dignidade humana.
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1 https://jornal.usp.br/articulistas/fabio-frezatti/escolha-de-sophia-sempre-esta-presente-na-vida-so-precisamos-perceber/
2 "Conteúdo jurídico do princípio da igualdade", Ed. Malheiros, 2.004, passim
3 Rigorosamente uma lei "nacional" e não federal.