Inteligência artificial como tecnologia disruptiva ao Poder Judiciário
Com o desenvolvimento de inúmeros projetos de inteligência artificial voltados ao Poder Judiciário no Brasil e no mundo, urge compreender o potencial disruptivo desta tecnologia na prática jurídica.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2025
Atualizado às 11:25
A inteligência artificial é apenas um fragmento da realidade tecnológica e da quebra do paradigma judiciário atual.1 Sob esta perspectiva, Susskind conceitua as tecnologias disruptivas como aquelas que têm potencial de trazer impactos consideráveis para o próprio funcionamento de um setor, sendo que duas características fundamentais são a subestimação dos impactos negativos quando de seu surgimento e a capacidade de, inclusive, desorganizar a própria estrutura do mercado, alcançando o topo da pirâmide.2 Dentre as treze possibilidades listadas pelo autor3, várias encontram respaldo na discussão das inovações tecnológicas do Poder Judiciário, mormente na forma da ODR - Resolução Online de Conflitos, na análise automatizada de documentos, na previsão de provimentos judiciais e nas respostas automáticas a dúvidas legais.
Existe um aspecto negativo na adoção destes mecanismos - a facilitação dos atos processuais também traz como efeito colateral a queda de seu custo e, por consequência, o aumento de seu fluxo4, pelo que a busca por celeridade e eficiência pode trazer corolários em sentido contrário. Outrossim, não basta que a tecnologia permita a realização rápida de um processo já existente; se empregada, deve necessariamente visar à inovação.
Essa perspectiva motiva o desenvolvimento das já mencionadas tecnologias de resolução online de disputas ou ODR - Online Dispute Resolution. Nesse sentido, é importante conceituar que o deslocamento da resolução de conflitos para o âmbito virtual sugere a tecnologia como verdadeira quarta parte do processo5, na perspectiva de ser uma presença para além dos participantes e do julgador.
Rifkin ressalta que, da mesma forma que o papel da terceira parte (e.g., juiz ou mediador) deve ser determinado individualmente em cada caso, a atuação tecnológica também pode assumir diversos encargos em uma ODR, a depender de como irá incidir.6 Sob esta perspectiva, assim como a inteligência artificial, o conceito de online dispute resolution é amplo e descentralizado, e pode abranger desde a mera realização de audiências online até a efetiva elaboração de minutas de solução do conflito7, mas o principal é que a terceira parte tem sua atuação viabilizada ou facilitada pela quarta parte.8
Os sistemas de resolução online de disputas são categorizados sob duas perspectivas: Instrumentais, que apenas fornecem um ambiente virtual especializado para viabilizar a comunicação digital entre as partes, e principais, que efetivamente atuam em alguma medida com a finalidade de dirimir o conflito em análise.9 Essa classificação ilustra com maestria a natureza guarda-chuva da expressão ODR: Seria como tecer um comparativo entre um sistema de processo eletrônico e uma inteligência artificial decisória, a título exemplificativo.
Neste sentido, o critério de diferenciação reside na autonomia que será outorgada à ferramenta tecnológica de apoio.10 É importante destacar, ainda, que as ODR não são restritas ao âmbito judiciário - pelo contrário, é precisamente por terem uma aproximação com a resolução alternativa de conflitos que podem ser encontradas em plataformas privadas, como é o caso do eBay Resolution Center.11 No entanto, as ODR não se confundem com as ADR - Alternative Dispute Resolution, uma vez que não necessariamente a resolução digital irá se furtar ao litígio judicial.12 Noutras palavras: Os conceitos são distintos, embora possam atuar em conjunto.
É dentro desta delimitação que estão inseridos os sistemas de inteligência artificial que ensejam as atuais discussões sobre sua aplicação no Poder Judiciário. No panorama específico do uso da resolução online de conflitos litigiosos, isto é, do emprego das ODR dentro do sistema de justiça, a doutrina indica que outros países têm demonstrado iniciativas satisfatórias de inovação nos provimentos judiciais digitais, como a Austrália, o Reino Unido e o Canadá.13
A maioria dos projetos está voltada para demandas cíveis de baixo valor - pequenas causas -, mas o Reino Unido já opera com a ferramenta Single Justice Service, no qual um indivíduo pode confessar sua culpa em casos de infrações penais de menor potencial ofensivo e, então, o processo é remetido para a decisão por um magistrado.14 A Argentina traz o exemplo do sistema Prometea, que foi exportado também para o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos, e que é capaz de prever resultados de provimentos judiciais e automatizar algumas tarefas repetitivas.15
No Brasil, todos os projetos de inteligência artificial, independentemente do nível de autonomia ou ingerência processual, devem ser depositados junto à plataforma Sinapses, ainda na forma da resolução 332/20 do CNJ.16 No entanto, o sistema não permite o acesso ao público geral. Ainda assim, levantamentos indicam que o número de inciativas de inteligência artificial apenas tende a crescer, sendo que várias propostas levantadas pela FGV têm a pretensão de adentrar na esfera de um possível juiz-robô.17
Sublinhe-se que a esfera jurídica não pode quedar-se inerte à transformação digital do mundo - e os algoritmos, assim como qualquer outra ferramenta tecnológica, podem vir a revolucionar a prática jurídica e o próprio procedimento de tomada de decisão.18 No entanto, o direito penal lida com o direito fundamental mais singelo do ser humano: A liberdade. E, nessa perspectiva, qualquer erro, seja humano ou de máquina, é irreparável em escalas inimagináveis, pelo que a adoção de qualquer tecnologia disruptiva deve necessariamente ser ponderada e amplamente discutida.
________
1 Cf. Susskind, que demonstra como o debate "substituição do juiz-humano pelo juiz-robô" não pode ser simplificado: "The superficially straightforward challenge, 'can machines replace human judges?' conceals at least five questions. The first is whether it is technically possible for machines to replace judges. The second asks, even if it were technologically possible, would it be morally acceptable for machines to take on any judicial functions? The third inquires whether such systems would be commercially viable, that is, would their economic benefits outweigh their costs? Fourth, would this be culturally sustainable-could such systems be assimilated without rejection into court institutions dominated by age-old procedures with human judges at their core? Finally, there is a philosophical question. Is it jurisprudentially coherent to develop such systems? Is there anything specific about the structure and nature of judicial decision-making itself that places it, partly or entirely, beyond the scope of computation?" (SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 278-279).
2 SUSSKIND, Richard. Tomorrow's Lawyers: an introduction to your future. 2ª ed. Londres: Oxford University Press, 2017, p. 44.
3 As treze tecnologias disruptivas arroladas por Susskind são: "document automation; relentless connectivity; electronic legal marketplace; e-learning; online legal guidance; legal open-sourcing; closed legal communities; workflow and project management; embedded legal knowledge; online dispute resolution; document analysis; machine prediction; legal question answering" (SUSSKIND, Richard. Tomorrow's Lawyers: an introduction to your future. 2ª ed. Londres: Oxford University Press, 2017, p. 45).
4 WOLKART, Erik Navarro. Inteligência Artificial e Sistemas de Justiça: proposta de um framework regulatório para desenvolvimento ético e eficiente. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 179.
5 RIFKIN, Janet. Online dispute resolution: theory and practice of the fourth party. Conflict Resolution Quarterly, v. 19, nº 1, p. 117-124, 2001, p. 121.
6 "Just as the role of the third party can vary according to context, so can the role of the fourth party, In most ODR processes, the fourth party does not replace the third party but functions as an ally, collaborator, and partner. The fourth party can assume responsibilities for various communications with the parties; the manner in which the third and fourth parties interact with each other affects many parts of the dispute resolution process" (RIFKIN, Janet. Online dispute resolution: theory and practice of the fourth party. Conflict Resolution Quarterly, v. 19, nº 1, p. 117-124, 2001. p. 121).
7 MOULIN, Carolina Stange Azevedo. Métodos de Resolução Digital de Controvérsias: estado da arte de suas aplicações e desafios. Revista Direito FGV, v. 17, nº 01, jan./abr. 2021, e2108, p. 02.
8 "Some ODR processes may rely on tools that automate communications, but the third party-the human mediator-still has to play an active role in the online communications process, and the fourth party enables the third party to play this role. For example, without the fourth party, it would not be possible for the online mediator to have a discussion with parties, store information that is exchanged about the dispute, schedule meeting times, evaluate proposals and claims, or draft and potentially enforce agreements" (RIFKIN, Janet. Online dispute resolution: theory and practice of the fourth party. Conflict Resolution Quarterly, v. 19, nº 1, p. 117-124, 2001, p. 121).
9 MOULIN, Carolina Stange Azevedo. Métodos de Resolução Digital de Controvérsias: estado da arte de suas aplicações e desafios. Revista Direito FGV, v. 17, nº 01, jan./abr. 2021, e2108, p. 04.
10 SELA, Ayelet. Can computers be fair? How automated and human-powered online dispute resolution affect procedural justice in mediation and arbitration. Ohio State Journal on Dispute Resolution, v. 33, nº 01, p. 91-148, 2018, p. 99.
11 WOLKART, Erik Navarro. Inteligência Artificial e Sistemas de Justiça: proposta de um framework regulatório para desenvolvimento ético e eficiente. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 182-183.
12 MOULIN, Carolina Stange Azevedo. Métodos de Resolução Digital de Controvérsias: estado da arte de suas aplicações e desafios. Revista Direito FGV, v. 17, nº 01, jan./abr. 2021, e2108, p. 03.
13 WOLKART, Erik Navarro. Inteligência Artificial e Sistemas de Justiça: proposta de um framework regulatório para desenvolvimento ético e eficiente. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 188-191.
14 SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 168.
15 Cf. CORVALÁN, Juan Gustavo. Inteligencia artificial: retos, desafíos y oportunidades - Prometea: la primera inteligencia artificial de Latinoamérica al servicio de la Justicia. Revista de Investigações Constitucionais, v. 5, nº 01, p. 295-316, jan./abr. 2018.
16 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 332, de 21/08/2020. Dispõe sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário e dá outras providências. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 21 out. 2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429. Acesso em: 02 dez. 2024.
17 SALOMÃO, Luis Felipe (Coord.). Inteligência Artificial: tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. 2ª ed. [S.l.]: FGV Conhecimento (Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário), 2022.
18 ROSA, Alexandre Morais da. A Questão Digital: o impacto da inteligência artificial no Direito. Revista de Direito da Faculdade Guanambi, v. 06, n. 02. E259, jul./dez. 2019, p. 01-18, p. 04.