O tema 1.281/STJ e a decisão na primeira fase da ação de exigir contas
O texto pretende discutir a natureza jurídica do pronunciamento judicial que aprecia a primeira fase da ação de exigir contas e qual o recurso cabível (e se há fungibilidade recursal).
terça-feira, 28 de janeiro de 2025
Atualizado às 09:34
Este ensaio pretende contribuir para o debate que está sendo realizado na 2ª seção do STJ (Tema 1281).
O órgão colegiado afetou importante discussão acerca da natureza jurídica do pronunciamento judicial que aprecia a primeira fase da ação de exigir contas e qual o recurso cabível (e se há fungibilidade recursal).
Como restou divulgado no informativo 825, de 17/9/24, a 2ª seção da Corte acabou de afetar os REsps 2.109.502-SP, 2.110.632-SP, 2.116.714-SP, e 2.116.715-SP ao rito dos recursos repetitivos, com o objetivo de uniformizar o entendimento da seguinte questão controvertida:
"Possibilidade da aplicação do princípio da fungibilidade em apelação interposta contra ato judicial que julga a primeira fase da ação de exigir/prestar contas, ou sua impossibilidade, por se tratar de erro grosseiro, pelo entendimento de ser uma decisão parcial de mérito, quando procedente, desafiando o recurso de agravo de instrumento, ou terminativa de mérito, quando improcedente, a autorizar o manejo da apelação".
A Comissão Gestora de Precedentes do STJ observou a existência de múltiplas ações, com impacto jurídico, ligadas ao tema aqui discutido, com a necessidade de enfrentamento específico de dois aspectos: a) admissibilidade recursal; b) possibilidade de incidência do princípio da fungibilidade. Houve determinação de suspensão dos processos pendentes que versem acerca das questões afetadas.
Realmente, penso que há a necessidade de definir, sob a sistemática dos repetitivos, qual o recurso cabível em face do pronunciamento que aprecia a primeira fase da ação de exigir contas, bem como se há ou não possibilidade de aplicação da fungibilidade entre a apelação e o agravo de instrumento.
Portanto, visando contribuir com o debate, é necessário partir de uma premissa: o procedimento especial da ação de exigir contas (arts. 550 a 553, do CPC) permite variáveis pronunciamentos judiciais em suas múltiplas fases, o que gera a necessidade de atenção especial ao intérprete em relação ao meio impugnativo cabível no caso concreto.
Com efeito, a fase cognitiva (de formação do eventual e futuro título executivo judicial) desta ação de procedimento especial é dividida em dois momentos, cada um com objeto cognitivo específico e com multiplicidade de decisões judiciais que podem ser proferidas nos casos concretos.
Consequentemente, a primeira fase deste procedimento objetiva, em regra, a análise de seus requisitos formais; sem, contudo, adentrar no mérito e na própria valoração dos documentos apresentados pelos atores processuais, bem como se há ou não a necessidade de apuração de eventual saldo quantitativo em favor de algum dos litigantes.
Uma conclusão parcial deve ser apresentada, visando a continuação do debate: no pronunciamento final desta fase há, inclusive fazendo a leitura do art. 550, §5º, do CPC, um juízo de valor positivo ou negativo em relação à continuidade do procedimento: uma apreciação de aspectos formais visando a deliberação se haverá ou não o prosseguimento do iter procedimental ou se será hipótese de encerramento do feito. Em seguida, ocorrendo saldo a apurar, será prolatada sentença no momento procedimental seguinte e inaugurada a fase de cumprimento de sentença (art. 552, do CPC).
E qual é a natureza jurídica do pronunciamento judicial nesta primeira fase? Depende da continuidade ou não do feito, podendo ser sentença ou decisão interlocutória (processual ou de mérito). No tema, bem elucidativa é esta passagem da ementa do acórdão da 3ª turma do STJ (REsp 2000936 / RS - relatora ministra Nancy Andrighi - J. 21/6/22 - DJ 23/6/22):
"A ação de exigir contas é prevista para se desenvolver em duas fases. Na primeira, verifica-se se há o direito de exigir as contas. Na segunda, analisa-se a adequação das contas prestadas, determinando-se a existência ou não de saldo credor ou devedor. Constatada a existência de saldo, passa-se à fase de cumprimento de sentença, oportunidade em que é revelada a natureza dúplice, já que o polo ativo será assumido por quem a sentença reconhecer como credor".
A questão a ser formulada no caso concreto é a seguinte: os pronunciamentos judiciais proferidos nesta primeira fase - ligados à admissibilidade e ao prosseguimento da ação, são decisões interlocutórias (processuais ou de mérito) ou sentenças?
Não se pode esquecer que a Corte Especial do STJ entendeu que o art. 1.015, do CPC comporta a chamada taxatividade mitigada(Recursos Especiais Repetitivos 1.696.396/MT e 1.704.520/MT - DJe de 19/12/18), permitindo a interposição de agravo de instrumento em situações que não estão lá previstas, desde que atente a parte para a demonstração dos requisitos indicados neste julgamento.
Logo, se existir decisão interlocutória, tanto na primeira quanto na segunda fases da ação de exigir contas, que comporte recorribilidade imediata, o agravo de instrumento poderá/ deverá ser utilizado pelo prejudicado. Este ponto deve ser enfrentado no Tema 1281, da 2ª seção.
Portanto, como esta fase introdutória do procedimento tem objetivo bem determinado e cognição restrita, o pronunciamento judicial será: a) decisão interlocutória, em caso de acolhimento da pretensão e condenação do réu (obrigação de prestar contas ou não impugnar as que o autor apresentar - com a abertura da segunda fase - art. 550, §5º, do CPC); exclusão de litisconsorte, com o prosseguimento do feito em relação aos demais, etc; b) sentença, com a extinção do processo com ou sem resolução de mérito (art. 485 ou 487, do CPC), acaso não reconheça a presença dos requisitos previstos no art. 550, do CPC e finalize o procedimento.
No ponto, o CPC atual superou a previsão contida na legislação anterior (art. 915, §2º, do CPC/73) que consagrava como sentença, este pronunciamento que encerrava a primeira fase da ação de prestação de contas. A natureza do pronunciamento e a respectiva recorribilidade dependerão do prosseguimento ou não do feito, pelo que andou bem o art. 550, §5º, do CPC atual, ao intitulá-lo decisão.
Esse mesmo questionamento ocorre na apreciação da impugnação ao cumprimento de sentença, cujo pronunciamento judicial poderá ser sentença (se extinguir o cumprimento) ou decisão interlocutória. O enunciado 216 da III jornada de Direito Processual Civil do CJF trata dessa variação conceitual, no que acompanha alguns julgados do próprio STJ (ex. REsp 1.947.309 - relator ministro Francisco Falcão - J. em 07/2/23 - Dje 10/2/23).
Além da definição do recurso cabível, a 2ª Seção da Corte irá enfrentar a possibilidade (ou não) da fungibilidade recursal, ou mesmo quais seriam os requisitos para sua aplicação.
Particularmente entendo que, em situações comuns, não há que se falar em fungibilidade, devendo o intérprete analisar o caso concreto e a consequência processual decorrente do pronunciamento judicial, visando subsidiar a recorribilidade por apelação ou agravo de instrumento. A resposta negativa, pelo menos em regra, passa pela afirmação de que o assunto vem sendo enfrentado reiteradamente pela Corte da Cidadania.
No tema, vale transcrever parte da ementa do REsp 1680168 / SP (relator ministro Marco Buzzi - relator(a) p/ acórdão ministro Raul Araújo - 4ª T - J. em 9/4/19 - DJ de DJe 10/6/19), onde foi discutido, além do recurso cabível, própria fungibilidade entra a apelação e o agravo de instrumento:
"2. Na hipótese, a matéria é ainda bastante controvertida tanto na doutrina como na jurisprudência, pois trata-se de definir, à luz do Código de Processo Civil de 2015, qual o recurso cabível contra a decisão que julga procedente, na primeira fase, a ação de exigir contas (arts.550 e 551),condenando o réu a prestar as contas exigidas. 3. Não acarretando a decisão o encerramento do processo, o recurso cabível será o agravo de instrumento (CPC/2015, arts. 550, § 5º, e 1.015, II). No caso contrário, ou seja, se a decisão produz a extinção do processo, sem ou com resolução de mérito (arts. 485 e 487), aí sim haverá sentença e o recurso cabível será a apelação". 4. Recurso especial provido".
A propósito, as duas turmas de Direito Privado do STJ caminham neste entendimento quanto à variação da natureza jurídica do pronunciamento judicial, que poderá ser interlocutória ou sentença, a depender da continuidade ou não procedimento.
Nesta passagem da ementa de recentíssimo julgado relatado pelo excelentíssimo ministro Marco Aurélio Bellizze (AgInt nos EDcl no REsp 2142805 / SC - 3ª T - J. 9/9/24 - DJe 11/9/24), há exatamente essa indicação de uniformização do entendimento:
"1. Na linha do entendimento firmado pelas duas Turmas que integram a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, (i) se o julgamento na primeira fase da ação de exigir contas for de procedência do pedido, o pronunciamento jurisdicional terá natureza de decisão parcial de mérito e será impugnável por agravo de instrumento com base no art. 1.015, II, do CPC/2015; e (ii) se o julgamento da primeira fase da ação de exigir contas for de improcedência do pedido ou de extinção do processo sem resolução de mérito, o pronunciamento jurisdicional terá natureza de sentença e será impugnável por apelação".
Em outro julgado também recente, novamente a 3ª turma analisou o recurso cabível em caso de decisão parcial na primeira fase da ação de exigir contas, concluindo pela inexistência de fungibilidade. Vale transcrever a ementa:
"PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXIGIR CONTAS. PRIMEIRA FASE. DECISÃO QUE EXCLUI LITISCONSORTE PASSIVO. RECURSO CABÍVEL: AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. INAPLICABILIDADE. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 356, § 5º, E 1.015, II E VII, DO CPC. 1. Discute-se nos autos qual o recurso cabível contra a decisão proferida na primeira fase da ação de exigir contas, se agravo de instrumento ou apelação. 2. Os arts. 356, § 5º, e 1.015, II e VII, do CPC estabelecem como único recurso cabível o agravo de instrumento contra decisão que julgar parcialmente o mérito ou quando excluir litisconsorte do feito. 3. Demonstrado que há previsão explícita na legislação processual, a qual indica de forma clara a espécie recursal apropriada para o caso concreto, a equivocada interposição de um recurso em lugar de outro revela um erro inescusável, e não uma dúvida objetiva, configurando um equívoco material que conduz à decisão de não conhecimento" (AgInt no REsp 2123895 / MG - Rel. Min. Humberto Martins - J. 26/08/2024 - DJe 28/08/2024).
Assim, se a premissa é verdadeira (não resta dúvida quanto ao recurso cabível em face da decisão que aprecia a primeira fase da ação de exigir contas), é necessário lançar algumas luzes visando enfrentar se é cabível (ou quando é cabível) a fungibilidade recursal.
Como já mencionado, entendo que não há dúvida quanto ao recurso cabível, desde que a decisão judicial aponte a sua própria natureza e não gere dúvida razoável ao intérprete. Dito de outra forma: se o pronunciamento judicial laborar em equívoco (indicando que se trata, por exemplo, de sentença, sendo uma decisão interlocutória processual ou de mérito), gerar dúvida ou mesmo induzir em erro o recorrente, deve ser aplicado o princípio da fungibilidade.
Esta fungibilidade, portanto, advém da verificação e análise do caso concreto. No ponto, vale destacar trecho do REsp 2.055.241/SP (3ª turma/STJ - relatora ministra Nancy Andrighi - J. 13/6/23, DJe de 16/6/23):
"Hipótese em exame, contudo, que possui as seguintes particularidades que justificam a incidência do princípio da fungibilidade, não em razão da atecnia legislativa, mas em virtude da atecnia judicial: (i) o ato judicial impugnado foi rotulado e nomeado, na fundamentação, como sentença pelo juiz que o proferiu; e (ii) o ato judicial era objetivamente complexo, circunstância não observada em nenhum dos precedentes desta Corte, pois houve a rejeição da impugnação à gratuidade judiciária, a extinção de parte dos pedidos sem resolução de mérito, a procedência de um dos pedidos para julgar boas as contas apresentadas e a procedência de dois pedidos para condenar o réu a prestar as contas".
A 4ª turma também consagra a possibilidade de aplicação da fungibilidade em caso de dúvida relacionada à natureza da decisão aqui discutida:
"A jurisprudência do STJ firmou o entendimento no sentido de que "o ato judicial que encerra a primeira fase da ação de exigir contas possuirá, a depender de seu conteúdo, diferentes naturezas jurídicas: se julgada procedente a primeira fase da ação de exigir contas, o ato judicial será decisão interlocutória com conteúdo de decisão parcial de mérito, impugnável por agravo de instrumento; se julgada improcedente a primeira fase da ação de exigir contas ou se extinto o processo sem a resolução de seu mérito, o ato judicial será sentença, impugnável por apelação", todavia, "Havendo dúvida objetiva acerca do cabimento do agravo de instrumento ou da apelação, consubstanciada em sólida divergência doutrinária e em reiterado dissídio jurisprudencial no âmbito do 2° grau de jurisdição, deve ser afastada a existência de erro grosseiro, a fim de que se aplique o princípio da fungibilidade recursal" (REsp 1.746.337/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 9.4.2019, DJe de 12.4.2019). 2. Agravo interno a que se nega provimento". (AgInt nos EDcl no REsp n. 1.831.900/PR, relatora Ministra MARIA ISABEL GALOTTI, Quarta Turma, julgado em 20/4/2020, DJe de 24/4/2020)".
É razoável afirmar, portanto, que existem alguns requisitos para a incidência da fungibilidade recursal: dúvida objetiva, defeito na comunicação judicial - induzir em erro, etc. Não estando presentes estas situações específicas, entendo que não existe espaço para a fungibilidade recursal.
São estas as contribuições para este importante debate.