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O limite da caneta - Uma reflexão sobre o ativismo judicial e a democracia

A crescente criação de regras fora dos canais tradicionais e o ativismo judicial ameaçam a democracia. A comunidade jurídica precisa resistir para preservar o equilíbrio institucional.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Atualizado em 6 de janeiro de 2025 13:55

Estava lendo o artigo CNJ não tem poder de alterar o CPC e nem de criar regras de processo, de Lenio Luiz Streck e concordo com sua conclusão: "Urge, pois, que a comunidade jurídica resista. Somos muitos. Não vamos nos entregar assim. Afinal, esse não é o único problema da advocacia. É a ponta do iceberg nestes tempos de opção pelas efetividades quantitativas em claro detrimento às efetividades qualitativas".

Então me lembrei da seguinte história alegórica, que relato a seguir.

Em uma noite chuvosa de outono, 11 figuras distintas reuniram-se em uma biblioteca antiga no centro de uma cidade cosmopolita. Eles eram juristas, filósofos, economistas e sociólogos, cada um com sua especialidade, mas unidos por uma ideia audaciosa: examinar a crescente tendência de criação de regras fora dos canais tradicionais para evitar as ameaças e crimes cometidos contra o Estado Democrático de Direito.

A preocupação inicial surgiu do comportamento observado em algumas instâncias da sociedade contra as instituições existentes, cabendo ao Poder Judiciário a reinterpretação das normas e precedentes, mesmo contra a impressão de que poderia ultrapassar suas funções constitucionais.

Esse novo fenômeno, muitas vezes denominado ativismo judicial, apresentava-se como justificativa para corrigir os ataques contra o sistema, como garantia da democracia, uma anomalia preocupante no Estado Democrático de Direito. 

Assim, as normas fundamentais - a CF/88 e as leis elaboradas pelo Poder Legislativo - estavam sendo reinterpretadas de maneira que frequentemente colocava em xeque o equilíbrio entre os três poderes e ameaçava a própria estabilidade institucional.

Essa ideia surgiu da seguinte situação: "quando o judiciário é acionado, tem que decidir." O grupo não tinha ideia de quem proclamara essa máxima, se surgira de conversas informais, ou não, mas sabia que fora fomentada pela frustração comum com a rigidez e a ineficácia do sistema vigente. 

As normas aplicadas por décadas não mais respondiam às demandas sociais e, muitas vezes, perpetuavam injustiças. Jurisprudências antigas, estabelecidas em contextos muito diferentes, eram aplicadas de forma mecânica, sufocando a evolução social e impedindo soluções inovadoras.

"O direito é uma ferramenta, não uma muralha," disse Ana, uma juíza renomada, enquanto apontava para uma pilha de processos empoeirados. "Por que nos agarramos a precedentes que mais nos aprisionam do que nos libertam?".

"Porque estamos condicionados a temer a ruptura," respondeu Miguel, um professor de Direito Comparado. "Mas a história nos mostra que grandes avanços vieram de corajosos desvios."

O grupo concordou que não bastava apenas criticar; era necessário agir. Decidiram que não iriam apenas reinterpretar normas existentes, mas recriar um entendimento completo sobre a aplicação das leis, estabelecendo uma nova doutrina. Isso significava romper com jurisprudências tradicionais e desafiar precedentes profundamente enraizados.

Ana, a juíza renomada, em posição contrária à que tinha manifestado, abriu a discussão dizendo: "Embora o direito deva evoluir, não podemos nos esquecer de que existem limites. Não cabe ao Judiciário criar normas que cabem ao Legislativo nem redesenhar a sociedade com base em interpretações além de suas competências. Essa prática, quando ocorre, mina a legitimidade das instituições democráticas".

Miguel, o professor de Direito Comparado, concordou e trouxe uma reflexão filosófica: "Desde Montesquieu, aprendemos que a separação dos poderes é fundamental para preservar a democracia. O respeito aos precedentes, às normas e à Constituição é o que garante a estabilidade. Se rompemos essa estrutura, corremos o risco de permitir que pequenos grupos imponham as próprias agendas à sociedade. O ativismo judicial, embora às vezes travestido de progresso, pode degenerar em arbítrio, fragilizando a confiança social no sistema de justiça".

Outro ponto crucial foi levantado por Sofia, uma filósofa do Direito, que destacou a importância da hermenêutica jurídica: "A interpretação das normas não é um exercício de criação arbitrária, mas de descoberta do sentido inserido na ordem jurídica, conforme os princípios democráticos. Quando o ativismo judicial ignora a hermenêutica tradicional para justificar decisões que desrespeitam precedentes e normas, ele não só viola a segurança jurídica como também rompe com a própria filosofia do Direito, que busca equilíbrio entre a continuidade e a renovação".

Durante meses, as 11 figuras estudaram casos recentes que exemplificavam esse fenômeno, revisitaram fundamentos teóricos e debateram o papel do Direito e do Judiciário na sociedade contemporânea. Eles concordaram que o Direito deveria evoluir, mas apenas dentro dos limites estabelecidos pela CF e pelas leis democraticamente criadas. Alterar precedentes - principalmente em contrariedade ao sistema legal vigente - sem o devido respeito às instâncias competentes era visto como uma afronta à própria segurança jurídica e ao pacto democrático.

Ao apresentar suas conclusões em um manifesto intitulado O Direito e seus limites, o grupo alertou para os perigos de um Judiciário que ultrapassasse suas funções e, em consequência, desrespeitasse a soberania dos Poderes Legislativo e Executivo. Além disso, destacou os impactos sociais desse ativismo: um sistema jurídico instável, incertezas na aplicação da lei e a percepção pública de que a justiça poderia ser utilizada para atender a interesses específicos.

Houve críticas ao manifesto, principalmente de setores que defendiam maior liberdade interpretativa para o Judiciário (os chamados legalistas e os progressistas).

No entanto, Ana, em um discurso contundente, respondeu: "Não podemos permitir que 11 pessoas, ou mesmo uma instância qualquer do Judiciário, subvertam as regras do jogo. A democracia exige respeito à Constituição, aos limites institucionais e à vontade popular expressa pelas leis criadas pelos representantes do povo. A estabilidade do sistema depende de que todos os poderes permaneçam dentro de suas atribuições. O ativismo judicial, longe de ser um avanço, representa um retrocesso institucional perigoso para a sociedade como um todo".

Céu de brigadeiro. Um sonho de verão.

O grupo concluiu que corrigir essa anomalia exigiria um retorno ao respeito irrestrito ao Estado Democrático de Direito e propôs medidas para reforçar os limites constitucionais das instituições, incluindo maior controle interno e externo sobre decisões judiciais que ultrapassassem suas competências. A educação jurídica também foi apontada como fundamental para formar operadores do Direito conscientes de seu papel institucional e de seus limites.

Ao longo dos anos, o manifesto ganhou adeptos e ajudou a reforçar a importância de preservar o equilíbrio entre os poderes. Foi um lembrete de que a justiça, por mais nobre que seja, não pode ser alcançada à custa do desrespeito às instituições democráticas e às normas fundamentais, ou estar vinculada ao que pensam 11 figuras expoentes. Assim, o Direito continuou a evoluir, mas dentro dos limites que garantiam sua legitimidade, assegurando que o progresso não viesse em detrimento da estabilidade jurídica e da segurança necessária para a confiança social.

Moral da história: mesmo uma caneta tem um prazo de validade, pois até sua tinta um dia também acaba.

Ronaldo Corrêa Martins

Ronaldo Corrêa Martins

Fundador e CEO do Escritório RONALDO MARTINS & Advogados, fundado em 22/03/1990. Formado em: Ciências Econômicas, Ciências Contábeis e Direito.

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