Trump e a restauração do sistema de mérito no serviço público
Avalia a ordem executiva de Donald Trump para a reforma do processo de contratação Federal e restauração do mérito no serviço público.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2025
Atualizado às 09:57
1. Introdução
No dia 20 de janeiro Donald J. Trump tomou posse como o 47º presidente dos Estados Unidos. Ainda nas primeiras horas da nova gestão disparou dezenas de ordens executivas, cada uma tratando de um ponto sensível da vida americana, como fora a promessa de campanha do presidente republicano. Ninguém pode negar que entrou cumprindo a palavra de candidato.
Ninguém desconhecerá, igualmente, que ao contrário da direita brasileira, Trump está amparado por estruturados Think Tanks dos conservadores norte americanos, como a Heritage Foundation. Fazendo um paralelo na América Latina - para ver que não é só coisa de primeiro mundo - Javier Millei, presidente Argentino, nas primeiras horas de gestão enviou ao Congresso um enorme pacote de legislação. Certamente estava preparado para assumir agindo, e, para tanto, devidamente assessorado. Isso que faltou ao último governo conservador no Brasil: apoio intelectual.
Retomando ao tema específico deste texto, uma das ordens executivas assinadas diz respeito ao sistema de recrutamento e de execução do serviço público norte americano. Hoje pululam as chamadas práticas DEI - Diversity, Equity e Inclusion. Uma sigla capturada para execução de uma agenda Woke, o que se demonstrou muito recentemente perniciosa no caso dos incêndios de Los Angeles.
Capturaram as "ações afirmativas" para fazer uma guerra ao mérito. Como se "mérito" e "políticas afirmativas" fossem, necessariamente antagônicas. E não são: ou, não deveriam ser.
Mas, reiterando, o exagero Woke e a captura das políticas de ação afirmativa para fins sectários acabaram levando a este movimento pendular.
Vejamos o que poderemos esperar da ordem executiva.
1.1. Mérito e ação afirmativa
Apenas um adendo é necessário antes de prosseguir. Usei no tópico precedente a expressão: "mérito" e "políticas afirmativas" não necessariamente como antagônicas. Não o são. Ocorre que a captura de boas ideias pode gerar "gerinconças" politiqueiras.
Vejamos no Brasil - para abrasileirarmos a questão - um terrível exemplo - e este será, no futuro, certamente um exemplo a ser usado para aniquilar o que há de bom nas ações afirmativas. Refiro à diferença de notas mínimas para aprovação no Exame Nacional de Magistratura. O Exame Nacional da Magistratura considera como aprovados todos os candidatos em ampla concorrência que obtiverem ao menos 70% de acertos na prova objetiva, mas, no caso de candidatos autodeclarados negros ou indígenas, ao menos 50% de acertos (vide https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5332). A nota mínima de aprovação - não confundir com notas de "corte" - é o critério mínimo de capacidade individual esperada de cada pretendente a determinada vaga: seja de um cargo (concurso) ou de um curso (vestibulares). Não há racionalidade para discrímen neste critério.
Além das políticas de ações afirmativas com reserva de vagas - o que seria natural nas ações afirmativas - adicionaram uma nota inferior de aprovação mínima. Terrível opção que, possivelmente, será a justificativa de apoio para movimentos pendulares contrários a qualquer tipo de ação afirmativa.
Eis a questão: a ação afirmativa precisa mesmo ser antagônica ao mérito, a ponto de ser abaixada a nota mínima de aprovação? Creio que não. Mas, como diria Agostinho Ramalho Marques Neto: "Quem nos salvará da bondade dos bons?"
1.2. Um tiro, um presidente morto e a tentação ao mérito
Em 2/7/81 o então presidente norte americano, James Garfield, visitava uma estação de trem em Washington. De repente é abordado por Charles Guiteau que dispara dois tiros. A primeira bala atravessa o ombro, e a segunda, entra pelas costas, não atinge a coluna, e fica alojada próxima ao pâncreas.
Desse evento se desencadeou um martírio de 79 dias. O presidente hospitalizado, transferido de trem e outras peripécias que - podemos imaginar - deixariam a curiosidade pública aguçada naqueles idos de 1881. A imprensa mantinha publicações diárias sobre o assunto. Uma comoção nacional.
O motivo da tragédia? O assassino acreditava que seu apoio pessoal para a eleição do presidente Garfield deveria ser recompensado com cargos. Pretendia ser embaixador em Paris, sendo que "serviria também" Viena. Depois foi descendo o grau dos pedidos.
Vigorava nos EUA o "sistema de espólio", que tornava licenciosa a nomeação de cargos públicos: o ganhador da eleição nomeava amigos, demitia desafetos, ao sabor da eleição, sem a menor preocupação com a eficiência no cargo. Como Guiteau não foi atendido, vingou-se atirando em Garfield.
A tragédia, como dito, foi acompanhada por uma comoção nacional, grupos de oração pela saúde do presidente, políticos de todos lados buscando se afastar da figura do assassino teciam loas à vítima, a imprensa criou uma imagem pública de verdadeira santificação. Mas, também, alguns começaram a questionar o "spoil system". Nitroglicerina pura. Formou-se a condição de temperatura e pressão ideal para algum político, em pouco tempo, ter a ideia de criar uma "lei de seleção para os servidores públicos". Infelizmente a morte do presidente Garfield em virtude dos ferimentos, e após 79 dias de infernal agonia, tudo acompanhado pelo escrutínio da curiosidade pública, fora o combustível que fomentou o projeto de lei até sua conversão em lei. Seria até mesmo difícil alguém se opor muito ferozmente, para não ter a imagem ligada ao fatídico assassinato.
O proponente do projeto, George Pendleton, era um democrata de Ohio. Por isso o nome da legislação: Pendleton Civil Service Act. Não nos alegremos muito com o "democrata". Tempos antes - 1850 - ele defendia a escravidão. Há mesmo quem cogite que a sua proposta da lei do serviço civil visava atender objetivos da parcela democrata supremacista branca: reduzir o sistema de patrocínio ("patronage" outro nome do sistema de espólio), que vinha sendo usado pelos republicanos "linha dura" para beneficiar social e economicamente a população negra naquele período pós secessão.
O que não se poderia prever: o partido democrata também usava o sistema de "patronagem" ou "espólio" para muitas indicações de cargos de supremacistas brancos e, em razão do apoio de Pendleton para a "Lei de Serviço Público" acabou perdendo a possibilidade de se candidatar novamente ao Senado. Mas ganhou o cargo de ministro Plenipotenciário ao Império Alemão.
Dá uma trava na cabeça, não é? Republicanos beneficiando afro descentes e democratas chamados de supremacistas brancos. Mas fiquem tranquilos, não é estranho não. É só história sem "woke culture" e sem "lacração". Mas isso é para um texto maior, não cabe aqui.
O importante é que uma lei de serviço público passou a existir nos EUA desde 1883, com a edição do Pendleton Act. Uma lei que nasceu de uma tragédia - o assassinato de um presidente que sofreu um calvário público por 79 dias -, e das mãos de um deputado cuja intenção talvez apenas desejasse impedir que seus oponentes valorizarem a população negra mediante a concessão de alguns poucos cargos.
O Brasil só foi ter uma afeição com o recrutamento do servidor, efetivamente, após 1988. Concurso já existia, mas era uma "festa". E, uma lei de concursos, efetivamente, só veio com a lei 14965/24, que, por sinal é uma nulidade.
1.3. A quem interessa o mérito?
Em período recente o Brasil passou por severas transformações normativas, todas vindas de afogadilho. Note-se o exemplo da tentativa de alteração da lei das estatais. Uma tentativa de alteração legislativa abjeta, nos primeiros momentos do atual governo Lula, parece remonta a um sistema de espólio, retirando o mínimo de rigor dos critérios para determinadas indicações para cargos ou funções de alta relevância.
As justificativas eram as mais variadas. E eram justificativas encantadoras, tanto que angariavam a simpatia até mesmo de empedernidos "conservadores" até recentemente opositores políticos do então futuro governo. Todos se abraçavam naquela luta anti-mérito. Como se vê, não é só "ação afirmativa" que não pode ser inimiga do mérito, mas, acima de tudo, as contratações para cargos de alto escalão nas estatais.
Fica novamente a pergunta de Agostinho Ramalho Marques Neto: "Quem nos salvará da bondade dos bons"?
2. Conclusão
No anexo que apresento na página seguinte consta uma tradução de afogadilho, logicamente com o inestimável auxílio de aplicações de internet.
Apenas uma breve introdução à ordem executiva que não pretende aniquilar Direitos Civis, como tem sido alardeado. Busca a ressurreição do "mérito" nas contratações de servidores público. Como consta daquele documento, "as práticas atuais de contratação do governo federal estão quebradas, isoladas e ultrapassadas. Elas não se concentram mais no mérito, na habilidade prática e na dedicação à nossa Constituição."
O efeito real desta ordem executiva será sentido em alguns meses quando a aplicação passar efetivamente a ocorrer. Por enquanto somente vemos demonizações típicas de discursos ad terrorem. Vamos dar tempo ao tempo.
Segue a nossa tradução da ordem executiva
REFORMA DO PROCESSO DE CONTRATAÇÃO FEDERAL E RESTAURAÇÃO DO MÉRITO NO SERVIÇO PÚBLICO
Pela autoridade que me foi conferida como Presidente pela Constituição e pelas leis dos Estados Unidos da América, incluindo as seções 3301, 3302 e 7511 do título 5 do Código dos Estados Unidos, fica assim ordenado:
Seção 1. Política. Os cidadãos americanos merecem uma força de trabalho federal excelente e eficiente que atraia o mais alto calibre de funcionários públicos comprometidos em alcançar a liberdade, a prosperidade e o regime democrático que nossa Constituição promove. No entanto, as práticas atuais de contratação do governo federal estão quebradas, isoladas e ultrapassadas. Elas não se concentram mais no mérito, na habilidade prática e na dedicação à nossa Constituição. A contratação federal não deve se basear em fatores inadmissíveis, como o compromisso de alguém com a discriminação racial ilegal sob o pretexto de "equidade" ou o compromisso de alguém com o conceito inventado de "identidade de gênero" em vez de sexo. A inserção de tais fatores no processo de contratação subverte a vontade do povo, coloca em risco as funções essenciais do governo e corre o risco de perder os candidatos mais qualificados.
Ao tornar nossos processos de recrutamento e contratação mais eficientes e focados no atendimento à nação, garantiremos que a força de trabalho federal esteja preparada para ajudar a alcançar a grandeza americana e atraia o talento necessário para atender nossos cidadãos de forma eficaz. Ao melhorar significativamente os princípios e práticas de contratação, os americanos receberão os recursos e serviços federais que merecem da força de trabalho federal mais qualificada do mundo.
Seção 2. Plano de contratação federal. (a) No prazo de 120 dias a partir da data deste decreto, o Assistente do Presidente para Política Doméstica, em consulta com o Diretor do Escritório de Administração e Orçamento, o Diretor do Escritório de Administração de Pessoal e o Administrador do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), desenvolverá e enviará aos chefes de agências um Plano de Contratação Federal que traga para a força de trabalho federal somente americanos altamente qualificados dedicados à promoção dos ideais, valores e interesses americanos.
(b) Esse Plano Federal de Contratação deve:
(i) priorizar o recrutamento de indivíduos comprometidos com a melhoria da eficiência do governo federal, apaixonados pelos ideais de nossa república americana e comprometidos com a defesa do estado de direito e da Constituição dos Estados Unidos;
(ii) impedir a contratação de indivíduos com base em sua raça, sexo ou religião, e impedir a contratação de indivíduos que não estejam dispostos a defender a Constituição ou a servir fielmente o Poder Executivo;
(iii) implementar, na medida do possível, avaliações técnicas e alternativas, conforme exigido pela Lei Chance to Compete de 2024;
(iv) reduzir o tempo de contratação em todo o governo para menos de 80 dias;
(v) melhorar a comunicação com os candidatos para oferecer maior clareza em relação ao status da inscrição, prazos e feedback, incluindo atualizações regulares sobre o andamento das inscrições e explicações sobre as decisões de contratação, quando apropriado;
(vi) integrar tecnologia moderna para apoiar o processo de recrutamento e seleção, incluindo o uso de análise de dados para identificar tendências, lacunas e oportunidades de contratação, bem como aproveitar as plataformas digitais para melhorar o engajamento dos candidatos; e
(vii) garantir que a liderança do Departamento e da Agência, ou seus representantes, sejam participantes ativos na implementação dos novos processos e durante todo o processo de contratação.
(c) Esse Plano Federal de Contratação deve incluir planos específicos das agências para melhorar a alocação de cargos do Serviço Executivo Sênior nas agências do Gabinete, na Agência de Proteção Ambiental, no Escritório de Gestão e Orçamento, na Administração de Pequenas Empresas, na Administração da Previdência Social, na Fundação Nacional de Ciências, no Escritório de Gestão de Pessoal e na Administração de Serviços Gerais, para melhor facilitar a liderança democrática, conforme exigido por lei, em cada agência.
(d) O Plano Federal de Contratação deve fornecer as melhores práticas específicas para a função de recursos humanos em cada agência, que cada chefe de agência deve implementar, com aconselhamento e recomendações, conforme apropriado, do DOGE.
Seção 3. Prestação de contas e relatórios. (a) O Diretor do Office of Personnel Management estabelecerá métricas claras de desempenho para avaliar o sucesso dessas reformas e solicitará a análise da agência regularmente.
(b) O Office of Personnel Management consultará os órgãos federais, as organizações trabalhistas e outras partes interessadas para monitorar o progresso e garantir que as reformas atendam às necessidades dos candidatos e dos órgãos.
Seção 4. Disposições gerais. (a) Nada nesta ordem deve ser interpretado de forma a prejudicar ou afetar de outra forma:
(i) a autoridade concedida por lei a um departamento executivo, agência ou seu chefe;
(ii) as funções do Diretor do Office of Management and Budget relacionadas a propostas orçamentárias, administrativas ou legislativas; ou
(iii) as funções do Conselho de Governadores do Sistema da Reserva Federal ou do Comitê Federal de Mercado Aberto relacionadas à condução da política monetária.
(b) Esta ordem deve ser implementada de acordo com a lei aplicável e sujeita à disponibilidade de dotações.
(c) Esta ordem não tem a intenção de criar, e não cria, qualquer direito ou benefício, substantivo ou processual, executável por lei ou em equidade por qualquer parte contra os Estados Unidos, seus departamentos, agências ou entidades, seus oficiais, funcionários ou agentes, ou qualquer outra pessoa.
A CASA BRANCA, 20 de janeiro de 2025
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https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/reforming-the-federal-hiring-process-and-restoring-merit-to-government-service/