A verdade sobre a revogação da INRFB 2.219/24
O governo revogou a IN 2.219/24, que exigia dados bancários detalhados, após confusão sobre a taxação do pix, gerando reações e sendo vista como violação de sigilo.
terça-feira, 28 de janeiro de 2025
Atualizado às 13:20
A veiculação de fake news sobre a taxação do pix foi o motivo alegado pelo governo para revogar a Instrução Normativa da Receita Federal em epígrafe.
Concorda com essa motivação o meu preclaro amigo, Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal que veiculou um texto intitulado "Notas sobre uma pixotada".
Com a devida vênia penso que não foi bem assim. Examinemos.
A IN da SRF de 2.219, de 17/12/24, contém 32 artigos e inúmeros parágrafos, incisos e alíneas redigidas de forma bastante detalhista e com inusitado sadismo burocrático, muito ao gosto das normas redigidas pelos burocratas do governo, a exemplo da regulamentação do IBS/CBS pela LC 135/25 que contém cerca de 1.000 normas se considerados os 542 artigos e infindáveis parágrafos, incisos e alíneas que criam um verdadeiro inferno fiscal, que implanta o maior imposto incidente sobre o consumo do mundo.
A IN sob comento obriga as instituições financeiras em geral e as demais pessoas jurídicas, entre elas, aquelas que operam com planos e benefícios de previdência complementar e empresas que tenham como principal atividade ou acessória a captação, intermediação de recursos financeiros próprios ou de terceiros a prestar informações de dados bancários (art. 2º).
Essas informações devem ser prestadas à SRF por meio de e-Financeira, dentro do prazo regulamentar, sob pena de pesadas multas previstas no art. 30 da lei 10.637/02 e arts. 35 e 57 da MP 2.158-35/01 (arts. 4º e 5º).
As informações a serem prestadas compreendem à identificação dos titulares das operações financeiras e comitentes finais devendo incluir:
I - Nome, nacionalidade, residência fiscal, endereço e número das contas ou equivalentes, individualizados por conta do contrato na instituição declarante;
II - Número do CPF/CNPJ;
III - número de Identificação Fiscal - NIF no exterior, caso tenha sido adotado pelo país de residência fiscal;
IV- Nome empresarial;
V - Saldos e montantes globais mensalmente movimentados;
VI - Moeda utilizada; e
VII - demais informações cadastrais (art. 10 cc art. 12).
As entidades financeiras e outras equiparadas deverão informar as operações financeiras quando o montante global movimentado em cada mês for superior a:
I - R$ 5 mil se for pessoa física; e
II - R$ 15 mil em caso de pessoa jurídica (art. 15).
Mas, não é só. Não se trata de informar apenas as movimentações de recursos financeiros por meios eletrônicos, inclusive, por via pix ou cartões de crédito/débito, mas também, quando o saldo bancário em cada mês for superior aos limites previstos nos incisos I e II retroapontados, isto é, R$ 5 mil e R$ 15 mil respectivamente, para as pessoas físicas e jurídicas.
Trata-se de uma verdadeira devassa generalizada, bisbilhotando indevidamente toda a vida financeira das pessoas, a pretexto de prevenir fraudes e sonegação de impostos. Com um batalhão de agentes fiscais experientes e competentes na Administração Tributária da União, integrada por servidores efetivos de carreira específica, com recursos prioritários para o desempenho de suas atividades (art. 37, XXIII) da CF), com certeza, haveria outros meios idôneos para prevenir da sonegação fiscal, sem a necessidade de devassar, de forma genérica, a vida financeira de milhões de contribuintes.
Houve reação negativa da população, inclusive, vítima de ação de golpistas que acenavam com a necessidade de pagar uma taxa do pix, juntando boleto de pagamento com sinal da SRF nas mensagens disparadas por meio de aplicativos ou por e-mails aos incautos correntistas.
A confusão se instaurou de tal forma que o governo determinou a revogação dessa IN, o que aconteceu no dia 15/1/25.
Deixando de lado as paixões que dominaram na abordagem desse assunto e os equívocos em torno da taxação do pix temos para nós que a IN 2.219/24 violava patentemente o sigilo bancário.
Em suas "perguntas e respostas" a SRF informava que a determinação contida na IN 2.219/24 tinha amparo na LC 105, de 10/1/01.
Na verdade, não tinha, pelo contrário, violava ostensivamente o seu art. 6º que assim prescreve:
Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.
Como se verifica, as autoridades administrativas e agentes do fisco somente podem ter acesso a documentos, livros e registros das instituições financeiras quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Esse art. 6º em que se fundou a IN 2.219/24 pressupõe um caso concreto, individualizado. Sem pendência de processo ou procedimento fiscal contra determinado contribuinte não será possível acessar seus dados bancários diretamente ou por meio de informações obrigatórias a serem prestadas pelas instituições financeiras.
A interpretação desse art. 6º pelo STF sofreu vacilações ao longo do tempo, ora pela constitucionalidade da norma, ora pela sua inconstitucionalidade, sendo certo que, em 2017, a Corte Suprema, em sede de repercussão geral (Tema 225), fixou a seguinte tese:
O art. 6º da Lei Complementar nº 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o traslado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal (RE nº 601.314/RG-SP, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 16-9-2017).
Duas são as condições impostas pelo STF: a) observância de requisitos objetivos; e b) transferência do sigilo da instituição bancária para o fisco.
Esse julgado do Pretório Excelso Nacional não autoriza requisições de informações bancárias de forma genérica e abstrata como fez a malsinada IN revogada, mas, exige requisitos objetivos, quais sejam a existência de processo administrativo ou de procedimento fiscal contra determinado contribuinte-correntista, ainda assim, se essa requisição for reputada indispensável a juízo da autoridade administrativa competente. Quanto ao traslado do sigilo, difícil o seu não rompimento se os dados bancários extraídos forem utilizados no processo administrativo de natureza pública.
Em que pese o legítimo interesse do fisco de evitar a ocorrência de sonegação de impostos nada autoriza a uma norma subalterna da SRF requisitar informações bancárias por atacado, ofendendo, às escâncaras, o direito do cidadão assegurado pelo art. 5º inciso XI da CF.
Tanto a jurisprudência do STJ, como a do STF considera o sigilo bancário como espécie do direito à privacidade consagrado no citado inciso constitucional.
Em boa hora foi revogado esse instrumento normativo da SRF que tanta confusão gerou no seio da sociedade durante os poucos dias de sua vigência.
Cedo ou tarde essa INRFB 2.219/20924 seria contestada no Judiciário.
Mas, não foi a eiva de inconstitucionalidade que levou o governo a revogar a tão extravagante medida, pois a afronta à CF já se incorporou na rotina do governo, muitas vezes, com o apoio do Judiciário.
A verdadeira razão foi o perigo de desgaste da impoluta imagem do chefe do Executivo devido à reação em massa da sociedade leiga, que deixou se levar pela falsa notícia de que o pix enseja cobrança de taxa, absolutamente impossível juridicamente, porque a CF só permite a taxação da movimentação financeira por meio do IOF.
O ilustre ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o defensor perpétuo da boa imagem de seu chefe, saiu apressadamente a campo em busca de um bode expiatório. Encontrou-o na pessoa do ex-presidente Jair Bolsonaro que seria, com toda certeza, o responsável pela disseminação da falsa notícia de taxação do pix, como responsável é de tudo de ruim que acontece no país, na ótica do governo. O ex-presidente prometeu processar o ministro Haddad, que não deu a mínima, pois integra um governo à prova de qualquer investigação.
Ato contínuo o ilustre ministro da Fazenda anunciou em alto e bom som a edição de uma medida provisória - pasmem os céus - proibindo a taxação do pix, uma medida tão descabida quanto inusitada que desconhece o secular princípio da tipicidade cerrada que vige tanto no Direito Penal, como no Direito Tributário: nullum crimen sine lege, nullum tributum sine lege. Não é preciso vedar a criminalização de determinadas condutas, assim como, não é necessário proibir a tributação de determinados, bens, serviços ou patrimônios. A CF já estabelece os casos de imunidade tributária.
O que parecia ser um desabafo do ministro Haddad acabou se concretizando. O governo Federal, em um gesto mais veloz que um raio, editou a MP 1.288, de 16/1/25, que reforça a proibição de cobrança de qualquer imposto, taxa ou contribuição sobre transações realizadas via pix. Se amanhã a mídia veicular notícia sobre a taxação da transferência bancária via TED, outra medida provisória, com certeza, será baixada para proibir a cobrança de qualquer tributo sobre essa transferência eletrônica.
Brasil é de fato um país singular e Brasília é uma ilha de fantasias.
Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.