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O reconhecimento pelo STJ da dupla maternidade na inseminação caseira

A decisão do STJ que reconheceu a dupla maternidade na inseminação caseira é o objeto do artigo, centrado na necessidade de assegurar que a realidade familiar seja refletida nos registros cartorários.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Atualizado às 13:48

Recentemente, o STJ decidiu que a presunção de filiação prevista no art. 1.597, V, do CC incide, por interpretação analógica, à inseminação caseira realizada no curso de união estável homoafetiva de duas mulheres.  

O caso teve origem em São Paulo, onde houve recusa do reconhecimento da dupla maternidade tanto pelo juízo de primeiro grau quanto pelo Tribunal de Justiça. Os julgadores apegaram-se à falta de dispositivo legal específico que lhes permitisse deferir o registro da dupla maternidade na hipótese de inseminação caseira. 

A inseminação caseira, vale destacar, é prática informal, muitas vezes precariamente documentada, e que acarreta riscos à saúde da mãe e do feto, além de expor a mãe a situações de abuso sexual e mesmo de estupro.1 Nada obstante, não há vedação legal à prática de inseminação caseira, que, quando bem-sucedida, resulta na tão desejada prole. A inseminação caseira não é objeto de regulamentação, ao passo que a inseminação efetuada em clínica especializada é, havendo norma específica autorizadora do registro da filiação mediante apresentação de documentação fornecida pela clínica.2

O equívoco das decisões de primeira e segunda instância, muito bem percebido pelo STJ, consiste em confundir a falta de específica norma regulamentar de um direito com a ausência do próprio direito. Essa confusão é ainda mais grave quando se está diante de direitos constitucionalmente tutelados - como é o caso concreto - pois, por via transversa, acaba por condicionar a eficácia da norma constitucional à existência de regra infraconstitucional - ou mesmo infralegal -, o que vulnera a hierarquia do sistema.

Embora a inseminação caseira não seja objeto de específica regulamentação, e acarrete riscos à mulher e mesmo ao feto, cuida-se de prática que se insere no direito constitucional ao livre planejamento familiar,3 ao qual se conectam, de forma indissociável, o direito à procriação, à parentalidade responsável e o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

Aqueles que recorrem à inseminação caseira, em geral, não possuem condições de pagar pelo procedimento de reprodução assistida em clínicas privadas, ou de aguardar as longas filas do SUS - Sistema Único de Saúde.4 Nesse contexto, como pontuado pela ministra Nancy Andrighi, "negar o reconhecimento da filiação gerada de forma 'caseira' seria negar o reconhecimento de famílias que não possuem condições financeiras de arcar com os altos custos dos procedimentos médicos".

O caso apreciado pelo STJ era de família formada por duas mulheres, que, em legítimo exercício do planejamento familiar, optaram pela inseminação caseira. A mãe que gestaria o filho estava protegida e poderia facilmente registrar a criança, haja vista ser inconteste seu estado de mãe em razão da gravidez. De maneira oposta, a outra mãe, que participou tanto quanto a primeira do planejamento familiar, desejando a parentalidade e apoiando sua companheira na gestação, ficaria desamparada. 

A situação jurídica materno-filial da segunda mãe não seria reconhecida, em grave prejuízo do seu direito existencial à maternidade, ao livre planejamento familiar e, ainda, do melhor interesse da criança e do adolescente, pois o filho teria reconhecida apenas uma mãe, sendo privado da proteção jurídica de ter uma segunda mãe juridicamente reconhecida, com todos os direitos e deveres decorrentes da parentalidade.

No direito brasileiro, mãe não mais é apenas aquela que gesta o filho, podendo ser a companheira da gestante, em posição idêntica àquela até então ocupada apenas pelo homem. Em reconhecimento dessa nova realidade familiar plural, o STJ aplicou, por analogia, o art. 1.597, V, do CC à união homoafetiva feminina, assegurando a igualdade entre as diversas entidades familiares e a isonomia da mulher em posição análoga à do homem quando sua companheira ou esposa engravida. 

A união estável homoafetiva é reconhecida desde 2011 como entidade familiar.5 O direito de família tornou-se o direito das famílias, em que as diversas formas de entidade familiar têm igual estatura constitucional e devem ser igualmente protegidas, assegurando-se a todas elas o pleno exercício do direito constitucional ao livre planejamento familiar. Dessa forma, a prole há de ser tutelada prioritária e indistintamente, em absoluta igualdade de condições e respeitando o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.6

Nesse contexto, o IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família "enviou ao CNJ - Conselho Nacional de Justiça pedido de providências para autorizar o registro de crianças concebidas por meio de inseminação caseira diretamente no Cartório de Registro Civil",7 a fim de que não haja mais a necessidade de judicialização do pedido de registro.

Embora seja salutar a prolação de regulamentação para que os cartórios passem a efetuar diretamente o registro, se houver a judicialização do requerimento do registro da filiação concebida por inseminação caseira, a resposta judicial não pode ser negativa sob o argumento de ausência de regulamentação autorizadora. Uma vez verificado pelo Poder Judiciário que a inseminação caseira de fato ocorreu como fruto de legítimo exercício do livre planejamento familiar, não há razão jurídica para se indeferir o registro da prole daí decorrente com indicação dos seus respectivos genitores.  

A realidade cartorária deve refletir a realidade jurídico-social. Atualmente, o Direito brasileiro tutela a família formada pela união estável homoafetiva, daí decorrendo, como consectário lógico e axiológico, a tutela do planejamento familiar e da prole daí advinda. Os filhos concebidos por inseminação caseira planejada e desejada por casal de duas mulheres conviventes em união estável devem ser registrados como filhos das duas, ostentando no registro duas mães, o que corresponde à realidade fática e jurídica. 

Sendo assim, vedar o registro da mãe não gestante é negar à família que se submeteu aos riscos da inseminação caseira direitos constitucionalmente assegurados e sobre os quais deve haver um esforço no aprimoramento de políticas públicas, não um retrocesso materializado no não reconhecimento de uma família que já existe.

________

1 ALEJANDRO, Diego. Mulheres relatam assédio de doadores em inseminação caseira. Folha de São Paulo, 07 jan. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/01/mulheres-relatam-assedio-de-doadores-em-inseminacao-caseira.shtml. Acesso em 07 jan. 2025. Cf. tb. pronunciamento da ANVISA, disponível em: https://antigo.anvisa.gov.br/resultado-de-busca p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&p_p_col_id=column-1&p_p_col_count=1&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_assetEntryId=4265364&_101_type=content&_101_groupId=219201&_101_urlTitle=inseminacao-artificial-caseira-riscos-e-cuidados&inheritRedirect=true. Acesso em 29 dez. 2024.

2 Conforme dispõe a literalidade do artigo 513 do Provimento 149 do Conselho Nacional de Justiça: "Será indispensável, para fins de registro e de emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos seguintes documentos: [...] II - declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários". BRASIL. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento nº 149. 2023. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5243. Acesso em 07 dez. 2025.

3 Art. 226, §7º, da Constituição da República: "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] §7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas". Art. 1.565, §2º do Código Civil: "Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família. [...] § 2º. O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas".

4 DANTAS, Carlos Henrique Félix. Inseminação caseira: desafios jurídicos na tutela integral da pessoa. In: BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. (Org.). Novas Fronteiras da Reprodução Assistida: acessos, direitos e responsabilidades. 1 ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024, p. 59.

5 Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132.

6 DANTAS, Carlos Henrique Félix. Inseminação caseira: desafios jurídicos na tutela integral da pessoa. In: BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. (Org.). Novas Fronteiras da Reprodução Assistida: acessos, direitos e responsabilidades. 1 ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2024, p. 75.

7 Disponível em https://ibdfam.org.br/noticias/12498/IBDFAM+envia+ao+CNJ+pedido+de+provid%C3%AAncias+para+registro+de+crian%C3%A7as+concebidas+por+insemina%C3%A7%C3%A3o+caseira+sem+declara%C3%A7%C3%A3o+cl%C3%ADnica. Acesso em 19 dez. 2024.

Milena Donato Oliva

Milena Donato Oliva

Professora de Direito do Consumidor e de Direito Civil da UERJ. Doutora e mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada sócia do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

Marília Alves de Carvalho e Silva

Marília Alves de Carvalho e Silva

Doutoranda em Direito Civil na UERJ. Mestre pela FND/UFRJ. Presidente da Comissão Especial de Estudos sobre o Direito Sistêmico da OAB/RJ. Advogada, professora e mediadora.

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