Morte ficta: Direito fundamental à proteção social ou privilégio?
A sanção criminal do militar não pode interferir no seu direito à aposentadoria, que tem natureza contributiva. Se ele contribuiu, é evidente que o benefício tem que ser dele.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2025
Atualizado às 08:52
Introdução
Todas as reformas da previdência, essas eternas malvadas, subtraíram vários direitos fundamentais sociais dos servidores.
Isso é fato! A análise é à luz do Direito Constitucional.
Aliás, com a EC 103/19, a maldade jurídica, chegou ao extremo da perversidade: o governo passou as mãos em 50% na pensão por morte. Sobrou para as viúvas idosas que não têm dependentes.
Um verdadeiro confisco!
É evidente que violou dessa maneira, o princípio constitucional da proteção à confiança, que é o aspecto subjetivo da segurança jurídica, o que veremos mais adiante.
Proteção à confiança?
Essa palavra não existe, em regra, para a maioria do Congresso que não se preocupa com as diminuições de benefícios e das pensões por morte, fazendo escancarado retrocesso social, já que seus dependentes vão muito bem, obrigado!
É que o andar de cima não precisa de aposentadoria...
Agora, o "privilegiado" é o servidor militar. Querem acabar com a morte ficta, do militar demitido pelo STM - Superior Tribunal Militar e, sequestrar, na mão grande, o seguro social, que foi contribuído no contracheque, por décadas pelos militares.
Os dependentes passariam a receber o auxílio-reclusão, em R$ 1.819,26.
Pode isso?
Pois é. O culpado é sempre o Tavinho, o "servidor privilegiado'. O inferno são os outros. Sempre os outros.
É claro que não! É, pois, ilegal! É o que vamos demostrar a seguir.
O que são direitos fundamentais?
A propósito, o mestre, José Afonso da Silva discorrendo sobre direitos fundamentais observa que:
"são aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas".
"No qualitativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem sobrevive, fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecido, mas concreta e materialmente efetivados".
Princípio da segurança jurídica
A segurança jurídica é um princípio constitucional, decorrência do Estado Democrático de Direito, onde o cidadão poderá prever e planejar a sua vida: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, CF).
Proteção à confiança
O princípio da proteção à confiança originou-se no Direito alemão. No Direito europeu é chamado de proteção à confiança legitima. É considerada o aspecto subjetivo da segurança jurídica. O cidadão, na lei, cria uma legítima expectativa.
Ou seja, o cidadão confia que a Administração vai respeitar às situações e direitos consolidados no passado.
Ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
"É provável que o trabalho pioneiro sobre o tema tenha sido escrito por Almiro do Couto e Silva(...) E, na realidade, trata-se de princípio que corresponde ao aspecto subjetivo da segurança jurídica. Conforme ensinamento do autor, "no direito alemão e, por influência deste, também no direito comunitário europeu, 'segurança jurídica' é expressão que geralmente designa a parte objetiva do conceito, ou então simplesmente, o princípio da segurança jurídica, enquanto a parte subjetiva é identificada como 'proteção à confiança' (no direito germânico) ou 'proteção à confiança legítima' no direito comunitário europeu)".
O professor José dos Santos Carvalho Filho preleciona que:
"Cuida-se de proteger expectativas dos indivíduos oriundas da crença de que disciplinas jurídico-administrativas são dotadas de certo grau de estabilidade. Semelhante tutela demanda dois requisitos: 1º) a ruptura inesperada da disciplina vigente; 2º) a imprevisibilidade das modificações. (...)
"O que se pretende é que o cidadão não seja surpreendido ou agravado pela mudança inesperada de comportamento da Administração, sem o mínimo respeito às situações formadas e consolidadas no passado, ainda que não se tenham convertido em direitos adquiridos".
É importante referir, neste ponto, em face de sua extrema pertinência, a aguda observação do festejado mestre Canotilho:
"Estes dois princípios - segurança jurídica e protecção da confiança - andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica".
Previdência social é um direito constitucional fundamental
À vista disso, a previdência é uma espécie de direito social fundamental onde a aposentadoria e a pensão são os mais importantes benefícios.
Tem natureza jurídica de um seguro social, pois depende de contribuição e de filiação obrigatório.
Em consequência, o direito à previdência social constitui direito fundamental, de 2ª geração ou dimensão, e, uma vez, implementados os pressupostos da sua aquisição, não deve jamais ser afetado ao bel-prazer dos políticos de plantão.
É o servidor que banca a sua aposentadoria e pensão dos dependentes
Por outras palavras, o militar ou civil mês a mês, ano a ano contribui com o seguro social, para, após décadas de trabalho, na reforma (militar) ou aposentadoria receber o "prêmio".
É o servidor que contribuiu a sua reserva/reforma ou a pensão para os dependentes em caso de morte. Não é a União, Estado ou município.
Não, mesmo!
Ou seja, não é questão de favor do Estado!
Vedação ao retrocesso social em relação à previdência social
Como se sabe, na teoria geral dos direitos fundamentais, fala-se em vedação ao retrocesso social, onde, aliás, direitos fundamentais à previdência social, à saúde e educação, podem ser ampliados, jamais suprimidos.
Alguma dúvida?
Da perda do posto e patente do oficial
Nos termos da CF/88 o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra. (art. 142§ 3º, VI, CF)
O oficial condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetida ao julgamento previsto no inciso anterior. (art. 142§ 3º, VI, CF). No mesmo sentido, o Estatuto dos Militares, lei 6880/80.
O que é morte ficta do militar demitido?
Na morte ficta o militar demitido, julgado pelo STM, indigno para o oficialato "morre no papel". Mas está vivo! O art. 119, do Estatuto do Militares prevê que:
"O oficial que houver perdido o posto e a patente será demitido ex officio sem direito a qualquer remuneração ou indenização e receberá a certidão de situação militar prevista na legislação que trata do serviço militar".
A lei 3765/60, com redação dada pela lei 13.954, de 2019, que dispõe sobre pensões militares prevê, no art.20, que:
"O oficial da ativa, da reserva remunerada ou reformado, contribuinte obrigatório da pensão militar, que perder posto e patente deixará aos seus beneficiários a pensão militar correspondente ao posto que possuía, com valor proporcional ao tempo de serviço".
Não recepção do do art. 119 do Estatuto dos Militares e art. 20 da lei 3765/60
O controle de constitucionalidade de norma pré-constitucional frente à constituição atual é feito por meio do controle concentrado de constitucionalidade. A CF/88 (art. 102, §1º) previu o instrumento da ADPF - arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Vamos lá. O art. 119 do Estatuto dos Militares, lei 6880/80, diz que: "O oficial que houver perdido o posto e a patente será demitido ex officio sem direito a qualquer remuneração".
Sem nenhuma remuneração? Como assim? E a dignidade da pessoa humana? E as contribuições compulsórias?
Ora, apesar da perda do posto e da patente, à luz da CF/88, jamais poderá ser suprimido o direito fundamental previdenciário à proteção social.
Por quê? Porque a aposentadoria (reserva/reforma) não é um "privilégio", mas um direito adquirido por força de contribuições compulsórias ao longo do tempo.
Além do que, há o ato jurídico perfeito.
Pois então. A lei 6880/80 é anterior à CF. Há, sim, lesão a preceito fundamental da CF/88, notadamente à dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais como: o direito à previdência social e à aposentadoria.
Logo, a nosso sentir, o art. 119 do Estatuto dos Militares, lei 6880/80, não tem compatibilidade com a CF, ou seja, não há recepção material, resultando em sua revogação.
Na mesma direção, o art. 20 da lei 3765/60, onde o oficial que perder posto e patente deixará aos seus beneficiários a pensão.
Morte ficta e pensão revertida aos beneficiários?
Pergunta de um milhão de dólares: Pode Administração Castrense dar destinação do seguro social, exclusivamente, pago pelo militar demitido, revertendo para os dependentes, como a esposa?
A resposta: não, não e não!
A propósito, é de uma obviedade óbvia: o seguro social foi construído pelo militar demitido ao longo dos anos. Logo, o seguro pertence ao ex-militar. Simples assim.
Por que o benefício previdenciário não é pago diretamente ao próprio militar?
Pois bem. O militar demitido contribuiu regularmente para previdência por 30, 35, 40 anos. Em consequência, a aposentadoria/reserva/reforma deve, sim, ser pago, diretamente, a ele; independente da perda do posto e patente.
A reversão do benefício para a esposa, como pensão por morte ficta, é um excesso punitivo, já que embaralha indevidamente a questão da condenação criminal com a previdenciária; violando dessa maneira o direito fundamental do ex-militar a receber os proventos da aposentadoria.
Um filosofo já disse: uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa...
Separação entre as esferas previdenciária e criminal
O argumento de que o militar cometeu crime e a esposa ainda recebe pensão é metajurídico. É uma questão de opinião pública. De moralidade.
A propósito, o professor Lenio Streck sempre fala de um predador do direito: a moral.
Há uma tendência, no imaginário popular, de confundir o direito adquirido previdenciário com a reprovação social pela conduta criminosa.
O que importa é se o militar contribuiu para o sistema previdenciário e, portanto, tem direito a receber os proventos na aposentadoria.
O pagamento da pensão à esposa, no lugar do ex-militar, é contra a legalidade constitucional, já que mistura a perda do posto com a questão previdenciária, além de gerar uma dependência.
Caso concreto
Um coronel do Exército, na reserva (aposentado) foi condenado pelo STM a perda do posto e patente.
Mesmo tendo contribuído por mais de 40 anos para a previdência social perdeu seu direito de receber os proventos da aposentadoria.
Pergunta: Isso tudo está conforme a Constituição? E o direito adquirido, proteção à confiança e o ato jurídico perfeito?
Conclusão
O art. 119 do Estatuto dos Militares, lei 6880/80, não tem compatibilidade com a CF, vale dizer, não há recepção material, resultando em sua revogação. Na mesma direção, o art. 20 da lei 3765/60.
A sanção criminal do militar não pode interferir no seu direito à aposentadoria, que tem natureza contributiva.
Ou seja, os direitos previdenciários do militar são independentes de punições criminais.
Se ele contribuiu, é evidente que o benefício tem que ser dele e, não revertido para a esposa, salvo em caso de morte real.
Afinal, o sistema previdenciário é um seguro social, e não pode ser confundido com punições do Direito Penal ou moral.